Escreve: Sinuê Neckel Miguel no sitio PENSE
Em: Novembro de 2010
INTRODUÇÃO
Em princípio, a muitos pode causar alguma estranheza abordar conjuntamente economia e Espiritismo (1). Em parte, o objetivo desse artigo é desfazer esta impressão mais ou menos generalizada, mostrando as conexões entre os dois conhecimentos e avançando, assim, na proposição fundamental que pretendemos tornar patente: a de que o pensamento social espírita pode ir ao encontro da economia solidária. Importa frisar que o objetivo deste breve ensaio, caracterizado como um esboço argumentativo, não é sustentar um argumento científico – deseja-se, isto sim, ensaiar filosoficamente a conexão conceitual entre pensamento social espírita e economia solidária. Dentre outras possibilidades, o pensamento social espírita pode ser entendido como a aplicação das Leis Morais (expostas e refletidas na 3ª Parte d’O Livro dos Espíritos) ao conjunto da sociedade, encarando a vida dos indivíduos na sua permanente conexão com o todo social (2). Partindo do pensamento social espírita pode-se erigir ainda uma ação social espírita. De outra parte, a economia, na sua origem etimológica, é “o cuidado, a gestão da casa” e por consequência daqueles que nela habitam (3). Nesse sentido, o seu fim último é o bem comum. Por isso economia deve ser a gestão da riqueza para o bem comum, abarcando tanto uma teoria quanto uma prática para realizar tal objetivo. Como o Espiritismo proclama a máxima cristã de “amar ao próximo como a si mesmo”, parece-nos evidente, portanto, que o bem comum é (ou deveria ser) um ponto de contato fundamental com a economia. Aliás, numa acepção moral absoluta, o bem, em última análise, só pode ser comum (4), pois todo o bem promovido em favor de si tem por consequência um benefício dos que estão próximos, sendo um acréscimo ao progresso da humanidade, enquanto todo o bem promovido em favor do próximo é, pela mesma razão, um benefício para si. Assim, a expressão “bem comum” visa apenas o reforço a uma característica fundamental à ideia de “bem”. Já a economia solidária pode ser definida de diversos modos. Optamos porém pela seguinte: é um sistema socioeconômico aberto, fundado nos valores da cooperação, da partilha, da reciprocidade e da solidariedade, e organizado de forma autogestionária a partir das necessidades, desejos e aspirações da pessoa, comunidade, sociedade e espécie, com o fim de emancipar sua capacidade cognitiva e criativa e libertar seu tempo de trabalho das atividades restritas à sobrevivência material, de modo a tornar viável e sustentável seu desenvolvimento propriamente humano, social e de espécie. (ARRUDA, 2003, p. 237). Os seus princípios são: cooperação, autogestão, viabilidade econômica e solidariedade. Destacamos a autogestão como elemento central de contraposição ao capitalismo (5) (uma condição necessária, porém não suficiente para a sua superação) e a solidariedade como um elo importante com o Espiritismo. Marcos Arruda (ARRUDA, 2003, p. 233) entende que existe na humanidade uma solidariedade ontológica (a de seres da mesma espécie) que, contudo, não é suficiente para estabelecer a solidariedade como lógica predominante na totalidade das relações sociais. Por isso é preciso promover uma solidariedade consciente, o que exige um trabalho de transformação cultural baseado no imperativo racional de que só a solidariedade nos satisfaz plenamente (6). Em outras palavras, só a solidariedade nos leva à felicidade. Portanto, para alcançarmos as condições de felicidade geral, é necessário construir uma sociedade solidária. Agora, voltemo-nos para o outro princípio destacado na economia solidária, o da autogestão. Mencionamos que este princípio constitui a economia solidária como uma alternativa ao capitalismo. Por quê? Basicamente porque a autogestão solidária prima pela valorização do trabalho acima do capital (7), relação inversa àquela estabelecida pela economia capitalista. Num empreendimento econômico solidário a remuneração deve ser totalmente baseada no fator trabalho, já numa empresa capitalista quem investiu capital é quem terá a maior remuneração. Mas se a economia solidária é, idealmente, uma alternativa ao capitalismo, devemos responder a uma questão central: por que optar pela economia solidária? A nossa resposta, que pretendemos articular nesse pequeno texto, é: porque o capitalismo é injusto. A INJUSTIÇA DO CAPITALISMO Examinemos as razões — ao menos, as que nós consideramos principais — pelas quais o capitalismo deve ser considerado um sistema social injusto. Em primeiro lugar oferecer capital não vale mais do que oferecer trabalho. Na empresa capitalista, os donos da empresa, por serem os proprietários dos meios de produção (8), têm o poder de se apropriar da riqueza produzida pelos trabalhadores. Essa riqueza tem um valor que é criado pelo trabalho. Deste