quinta-feira, 21 de junho de 2012

Entre James Joyce e Karl Marx

210612 joyceRepública da Irlanda - Vermelho - [Alexandre Pilati] Ullysses completa 90 anos. E se nos atrevêssemos a enxergá-lo como revelação do capitalismo dentro de nós?

Nos meios literários, junho é tradicionalmente um mês dedicado a reflexões sobre o Ulysses, romance revolucionário de James Joyce (1842-1941). No dia 16 deste mês, comemora-se o Bloom's Day, pois esta é a data em que se passa a ação do livro do autor irlandês. Em 2012, o "Dia de Bloom" é ainda mais especial, pois nos encontramos a noventa anos da publicação da obra. Além disso, o recente lançamento do filme Notícias da antiguidade ideológica (Versátil Home Video, 2011), de Alexander Kluge provoca a reflexão sobre a dinâmica de forças estéticas/filosóficas/históricas que envolvem os nomes de Marx, Joyce, Kluge e Eisenstein.
Nestes 90 anos, o Ulysses foi pródigo em espalhar mundo afora fascínio e polêmica. Como monumento incontornável da moderna literatura ocidental, o romance do autor irlandês não para de seduzir críticos, ao mesmo tempo que se conserva à prova de qualquer leitura que seja capaz de aludir à totalidade de sua eficácia estética. Como sempre ocorre em grandes obras, qualquer leitura do textoparece ser bem menor do que o próprio texto; mas isso, no seu caso específico, adquire uma consistência ainda mais lancinante. Se já é um tormento para os críticos do livro tentar acercá-lo e compreendê-lo, imaginemos o tamanho da tarefa de inverter um pouco a ordem natural da coisas e usar o Ulysses como método de compreensão de um construto crítico-teórico como O Capital, de Karl Marx (1818-1883).
O primeiro a se propor esse desafio foi o cineasta russo Sergej Eisenstein (1898-1948), que alimentou a ideia por fim malograda de filmar OCapital a partir do método estético empregado por James Joyce emUlysses. Joyce ansiava por conhecer Eisenstein, porque julgava que ele seria o único cineasta capaz de filmar o Ulysses. Por outro lado, o cineasta russo procurara Joyce porque julgava que O Capitalpoderia tornar-se filme estruturando-se de modo similar ao Ulysses, graças à concentração nos movimentos triviais de um homem comum em apenas um dia de sua vida.
No filme Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital (Versátil, 2011), o escritor e cineasta alemão Alexander Kluge retoma o projeto de Eisenstein de maneira a potencializar alguns elementos de leitura do mundo contemporâneo bastante explorados tanto por Marx quanto por Joyce e o cineasta russo. É precisamente a partir do projeto não-realizado de Eisenstein, de filmar O Capital a partir do Ulysses, que nascem as nove longas horas do filme de Kluge. O cineasta alemão tem uma perspectiva interessante para a observação do pensamento de Marx, que está apresentada logo no início do texto do encarte que acompanha os DVDs:
- O Sr. Considera Karl Marx um poeta?
- Um poeta talentoso.
- Ele se senta na mais imponente biblioteca de Londres, faz excertos de historiografia e compõe uma história em forma de poesia em torno desses núcleos de fantasia?
- Assim surge o enfoque mais amplo de sua teoria.
- O sr. não estaria sendo injusto ao degradar esse materialista científico à condição de poeta?"
A partir desse texto de Kluge, lançamos uma hipótese para a verificação das forças interpretativas que se intercambiam em nosso quadrilátero de pensadores/artistas: tendo em vista a proposta de Kluge, não apenas o Ulysses pode ser usado como mediação ficcional para ler O Capital, mas também O Capital pode ser a mediação teórica necessária para conectar as experiências formais de Joyce emUlysses com a totalidade histórica de onde emanam tanto formas literárias quanto contradições objetivas formadoras da subjetividade sob a égide do capitalismo. O ponto de apoio para essa análise é o movimento dialético entre subjetividade e objetividade (afinal, não é esta a grande matéria dos poetas?!), ou, como afirma Kluge no texto do encarte que acompanha o conjunto