valor, que corresponde ao produto social, uma parte tem de ser paga aos trabalhadores, sob a forma de salários. O que resta constitui o lucro bruto, parte do qual os capitalistas redistribuirão como juros, aluguéis, renda da terra e tributos respectivamente a prestamistas, a proprietários de imóveis ou terras e ao Estado. (SINGER, 2008, p. 93) O restante pode ser em parte reinvestido na empresa e em parte apropriado pelo capitalista para usufruto pessoal. Evidentemente, os capitalistas, por deterem os meios de produção, terão sempre mais riqueza que os assalariados. A relação de troca entre aqueles que oferecem o capital e aqueles que oferecem o trabalho é portanto extremamente desigual e por isso injusta. Afinal, por que deveríamos considerar a posse do capital como mais valorosa do que o exercício do trabalho? (9) Em suma, a repartição da renda no modo de produção capitalista, por se basear na partilha do produto social entre capital e trabalho, é eminentemente injusta, pois o primeiro é sempre mais remunerado que o segundo, sem qualquer justificativa moral para isso. Neste momento, é importante lembrar o ensino dos Espíritos acerca da relação entre necessário/supérfluo. No capitalismo, os proprietários dos meios de produção (nas grandes empresas, os acionistas majoritários), ou os que detêm o poder de gerência dos meios de produção (a chamada “burguesia gerencial”, ricamente remunerada), têm a permanente possibilidade e inclusive o estímulo ao acúmulo pessoal, visando o gozo de supérfluos que lhes dá a visibilidade de um “status superior”, contribuindo para a manutenção das mesmas relações de poder que lhes conferem privilégios na hierarquia social. Pode-se argumentar que esse comportamento egoísta pode ser transformado pela livre-vontade dos próprios capitalistas, que passariam a utilizar a sua riqueza acumulada para finalidades altruísticas. Entretanto, levando em consideração que este comportamento egoísta prejudica enormemente a imensa maioria da população na Terra, devemos simplesmente aguardar pela transformação moral da elite econômica do planeta, ainda que apelando para a sua consciência? Penso que este raciocínio falha por ignorar o princípio democrático de regulação social. Quando alguém comete qualquer crime (reconhecido social e legalmente como tal) deve ser penalizado de acordo com a legislação vigente. Não nos limitamos a esperar que os criminosos transformem-se moralmente fazendo apenas apelos a sua consciência. Enquanto sociedade, procuramos, isto sim, coibir e punir o crime. Da mesma maneira entendemos a questão social. A apropriação desigual da riqueza com base no regime da propriedade privada dos meios de produção afeta toda a sociedade de modo desigual e injusto, portanto cabe a sociedade organizada dar uma resposta coletiva e democrática — inclusive juridicamente — a tal problema. Com base nas questões 711 e 717 d’O Livro dos Espíritos, podemos dizer que aqueles que se apropriam dos bens da Terra para além do que deviam, acumulando supérfluos e impondo a escassez do necessário para multidões, “desconhecem a lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionaram”. Se considerarmos que o capitalismo estimula a concentração do supérfluo para poucos e a escassez do necessário para muitos, então este sistema social deve ser condenado. Em segundo lugar, a origem do capital não tem relação necessária com o mérito. Isto porque em grande medida o capitalista herda parte do seu capital. E, conforme os estudos históricos e O Livro dos Espíritos, a origem do capital encontra-se frequentemente na astúcia e no roubo (LE 808 e 808a). Portanto, embora seja possível a aquisição meritória de capital, esta modalidade não explica a totalidade e sequer a maioria do montante da distribuição de capital no planeta. Lembrando o quanto é importante a noção de mérito para a Doutrina Espírita, vale destacar que um sistema social que produz desigualdade para além das consequências da desigualdade de mérito, é essencialmente injusto. Para ilustrar o raciocínio, citemos por extenso as questões 806 e 806-a d’O Livro dos Espíritos: 806. A desigualdade das condições sociais é uma lei natural? - Não; é obra do homem e não de Deus. 806-a. Essa desigualdade desaparecerá um dia? - Só as leis de Deus são eternas. Não a vês desaparecer pouco a pouco, todos os dias? Essa desigualdade desaparecerá juntamente com a predominância do orgulho e do egoísmo, restando tão-somente a desigualdade de mérito. Chegará um dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não mais se olharão como de sangue mais ou menos puro, pois somente o Espírito é mais puro ou menos puro, e isso não depende da posição social. Excetuando os progressos no sentido de diminuir a essencialização da desigualdade social (noções como “pureza de sangue”, associadas à de “nobreza”, estão praticamente em desuso na maior parte do globo terrestre), cumpre destacar que estamos longe de uma sociedade em que reste “tão-somente a desigualdade de mérito”. Outra razão pela qual o capitalismo deve ser considerado injusto é que esse sistema social se alimenta e fomenta a desigualdade. De certo modo já trouxemos esse argumento, porém importa destacar o ciclo vicioso da desigualdade inerente ao capitalismo. Nesse modo de produção é necessária a existência de uma desigualdade básica: a de classes – isto é, a existência dos proprietários dos meios de produção e os proletariados (por definição, os que não possuem meios de produção). Esta desigualdade fundamental inviabiliza qualquer tentativa de promoção da igualdade social, a exemplo da transferência de renda via tributação. Isto por uma razão: quem detém os meios de produção detêm o poder econômico e quem detém o poder econômico, cedo ou tarde, detêm o poder político. Esta equação é demonstrada pela história da humanidade. Além disso, se o capitalismo se alimenta da desigualdade social, ele também a fomenta com a tendência à acumulação e concentração do capital. Por um lado, os capitalistas não podem permitir a igualdade na repartição da renda, pois isso significaria a sua ruína enquanto detentores do monopólio dos meios de produção, já que os assalariados poderiam todos se tornar empreendedores a lhes fazer concorrência, abandonando o posto de assalariado e tornado-se também proprietários de meios de produção. Por outro, as empresas mais fortes tornam-se vitoriosas no mercado concorrencial, em detrimento das mais fracas. Sendo mais fortes, tendem a vencer e permanecer vencendo e derrubando cada vez mais empresas, à medida que se expandem. No limite, só restam gigantescos conglomerados empresariais, que se fundem rumo aos monopólios, deixando baixíssima possibilidade de empreendedorismo para os micros e pequenos empresários. Esta é a conhecida tendência monopolística do capitalismo. Quanto à questão igualdade/desigualdade, lembremos mais uma vez O Livro dos Espíritos. Se já vimos que a desigualdade das condições sociais deve desaparecer, é oportuno verificar, em particular, a posição dos espíritos, na obra supracitada, quanto à desigualdade das riquezas. Apesar da igualdade absoluta das riquezas não ser possível, em função da diversidade das faculdades e dos caracteres dos indivíduos (LE 811), o bem-estar é relativo e cada um poderia gozá-lo, se todos se entendessem bem... Porque o verdadeiro bem-estar consiste no emprego do tempo de acordo com a vontade, e não em trabalhos pelos quais não se tem nenhum gosto. Como cada um tem aptidões diferentes, nenhum trabalho útil ficaria por fazer. O equilíbrio existe em tudo e é o homem quem o perturba. (LE 812; grifo nosso) Destaquemos dois aspectos da questão. Primeiro: não existe bem-estar na vida dos encarnados sem um mínimo de condições materiais (10). Portanto, a busca por equiparações na renda, na justa distribuição da riqueza, continua sendo fundamental para gerir os recursos, os bens da Terra, no sentido de atender às necessidades de todos, mesmo que uma igualdade absoluta seja inviável e mesmo oposta à justiça baseada no mérito. Segundo: o bem-estar está diretamente ligado ao trabalho. Este aspecto remete ao nosso último argumento para a condenação moral ao capitalismo. Então, por fim, mas não menos importante, afirmamos que o capitalismo não permite a evolução integral dos espíritos. No capitalismo, para a manutenção do poder dos proprietários dos meios de produção, é importante manter a divisão entre gestão e execução do trabalho, ou entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou entre trabalho criativo e trabalho repetitivo, mecânico. Os trabalhadores assalariados não devem dominar a totalidade do processo produtivo, pois isso, acrescido de algum capital (o que pode ser obtido com a soma de diversos pequenos capitais ou mesmo através do Estado), lhes daria o poder de produzirem autonomamente a sua riqueza, o seu sustento, sem a necessidade do “patrão”. Como vimos, é fundamental para o capitalista manter a mão-de-obra assalariada. E, além disso, é fundamental ainda manter uma mão-de-obra assalariada desempregada, o chamado “exército industrial de reserva”, para o controle dos salários pelos capitalistas, já que se todos estivessem empregados, os trabalhadores assalariados poderiam barganhar livremente o seu salário, buscando a sua elevação, sem o risco de demissão, pois não haveria trabalhadores desempregados para os substituírem (sendo crucial a sua manutenção no quadro das empresas para a manutenção do mesmo nível de produção). De tudo isso concluímos dois problemas para examinarmos à luz da Doutrina Espírita: no capitalismo o desemprego é estrutural (nunca acabará) e o trabalho é intelectualmente limitado e limitante no que