de DVDs, a "longa marcha do mundo exterior para o interior do homem". Essa longa marcha estava entre as mais fundas aspirações de Eisenstein na pesquisa que engendra o conjunto de técnicas que caracterizava o seu método fílmico. Ademais, a dialética entre objetividade/subjetividade pode ser rastreada em todos os volumes de O Capital – de modo especial no primeiro, que trata mais especificamente da lógica da mercadoria e do seu alcance na organização social (coletiva) e psíquica (individual) do mundo capitalista. Mais que tudo isso, esta dialética interno/externo é uma chave para a leitura e a compreensão do imenso filme de Alexander Kluge, pois o cineasta alemão está claramente atento a ela. Lembremos a famosa passagem do Ulysses em que se contrasta a história com um pesadelo: "A história – disse Stephen – é um pesadelo de que tento despertar."i
História e poesia irmanam-se dialeticamente pela sua consistência de pesadelo e utopia. Dizendo mais: uma consistência de pesadelo que deriva precisamente do fato se ser uma forma consciente da necessidade da perspectiva da negatividade. Nesses termos, se a história (ou sua metanarrativa) é um pesadelo, a poesia é um jeito peculiar de acordar dele; por outro lado, a poesia também é um pesadelo, de que podemos acordar pela história. Unidas dialeticamente, história e poesia, tecem aos olhos do leitor atento um novo horizonte, ressignificando de uma vez por todas a palavra utopia. Assim, não haverá utopia sem o consórcio da poesia como interpretação do mundo e da história como narrativa de autoconsciência do homem relativamente ao seu lugar na luta de classes. Quando refletimos sobre esta relação história/poesia, estamos, nada mais nada menos, que operando intelectualmente, como Kluge e Joyce e Marx e Eisenstein entre o externo e o interno. Estamos nos acercando do dinamismo do próprio mundo. Um dinamismo que para Eisenstein é a própria força estruturante da forma dramática do filme.
Joyce tem, como poucos em seu tempo, uma consciência catastrófica relativamente ao avanço modernizador; algo que se exibe em seus textosii. Não são poucos os momentos em que o Ulyssesnos apresenta uma perspectiva duramente embebida em negatividade, ao descrever os movimentos triviais do mundo, os quais sem esforço podemos utilizar na composição de uma complexa mirada acerca da totalidade capitalista.
Mas pode Joyce ser historiador no Ulysses assim como Marx foi poeta no Capital? Sob certa perspectiva, poderíamos afirmar que sim; e poderíamos afirmar mais: essa consistência de revelação da história no Ulysses é um dos elementos-chave da sua atualidade. O que talvez tenha contribuído para instigar Kluge à tarefa de reler os textos de Marx não tanto com a intenção de "descrição da economia exterior e de suas 'leis', senão sobretudo o capitalismo dentro de nós." Essas contradições podem nos dar um mapa para a inteligibilidade da crise do capitalismo no início do século XXI.
Vejamos, por exemplo, a partir de um excerto do Ulysses, a problemática do entesouramento, que, conforme descrita por Marx, tem impactos no mundo objetivo e na consciência do homem ocidental. O entesouramento é um dos aspectos básicos, não é demais lembrar, para compreendermos as razões do desencadeamento da crise financeira de 1929, por exemplo; e para o clima de abalos e contradições da modernização a que o Ulysses de alguma forma dá visibilidade.
No capítulo "O catecismo", vemos a agudização dessa reificação irrestrita na descrição crua do que é a vida humana, perdida no fundo das gavetas. Não são apenas as coisas recônditas; mas o que somos nós dentro das gavetas. Vejamos o parágrafo por inteiro:
"O que continha a segunda gaveta?