concerne a imensa maioria da população mundial. Em razão desses problemas, cabe tratarmos da questão buscando n’O Livro dos Espíritos a Lei do Trabalho. Sabemos que o trabalho é conceituado como sendo toda ocupação útil (LE 675) e que é imposto ao ser humano encarnado em consequência da sua natureza corpórea, funcionando como uma expiação e um meio de aperfeiçoar a sua inteligência (LE 676). A ideia de trabalho como ocupação útil é de caráter social, pois se trata de sermos úteis aos nossos semelhantes (LE 679). Portanto, não basta uma utilidade egoísta, é necessário beneficiar o próximo, e o próximo inclui toda a humanidade (ou mesmo toda a criação de Deus). Lembrando, é claro, que o trabalho que se caracteriza como um aperfeiçoamento de si (LE 679), por extensão é também um bem para o próximo. Em suma, o trabalho é um fator de desenvolvimento importantíssimo para o Espírito; sem trabalho não há evolução. Sendo assim, um sistema social que necessita do desemprego para se estruturar não pode atender plenamente a uma demanda fundamental do ser humano para a sua evolução. Não obstante, resta notar que “a natureza do trabalho é relativa à natureza das necessidades” (LE 678). N’O Livro dos Espíritos esta questão (678) parece indicar apenas que quanto menor forem as nossas necessidades materiais, menos material será o trabalho. A ideia de “necessidades”, nesse contexto, parece mesmo estar restrita às necessidades de consumo, de uso de produtos e serviços. Porém, gostaríamos de tentar extrapolar esta noção para provocarmos uma reflexão sobre um dos problemas colocado mais acima, a saber, o da característica limitada e limitante do trabalho assalariado da imensa maioria da população. Já vimos que o trabalho serve ao aprimoramento da inteligência e agora, ainda, pretendemos fazer notar que diante de uma necessidade, de uma demanda, por um maior desenvolvimento intelectual, a organização social deve atribuir às pessoas a consecução de um trabalho menos material, isto é, um trabalho mais intelectual. Portanto, interpretando a noção de necessidade na questão 678 como significando não apenas uma “necessidade de consumo”, mas também uma “necessidade de exercício”, de um fazer intelectual, podemos avançar a tese de que o tipo de trabalho ofertado no capitalismo está aquém das necessidades evolutivas dos seres humanos. Os seres humanos precisam, para a sua evolução integral, de um trabalho que lhes tragam bem-estar (LE 812) e que lhes favoreçam o aprimoramento da inteligência e da moral, na base dos valores da solidariedade, da cooperação e da autogestão. A possibilidade de exercer plenamente estes valores no campo do trabalho encontra-se na economia solidária. EM DEFESA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Terminada enfim a argumentação contra a opção capitalista, chegamos à defesa da alternativa da economia solidária. A economia solidária estabelece a centralidade do trabalho frente ao capital. Todos que trabalham recebem integralmente a sua parte da riqueza produzida. O trabalho é a base da remuneração e não o capital. Quem mais trabalha, mais recebe, e quem decide não trabalhar não pode continuar num empreendimento econômico solidário. A solidariedade, entretanto, torna o trabalho um empreendimento “familiar”, no qual todos se ajudam, compreendendo as possibilidades e necessidades particulares; o caráter do trabalho, animado pela solidariedade, ganha em democracia e libera-se das relações hierárquicas. A economia solidária também promove a propriedade coletiva dos meios de produção, baseando-se em modelos associativistas e cooperativistas. Se verificarmos o que é dito sobre a propriedade n’O Livro dos Espíritos, mais uma vez encontraremos interessantes subsídios para a nossa reflexão. Da questão 880 a 885, Kardec insiste no ponto de vista liberal que defende firmemente o direito à propriedade privada. As respostas dos espíritos, entretanto, relativizam o direito à propriedade, subordinando-o ao critério de justiça. A propriedade só é legítima quando “foi adquirida sem prejuízo para os outros” (LE 884) e o que for acumulado como fruto de um trabalho honesto deve servir ao próximo, já que a intenção deve ser a de “auxiliar o seu semelhante” (LE 883-a). Na questão 881 fala-se ainda em ajuntar o que necessitamos para viver e repousar através de um trabalho honesto, “em família, como a abelha” e não “como um egoísta”. Ora, a propriedade privada dos meios de produção, por alijar o próximo (que não a possui) do direito a usufruir da riqueza que produz como fruto do seu próprio trabalho, não preenche os requisitos morais que a Doutrina Espírita prescreve para a legitimação da propriedade. Isto é, já que a propriedade privada dos meios de produção traz em última instância um “prejuízo para os outros” (os que não detêm essa propriedade), ela, a nosso