Documentos: a certidão de nascimento de Leopold Paula Bloom: uma apólice de seguro de £500 na Sociedade de Seguros das Viúvas Escocesas em nome de Millicent (Milly) Bloom, resgatável aos 25 anos de idade com uma apólice nominal de £430, £462-10-0 e £500 aos 60 anos ou morte, 65 anos ou morte e morte, respectivamente, ou com apólice nominal (à vista) de £299-10-0 junto com pagamento em dinheiro de £133-10-0, opcionalmente: uma carteira bancária para o semestre terminaria em 31 de dezembro de 1903, saldo em favor do correntista: £18-46-6 (dezoito libras, catorze xelins e seis pence, esterlinos), bens líquidos: certificado de posse de £900, títulos a 4% (autenticados) do governo canadense (livres de taxação): extrato de ata do Comitê do Cemitérios (Glasnevin), referente a uma sepultura adquirida: um recorte da imprensa local a propósito de uma mudança de nome por processo cível."iii
Atentemos neste trecho do Ulysses para a forma como a linguagem se dobra à instrumentalização da lógica do dinheiro para dar a ver precisamente as contradições de seu alcance avassalador. Num parágrafo que principia falando de nascimento e termina falando de morte, temos a hipoteca de toda uma existência à especulação financeira. São títulos, bens, seguros, ações. Valores que tilintam, ainda que sem a forma de ouro ou de moeda. Trata-se uma belíssima metáfora do conceito marxista de entesouramento. "O que sou é o dinheiro; a vida minha é meu acúmulo": é o que parece nos dizer uma alma fantasmagórica de dentro da gaveta.
Marx dizia que o dinheiro deve, no capitalismo, possuir a consistência elástica e fantasmagórica de uma matéria capaz de expandir-se e contrair-se. Não nos esqueçamos de que a vida cabe numa gaveta e que Marx diz assim em O Capital: "Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção."iv
Para sobreviver, o dinheiro no capitalismo depende de que o entesouramento não seja excepcional, mas sim sistêmico, trivial. O homem comum cumpre o entesouramento, no fundo da gaveta mais comum. A disposição reveladora de Joyce está em desejar articular tudo isso aos movimentos orgânicos do personagem, mostrando que o entesourar é tornar-se homem comum, homem médio, pedestre. Um homem como Bloom é um entesourador comum: sem o "defeito" excepcional da avareza, mas com a virtude trivial da "precaução". Trata-se de alguém que incorpora a mercadoria ao próprio existir, com isso garantindo os fluxos de expansão e retração necessários à manutenção da lógica do dinheiro no capitalismo. A força da narrativa de Joyce está em revelar o dado sistêmico, global e total do comum. Não é a excepcionalidade que revela a totalidade, mas a forma despercebida e às vezes dispersa com que o cotidiano anuncia as forças da dinâmica histórica global. O método – concentrar-se nas minúcias aparentemente mais insignificantes – tornou possível um dos relatos da vida cotidiana mais completos já apresentados por um romancista.
Lendo Marx a partir da literatura, como fez Kluge (e como aqui ensaiamos) colocamo-nos diante de algumas das mais instigantes formas de questionar os mitos pós-modernos de que a história acabou e de que o único horizonte possível é a não-superação (ou no máximo domesticação) do capitalismo. A dinâmica de forças que está por trás do quadrilátero Marx-Kluge-Joyce-Eisenstein inclui certamente a ideia de que as contradições da práxis ainda podem ser captadas pela literatura, pela crítica ou pelo cinema. Ativar essas contradições já uma boa justificativa para a tarefa monumental de ler Ulysses através do Capital e de ler O Capital através do Ulysses. Se essas contradições ainda podem ser ativadas, a história em seu dinamismo peculiar permanece e nos persegue: como um pesadelo, ou como a utopia.
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Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).
iJOYCE, James. Ulysses. Trad. A. Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 30.
iiA esse respeito consultar o ensaio de Franco Moretti "O longo adeus: Ulysses e o fim do capitalismo liberal". In MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
iiiJOYCE, James. Ulysses. Trad. C. Galindo. Cia das Letras: 2012, p.1018.
ivMARX, Karl. O Capital. Livro I, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. p.253.
Fonte: O Outro Lado da Notícia

Osmarino Amâncio: um seringueiro na luta por um projeto socialista no Brasil




  Flavia Alli   no CORREIO DA CIDADANIA


Osmarino Amâncio Rodrigues, seringueiro e militante, em Brasiléia (Acre), esteve presente em duras lutas contra a destruição do meio ambiente e enfrentamentos contra fazendeiros e o governo na expulsão da população acreana dos seringais. Esteve ombro a ombro com Chico Mendes, nos empates na floresta amazônica, opondo-se à entrada do capitalismo e à destruição da região pelas madeireiras, na década de 1970. Cercado por um cenário de angústia e miséria, Osmarino continua na resistência, organizando os trabalhadores em uma guerra incansável contra o capitalismo, o qual anda de mãos dadas com o governo petista.

Neste semestre, Osmarino viajou pelo Brasil em um circuito de debates e palestras organizado por sindicatos e movimentos sociais. Em suas passagens, abordou a criminalização dos seringueiros, o extermínio dos povos indígenas e nativos. Denunciou a compra de trabalhadores através de propinas, os projetos de capitalismo verde de Marina Silva e alertou sobre a destruição da Amazônia com o Novo Código Florestal. No movimento sindical, reafirmou a importância da organização dos trabalhadores por um novo projeto de sociedade e do fortalecimento de uma central sindical que reorganize o movimento na luta de classes.

Leia, abaixo, a íntegra da entrevista concedida por Osmarino Amâncio.

Em relação à organização dos trabalhadores no movimento sindical, quais as dificuldades encontradas, no Acre, para uma resistência de enfrentamento ao governo, e os ataques que ele vem apresentando em parceria com os setores da burguesia?

Osmarino Amâncio: Primeiramente, são as instâncias geográficas da floresta. Para mobilizar a associação, o sindicato, uma cooperativa dos extrativistas, depende de caminhar muito para fazer uma convocatória boa. Depois vem a falta de formação e informação, pois aquela população vive no isolamento, onde o único meio de comunicação é a rádio nacional de Brasília, ou uma rádio local. A gente só escuta a idéia do agronegócio e a política governamental fazendo a parceria com o setor da burguesia daquela região. Outra questão é a própria falta de educação, pois é um local precário, com a educação muito fragilizada. Na floresta, as pessoas em geral terminam apenas a 4ª série do ensino primário. Isso tudo não tem impedido a classe trabalhadora de resistir contra aqueles grandes mega-projetos de madeireiras, de mineradoras, de barragens, de hidrelétricas.

É um processo que chamamos de revolucionário na luta pela reforma agrária adequada àquela região. Uma luta pelo socialismo, pois nós não reivindicamos a propriedade privada. Nós não queremos títulos de propriedades, reivindicamos o usufruto dos seringueiros. Mas, hoje, o Instituo Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), entidade criada pela Marina Silva para fiscalizar a floresta e as reservas extrativistas, tem criminalizado as lideranças dos seringueiros - os quais antes podiam colocar um roçado de subsistência, e já não podem mais queimar o roçado para plantar a lavoura para a própria subsistência. Hoje, você não pode mais matar uma caça, porque o ICMBio está proibindo. Assim, eles estão criminalizando as lideranças e a população, fazendo terrorismo dentro da reserva, andando armados. Esse é o mesmo órgão que dá licença para as barragens na Amazônia, para o manejo madeireiro, é o órgão que veio para facilitar a vida do agronegócio na Amazônia, das multinacionais e das ONGs. E, veio a serviço do grande capital, com a idéia da nova política da “economia verde” naquela região para exploração dos meios naturais.

Eles tiram o único modo de subsistência de vida dos trabalhadores. E a alternativa que dão para a gente é uma “bolsa verde”: 100 reais por mês, que não dá para comprar um saco de farinha, e ficamos impedidos de extrair os nossos produtos, pois estão proibindo fazer ramais para escoamento do produto dentro da reserva; ao mesmo tempo fazem vista grossa ao manejo madeireiro, que está muito acelerado na nossa região. Hoje, esses são os principais temas, pois se você não adere à bolsa verde, você tem que ceder ao plano de manejo. Se você não fizer o plano de manejo, tem que ceder a sua área como concessão para uma madeireira. Nenhum seringueiro tem condições de fazer plano de manejo, pois exige uma assistência técnica, um trabalho especializado. Assim, o trabalhador fica com sua área à mercê das madeireiras, das ONGS, para uma empresa multinacional fazer o plano.

O que mais preocupa é que não é só uma política do agronegócio, é uma política de Estado, do governo. O ICMBio e o Ministério do Meio Ambiente obedecem à regra da monocultura, organizada pela Monsanto. Tem-se um grande investimento do BNDES, do Banco Interamericano do Desenvolvimento para as barragens na Amazônia, para o programa de manejo madeireiro e a política do mercado de carbono. Na nossa região tem mais de 20 mega-projetos, vão detonar com aquele bioma! Se não tivermos uma atitude radical de brecar esse avanço acelerado das multinacionais, a destruição será total. No Cerrado, por exemplo, estão sendo implementadas a monocultura da soja, a cana para o etanol e as barragens. A construção das barragens na Amazônia também atende a essa política. Temos agora a construção da BR do Pacífico, que corta a região meio a meio para escoamento dos produtos de exportação.