ver, enquadra-se na categoria de propriedade ilegítima. Por mais consagrada que seja na nossa sociedade esta categoria de propriedade, devemos ter muito cuidado para não absolutizá-la como inevitável e como a mais justa das formas legais. Nesse sentido citamos a questão 885 para nossa meditação: 885. O direito de propriedade é sem limites? - Sem dúvida, tudo o que é legitimamente adquirido é uma propriedade, mas, como já dissemos, a legislação humana é imperfeita e consagra frequentemente direitos convencionais que a justiça natural reprova. É por isso que os homens reformam suas leis à medida que o progresso se realiza e que eles compreendem melhor à justiça. O que num século parece perfeito, no século seguinte se apresenta como bárbaro. Com a autogestão, temos a possibilidade de um desenvolvimento integral do Espírito, pois a todos cabe a atividade eminentemente intelectual de gerência e direção além da atividade eminentemente material do trabalho manual. Para isso estabelece-se o rodízio das funções (uma diretoria pode manter-se por um ou dois anos, devendo ser substituída por novos membros, perfazendo idealmente a totalidade dos associados ou cooperados) e a polivalência de todos, dando o conhecimento de todo o processo produtivo, necessário para uma ideal coordenação de esforços. O processo decisório na condução do empreendimento econômico solidário se completa com a assembleia dos trabalhadores (na qual cada “cabeça” vale um voto) e outras instâncias que se mostrem eficazes na gestão democrática. Com tudo isso oferta ainda a possibilidade crescente de adoção de trabalhos que atendam às necessidades específicas de gosto e aptidão (inclusive com o horizonte aberto de desenvolvimento de novos gostos e aptidões), o que deve levar ao almejado bem-estar (LE 812). Recordemos que o trabalho estrito, para a produção de valor, cobre quase um terço da vida adulta dos seres humanos, já que a maioria das pessoas trabalha cerca de oito horas diárias, subtraindo folgas semanais e férias remuneradas. Se excetuarmos ainda o tempo reservado ao sono, necessário ao descanso do corpo físico, que idealmente fica em torno de oito horas diárias, o trabalho para a produção de valor responde pela metade da ocupação do nosso tempo de encarnação. É muito! Em razão disso acreditamos que esta esfera da vida social deva receber maior atenção de todos, pois muito contribui para a qualidade da nossa existência. A autogestão no trabalho deve concorrer também para a promoção de uma cultura política autogestionária. Isto é, uma sociedade que inclua a todos, enquanto cidadãos, na atividade de gerir a si mesmos, em todas as esferas da vida. Trata-se de assumirmos uma responsabilidade solidária perante nós mesmos e perante toda a humanidade, construindo coletivamente direitos e deveres, tomando decisões que afetam a si e ao outro. Uma cultura autogestionária e solidária corresponde, a nosso ver, à aplicação social da máxima cristã: “ama ao próximo como a ti mesmo” ou “faça aos outros aquilo que quer para si”. Nessa perspectiva, o modelo atual de Estado deve ser substituído paulatinamente por uma estruturação política radicalmente democrática, pautada pela livre associação, com ênfase na tomada de decisão direta e na representação organicamente ligada aos interesses coletivos, definidos do particular ao geral, com o envolvimento de todos. É claro que isto tudo exige um imenso trabalho cultural de educação para a autogestão solidária, ao qual ninguém pode se furtar se desejar contribuir para a realização de uma sociedade mais justa e amorosa. No momento, já é possível notar que a economia solidária preenche, idealmente, o requisito moral de não cometer injustiças (o que a economia capitalista não consegue). Além disso, num sentido positivo, a economia solidária promove a justiça e o amor, conectando na sua prática os valores da cooperação, da autogestão e da solidariedade. A essa altura, também, muitos já devem ter se questionado se a economia solidária equivaleria ao socialismo. De fato, a economia solidária pode ser considerada uma forma de socialismo, o socialismo autogestionário (NASCIMENTO, 2003, p. 226-232). Para Paul Singer, por exemplo, a economia solidária é, na sua idealidade, o socialismo por excelência, considerando as demais tentativas de implantação do socialismo como experiências pseudossocialistas, já que não passariam de economias centralmente planejadas (a exemplo da ex-URSS) ou de arremedos de autogestão numa economia de mercado (a exemplo da ex-Iugoslávia). Para os espíritas, vale considerar a idéia de um socialismo cristão (11), humanista e espiritualista, que não impõe, que não subvaloriza a criatividade e a vontade individual, mas que almeja a justiça, a solidariedade e o pleno desenvolvimento da humanidade. A este socialismo cristão consideramos equivalente ao