Portanto, são investimentos para a “integração” da América do Sul, que precisam ter uma atenção especial do mundo acadêmico, das comunidades de fora da Amazônia, para que possamos fazer um grande empate contra o Estado, contra a legalização dessa destruição através da certificação do Conselho de Manejo Florestal (selo FSC). Não é um empate contra os fazendeiros e madeireiras, e sim contra o Estado.

Aí, eu pergunto: o que é destruição? Se a pessoa consegue um selo de exportação, deixa de ser “destruição” e passa a ser “sustentabilidade”. Esse é o perigo da política “auto-sustentável”, que ao conceder a certificação dá a liberação para qualquer atrocidade naquele bioma. Lá está o maior banco genético do planeta! Se não tiver uma atenção para conhecer aquela região, vamos ficar sem Amazônia em pouco tempo.

O governo e as empresas têm muito dinheiro para injetar em organizações que combatem os trabalhadores na Amazônia, com respaldo logístico grande. De que forma eles têm intervindo na realidade e qual a resposta dos trabalhadores frente à situação?

Osmarino Amâncio: Quando nós organizamos os empates, na década de 1970 e 1980, 100% desse pessoal era analfabeto, não sabia ler e escrever. Mas eles tinham vontade de defender a vida. Quando se tem vontade de viver, criam-se as condições, o “anticorpo”, como chamamos na floresta. Na Amazônia, para viver, tem que se adaptar e criar anticorpos, pois não se vai enfrentar somente o Estado, a União Democrática Rural (UDR), as grandes indústrias, as mineradoras. Vai enfrentar também a cobra, a febre amarela, a malária. É uma série de inimigos que o seringueiro consegue combater. E conseguiu fazer esse enfrentamento. Mas o seringueiro está adaptado à floresta. Eu diria que o pessoal consegue sobreviver com a dor por conta da vontade de viver. Não tem um dia que o seringueiro não sinta dor na floresta. Ou ele é mordido por tucandeira, cobra, marimbondo, ou dá uma topada, sofre um corte... Ele convive diariamente com dor, estando adaptado a tais questões.

Para discutir a intervenção do grande capital na nossa comunidade, estamos nos organizando em associações. Cada seringal, cada comunidade que tem 50 ou 100 famílias, organiza um núcleo de base. Além dos sindicatos, das oposições sindicais, estamos também na discussão de desfiliação dos sindicatos da CUT, já que ela vive em lua de mel com o governo. Estamos em um processo de fortalecer a CSP Conlutas, uma central que para nós tem tido uma postura de defender as propostas da classe trabalhadora, a reforma agrária sob controle dos trabalhadores e o enfrentamento ao grande capital contra a depredação dos meios naturais.

Outro movimento é em direção às universidades, fazendo um desafio à juventude, ao setor acadêmico e intelectual. Vamos intervir na Rio+20, com todas as nossas idéias e documentos, denunciando o governo e as ONGS como USAID, WWF, Greenpeace, todas as entidades que defendem o “desenvolvimento sustentável” para evitar o aquecimento global, que acham só ser possível de evitar colocando os meios naturais no mercado. Isso diz respeito à política do mercado de carbono, por exemplo, que libera o norte e os países ricos (Japão, EUA, Alemanha...) para continuarem poluindo no resto do mundo e comprando terras na Amazônia. Assim como os grandes plantadores de soja vão continuar trabalhando no monocultivo do plantio e dizendo “nós podemos destruir aqui, mas estamos preservando na Amazônia”.

E tem um povo nativo que não é levado em consideração na região, o qual vive da pesca, da caça, da castanha, do roçado de subsistência. Esse povo está se tornando, para os governantes, o principal empecilho na implementação dos mega-projetos. Estão sendo criminalizados por uma coisa que sempre fizeram. Agora foi decretado em nossa região o “fogo zero”: todo mundo tem que cozinhar à lenha. Como você vai decretar “fogo zero”, quando o seringueiro cozinha à lenha? O trabalhador precisa do carvão para fazer comida, da lenha para fazer a comida, e queimar o seu roçado para plantar a macaxeira, o milho, criar os seus bichinhos. Nós trabalhamos com leguminosas, não vamos desmatar na beira dos igarapés, ou derrubar a floresta, pois dependemos da floresta para nossa sobrevivência. No entanto, o governo incentiva o desmatamento através do plano de manejo. Quando o governo o implementa, está incentivando essa destruição, pois a cada 50 mil hectares desmatados, cinco mil ficam sem floresta alguma.

Para nós a organização está se dando por um “trabalho formiga”, pois é muito difícil, devido ao deslocamento e locomoção para a convocação dos trabalhadores às reuniões no seringal. Cada seringal tem uma associação, um núcleo de base, onde são feitas as discussões. Porém, elas estão sendo minadas pelo governo com esses projetos, em que ele passa a pagar um salário para algumas lideranças fazerem propaganda dos programas governamentais. Isso traz muitas dificuldades ao movimento na região. Já conseguimos ganhar o sindicato de Xapuri, tiramos a pelegada, e estamos organizando a oposição sindical em Brasiléia. Será um processo difícil, mas não impossível, porque nós não temos opção. Ou a gente se organiza e enfrenta esse grande capital, ou então seremos expulsos, e eles farão toda a destruição na Amazônia.

Como é feita essa mencionada cooptação dos trabalhadores, de modo a retirá-los dos movimentos e eleições sindicais, e qual a interferência que isso tem causado na luta de classes?

Osmarino Amâncio: Essa “compra” das pessoas é feita de várias formas: oferecem bolsas de estudo, na Bolívia, para tirar as lideranças do movimento; pagam salários; dão cargos no governo. O último investimento foi 500 mil reais na compra de tratores, dizendo que se as pessoas fechassem com tal chapa, eles dariam tratores para a comunidade. Tínhamos quatro chapas disputando o sindicato; hoje estamos com duas... As pessoas que não têm consciência política ficam vulneráveis a serem compradas por essa política do governo, pois a pobreza é muito grande. A comunidade que ganha um trator acha uma coisa estupenda. E as pessoas não têm consciência da Bolsa Verde que estão assinando, a qual dura apenas dois anos – e não sabem que qualquer “deslize” os fará serem expulsos da reserva.

A criminalização é tática para o governo do estado do Acre. Ele atrelou todo o movimento, levou os parentes do Chico Mendes, por exemplo, que receberam cargos comissionados e salários do governo para fazerem o comercial do manejo madeireiro, ficarem contra o movimento e defenderem o governo. Nós estamos resistindo a isso há quatro décadas! A gente achava que com a CUT e o PT teríamos um alívio, mas essas entidades se voltaram contra nós, contra os próprios trabalhadores. A CUT vive em lua de mel com o governo. O PT obedece às regras do agronegócio. O Lula, antes de sair da presidência, disse que os usineiros eram os heróis! As áreas indígenas não foram demarcadas e a reforma agrária não foi feita nesse país! Nós sofremos um golpe, uma traição muito grande, inclusive pela Marina Silva, que criou a Lei de Florestas Públicas, a qual privatiza 50 milhões de hectares de floresta para promover a biopirataria. O próprio Estado cria, aparelha, atrela o movimento e as pessoas.

A luta de classes é uma luta muito dura. O Estado é corrupto, as instituições estão apodrecidas, para sobreviver oferecem propina às lideranças. Imagina uma liderança que está na maior pobreza, recebe qualquer proposta, e cede... Mas é preciso reconhecer que se receber a propina a consciência vai se voltar contra si próprio. Por isso temos de fazer o trabalho em que acreditamos.

A aprovação do Novo Código Florestal vem para alargar as possibilidades de exploração na floresta amazônica, ou apenas para legitimar burocraticamente uma prática e uma política existente no país há décadas?

Osmarino Amâncio: O Novo Código Florestal só está legalizando toda a destruição que foi feita pelas multinacionais na Amazônia. Tem perdoado toda a atrocidade do desmatamento que foi feito, e consolidado a proposta da economia verde, facilitando o mercado dos bens naturais. O Novo Código Florestal é, mais do que nunca, concentrar terras nas mãos de quem têm condição financeira. Vem para legitimar aquelas mesmas pessoas que deveriam repor o estrago que fizeram, para oficializar as práticas do agronegócio, o monocultivo, a soja, o eucalipto, a cana para o etanol... E em nome do “desenvolvimento sustentável” temos uma lei que garante, sem critério algum, a implementação dessa política na Amazônia, de forma inconsequente. A BR do Pacífico, por exemplo, acabou de ser consumada.