que hoje se convencionou chamar de economia solidária (12). AÇÃO SOCIAL ESPÍRITA Para finalizarmos este pequeno artigo, faremos uma breve reflexão sobre a ação social espírita e a transformação da sociedade. Sabemos da complexidade do assunto que traz à tona a discussão acerca do papel do Espiritismo no mundo. Não pretendemos fechar opinião ou apresentar qualquer síntese de pensamento. Nem nos sentimos capazes para tanto. Trata-se apenas de esboçar algumas questões e sugestões para encaminharmos a proposta de inclusão da economia solidária como pauta da ação social espírita. Fundamentalmente, a ação social espírita se justifica a partir de um diagnóstico sobre as demandas por melhorias que a nossa sociedade apresenta. Intervir na sociedade para contribuir com o progresso (13), eis o objetivo mais geral da ação social espírita. Existem muitas formas legítimas de intervenção, já que as necessidades, as carências existentes no nosso planeta são múltiplas. Queremos, no entanto, enfatizar a necessidade de contribuirmos, enquanto espíritas, para uma mudança na organização da sociedade. Defendemos o princípio de que só podemos superar definitivamente os problemas existentes se atuarmos nas suas causas, não tratando meramente de minorá-los enquanto efeitos. O raciocínio é análogo ao que se pode aplicar às doenças: tratar das causas das doenças é o único modo de nos vermos livres delas, enquanto que o tratamento sobre os sintomas serve apenas para aliviarmo-nos temporariamente da dor. A resposta à questão 930 d’O Livro dos Espíritos resume e exemplifica bem esta relação entre um problema e a sua causa estrutural: “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome” (grifo nosso). Está claro aí que o problema da fome só pode encontrar solução numa mudança organizacional da sociedade. E quando falamos de uma proposta de aderirmos à economia solidária, estamos falando justamente de uma mudança organizacional da sociedade. Comumente, porém, pensa-se que o Espiritismo prescreve que a mudança da sociedade ocorre exclusivamente a partir da reforma ou transformação (14) dos indivíduos, numa relação causal linear e unidirecional. Todavia, diversas passagens d’O Livro dos Espíritos nos sugerem que a relação entre transformação individual e transformação social é bidirecional, uma influenciando a outra recíproca e incessantemente. No próprio comentário de Kardec à questão 930 acima citada esse raciocínio se evidencia: Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode sofrer necessidades, a não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem são frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus disporá de uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso ele mesmo será melhor. Em reforço, podemos citar ainda uma passagem da resposta de Fénelon à questão 917, que faz referência às instituições sociais e à sua força influenciadora sobre a ação dos indivíduos: (...) É o contato que o homem experimenta do egoísmo dos outros que o torna geralmente egoísta, porque sente a necessidade de se pôr na defensiva. Vendo que os outros pensam em si mesmos e não nele é levado a se ocupar de si mesmo mais que dos outros. Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das relações de povo para povo e de homem para homem, e este pensará menos em si mesmo quando vir que os outros o fazem; sofrerá assim a influência moralizadora do exemplo e do contato. Transformar as instituições é um modo eficaz de concorrer para a obra geral da criação – uma das finalidades da encarnação – e assim progredir (LE 132). Portanto, devemos nos dedicar a promoção do progresso geral para progredirmos individualmente. Precisamos “fazer o bem no limite das próprias forças, pois cada um responderá por todo o mal que tiver ocorrido por causa do bem que deixou de fazer” (LE 642). Neste particular, na questão 932 encontrarmos um alerta: 932. Por que, neste mundo, os maus exercem geralmente maior influência sobre os bons? - Pela fraqueza dos bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os bons são tímidos. Estes, quando quiserem, assumirão a preponderância. A educação aparece como a chave da transformação das instituições que sustentam e provocam os valores inferiores (LE 914). E, além disso, parece ser consenso que o Espiritismo encontra na educação o seu papel central de coadjuvante do progresso da humanidade, em consonância com o raciocínio exposto por Kardec n’A Gênese, cap. 18, itens 24 e 25. Não obstante, educação não é somente escola, e evangelização não é apenas o ensino livresco de matéria cristã ou espírita. É neste sentido que queremos propor que as instituições espíritas assumam uma atividade educativa voltada para a autogestão e o cooperativismo. Diversas instituições espíritas já promovem em seus espaços ações educativas de cunho profissionalizante, visando à inclusão social para o mercado de trabalho. Por que não adotarmos então ações educativas que promovam a economia solidária, com o trabalho cooperativista e os valores da autogestão e da solidariedade? Esta prática seria ao mesmo tempo uma educação através do trabalho e uma educação do próprio trabalho, tornando-o solidário. Ao invés de inserir as pessoas num mercado de trabalho repleto de injustiças próprias ao capitalismo – solução apenas paliativa do problema da exclusão – poderíamos contribuir para a promoção de um novo tipo de trabalho, de num novo tipo de economia e de um novo tipo de sociedade, fundada nos valores da solidariedade, da autogestão e da cooperação, estreitamente relacionados ao ideal revolucionário francês (o qual Kardec referendou, como se pode verificar em Obras Póstumas) da tríade: liberdade, igualdade e fraternidade. Para encerrarmos esse breve ensaio, uma última observação parece-nos crucial. Todos queremos a paz, o entendimento fraterno entre todas as pessoas. Porém, só atingiremos este ideal através da justiça: 812-a. É possível que todos se entendam? - Os homens se entenderão quando praticarem a lei da justiça. NOTAS (1) Como podemos notar em alguns textos na Revue Spirite, Allan Kardec objetava que fossem discutidos assuntos como economia, política e religião nas sociedades espíritas, alegando que este tipo de assunto traria divisionismos que obstariam a unidade fraternal em torno dos princípios do Espiritismo. Assim, seria pertinente apenas a explanação genérica em torno de princípios morais amplos fundamentais à Doutrina Espírita. Entretanto, na prática Kardec imiscuiu-se nesses assuntos, opinando de acordo com o seu arcabouço cultural em temas como a desigualdade das riquezas (temática da economia), a igualdade de direitos e a liberdade de consciência (temas da política), e ainda diversos temas religiosos, como as doutrinas do céu e do inferno. De nossa parte, acreditamos que o Espiritismo, como corpo de conhecimento filosófico, toca em todos estes assuntos. O alcance e desenvolvimento das relações entre princípios morais gerais e suas consequências teóricas e práticas nos diversos campos do conhecimento e da ação humanos deve se efetivar através de um trabalho de reflexão e experimentação coletivos que parta de possíveis inferências de princípios básicos até a constituição de proposições mais complexas que permitam o teste na prática, tanto nas experiências individuais quanto coletivas. Sobre a relação entre política e Espiritismo, ver O Espiritismo e a Política para a Nova Sociedade: Reflexão e Ação para Espiritualizar o Social, de Aylton Paiva (PAIVA, 1996). (2) Sobre o pensamento social espírita, ver Anais do I Encontro Nacional Sobre a Doutrina Social Espírita (1985) e Espiritismo e Sociedade, publicado em 1986 para o II Encontro Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita (1987) em: http://www.viasantos.com/pense/livros.html. (3) Esta definição etimológica de economia é usualmente utilizada por autores ligados ao movimento da economia solidária, que visam uma revisão crítica da própria ciência econômica de um modo geral. (4) O bem exclusivamente para si, egoísta, em realidade não existe, não passa de uma ilusão. Os que pensam estar fazendo o bem para si, por exemplo, ao gastar grandes quantias de dinheiro para viver luxuosamente, na verdade estão fazendo o mal para si, por viciarem-se em prazeres egoístas que os afastam da relação amorosa com a humanidade. (5) Entendo capitalismo como sendo, basicamente, um sistema socioeconômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, encerrando uma contradição fundamental entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação. (6) Esta afirmação de Arruda é extremamente importante. A este respeito, o autor elabora engenhosamente uma reflexão filosófica utilizando-se de alguns dados científicos. Insiste, por exemplo, que o diferencial evolutivo do ser humano não é a agressividade nem a competitividade, mas sim a sociabilidade, a cooperação e a solidariedade. Para conhecer em detalhe estas proposições de Marcos Arruda ver Humanizar o Infra-humano: A Formação do Ser Humano Integral: Homo Evolutivo, Práxis e Economia Solidária (ARRUDA, 2003b). (7) Capital, conforme Karl Marx, é uma relação social que, no capitalismo, assume o caráter de exploração do trabalho pelos capitalistas para a obtenção do lucro através da extração da mais-valia (o valor do trabalho não pago àquele que trabalha) da força de trabalho dos proletários (aqueles que não possuem os meios de produção). Com isso, além da produção de bens e serviços, obtêm-se o lucro e a manutenção do capital. O capital assume materialmente a forma de meio de produção. (8) Meios de produção é tudo aquilo que serve à consecução da produção, incluindo terra, matéria-prima, instalações, ferramentas e mão-de-obra. (9) É comum a muitos economistas alegar-se o fator “risco do negócio” como a contrapartida do empresário na relação capital-trabalho com o empregado. Entretanto, devemos indagar: risco equivale a trabalho? E ainda, o risco do investimento do capital em um dado negócio justifica moralmente o fato de o empregador ser mais bem remunerado que o empregado? Contudo, essa seria uma discussão válida, do ponto de vista prático e moral, somente se todos tivessem condições econômicas de optar por esse risco. Não obstante, mesmo no caso hipotético de uma igualdade econômica que desse a todos a condição de optar entre correr o risco do negócio ou trabalhar, ainda não percebo qualquer justificativa moral para dizermos que correr o risco do negócio é mais meritório do que trabalhar. Importa ainda a constatação de que, no mundo do trabalho, quem corre mais riscos em termos de sobrevivência ou de manutenção do atendimento a necessidades básicas para uma vida digna, é o operário e não o dono de empresa fartamente remunerado. (10) Veja-se a resposta à questão 922 d’O Livro dos Espíritos, acerca da existência de uma medida comum de felicidade para todos os homens: “– Para a vida material, a posse do necessário; para a vida moral a consciência pura e a fé no futuro” (LE 922, grifo nosso). (11) Um socialismo de tipo “cristão”, a ser adotado pelos espíritas, só é pertinente se o cristianismo for entendido à luz do Espiritismo, isto é, em seu caráter universalista, preservando-lhe apenas o estritamente universal – que são os seus postulados morais fundamentais, resumidos na lei do amor (assim, o cristianismo pertencente à história e seus agentes humanos, naturalmente repleto de imperfeições, é descartado dessa adjetivação). Este socialismo cristão deve ser ao mesmo tempo humanista – por valorizar o desenvolvimento do ser humano com base nos seus direitos e deveres fundamentais, e nas suas potencialidades evolutivas. E ainda, certamente espiritualista, por assentar as bases da fraternidade, da igualdade e da liberdade na existência imortal do Espírito. Para os espíritas, parece válido assumi-lo simplesmente como “socialismo espírita”. Que estas distinções, não sirvam, contudo, para impedir os espíritas de aproximarem-se de outros segmentos da sociedade que porventura abracem a causa de um socialismo carregado de valores e princípios equivalentes ou similares àqueles mais fundamentais ao Espiritismo. (12) Afirmar um socialismo cristão não significa a busca por um Estado teocrático. O Estado laico é uma conquista importante que permite, entre outras coisas, a liberdade religiosa. Sendo assim, o que queremos destacar aqui é que há uma convergência de princípios entre socialismo, cristianismo e economia solidária. (13) Apesar da grande diversidade de acepção do termo ‘progresso’, para os espíritas ele prende-se ao conceito de evolução, caracterizando-se como uma trajetória que vai do imperfeito ao perfeito. Os parâmetros são intelectuais e morais. A finalidade é a felicidade. (14) Os termos ‘reforma’ e ‘transformação’ parecem ser equivalentes para Kardec, por utilizá-los, ao menos aparentemente, de modo indistinto. Preferimos, todavia, o termo transformação ao termo reforma por indicar, numa acepção corrente, uma mudança mais ampla e profunda, tanto a nível individual quanto coletivo. BIBLIOGRAFIA ARRUDA, Marcos. Socioeconomia solidária. In: CATTANI, Antonio David (org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003. ________. Humanizar o infra-humano: a formação do ser humano integral: homo evolutivo, práxis e economia solidária. Petrópolis: Vozes, 2003b. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995. ________. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2002. ________. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1987. ________. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 1973. NASCIMENTO, Claudio. Socialismo autogestionário. In: CATTANI, Antonio David (org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003. PAIVA, Aylton. O Espiritismo e a política para a nova sociedade: reflexão e ação para espiritualizar o social. Lins: Casa dos Espíritas Livraria Espírita Libertação, 1996. SINGER, Paul. Aprender economia. São Paulo: Contexto, 2008. Sinuê Neckel Miguel, bacharel em História pela UFRGS, mestrando em História pela Unicamp, pesquisa a história do movimento espírita brasileiro, tendo publicado artigos sobre o tema. Atuou como evangelizador infanto-juvenil e com a juventude espírita através do Grupo de Programação Juvenil (GPJ) - União Distrital Espírita (UDE) Partenon, de Porto Alegre-RS. Foi um dos idealizadores do GPDHE (Grupo de Pesquisa e Documentação Histórica sobre Espiritismo), no Rio Grande do Sul. Atualmente participa ativamente do NEUU (Núcleo Espírita Universitário da Unicamp). E-mail: sinueneo@gmail.com |