O que vamos exportar? A madeira, os produtos naturais extraídos pelas empresas e pelo latifúndio. Uma lei do Sistema Nacional de Unidade e Conservação (SNUC) tirou o poder dos seringueiros de decidir sobre os projetos para a Amazônia. Antes havia um plano de utilização que dizia que qualquer projeto para a Amazônia teria de passar primeiro pelo crivo da assembléia dos seringueiros. O SNUC tirou esse poder.

Hoje, quem decide é o conselho deliberativo, criado pelas entidades governamentais. A criação da Lei de Florestas Públicas, da Marina Silva, facilitou a concessão para desmatar a região. Essa concessão dura 40 anos, e ao fim deste prazo, após explorar tudo o que poderia, ela pode ser renovada por mais 30 anos. Portanto, a lei privatiza a Amazônia por pelo menos 70 anos. Isso vai destruir com culturas milenares que vivem nesses locais, com a população nativa. Acabarão com a vida, sendo que ali se encontra o maior ar condicionado do planeta, o ar que refrigera a Terra!

A hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo, tem 500 km² que serão inundados. A de Santo Antônio e Jirau são duas obras que estão ultrapassando os 40 bilhões de reais. Tudo isso daria para resolver o problema da educação, da saúde, implementar bancos de germoplasma, investir em pesquisa e evitar os desastres ecológicos, consequências do desastre econômico e social do sistema que vivemos. O Novo Código Florestal é o menino dos olhos do latifúndio, do agronegócio, do hidronegócio.

Nesse cenário, de que modo tem se dado a repressão aos povos indígenas e nativos daquela região com a entrada massiva das grandes corporações no extermínio dessa população?

Osmarino Amâncio: Primeiro, eles tentam usar essas populações que têm dificuldade de entender o que está por trás de cada projeto e passam a fazer a tal da “formação”, para convencer os índios a aceitar o plano de manejo madeireiro nas áreas indígenas. É a mesma coisa que a igreja fez quando queria “salvar” os índios e mandá-los para o céu. Assim, todos estão lá, virando evangélicos, obedecendo à cartilha governamental. A grande maioria é desinformada, e sem condições de avaliar o conteúdo disso. Essa é uma das práticas que eles têm usado.

A outra é a criminalização. Por exemplo, no meio indígena, os jovens quando completam 16 anos casam-se. Eles acusam esses jovens de estupro, ou até mesmo as lideranças, a fim de exterminar esse povo, impedindo sua reprodução. Os índios estão casando e ficando escondidos, pois não podem mais se relacionar, por serem acusados de estupradores. A justificativa seria uma lei no Brasil que diz que ter relações sexuais com uma menina menor de idade é estupro. No entanto, na floresta é cultural homens e mulheres se casarem com esta idade (16). Eles confundem a população, e acabam criminalizando não só os índios, mas os seringueiros também.

Podemos ver que não é somente com as leis e programas ambientais (Bolsa Verde, Plano de Manejo etc.) que eles criminalizam. Outras leis, como a questão da prostituição infantil, têm sido usadas para este fim. Nas cidades, por exemplo, o narcotráfico tem de fato praticado isso e o governo não fiscaliza. O exemplo é Belo Monte. Altamira tem 100 mil pessoas, mas estão chegando 120 mil para trabalhar, é um caos social. A prostituição naquele lugar vai triplicar, o narcotráfico vai se aproveitar da juventude, e como o Estado vai evitar o estupro e a barbárie? Não vai evitar! O Estado cria mecanismos, a gente vê como exemplo as obras da Copa do Mundo, pelos quais estão expulsando as populações dos bairros das periferias e jogando para fora das cidades e dos centros urbanos, indenizando com migalhas. As obras da Copa institucionalizam a criminalização, jogando as pessoas em lugares que não se tem estrutura para sobreviver, sem escolas, postos de saúde, transporte etc. É um problema orquestrado pelo próprio sistema, e nós estamos no meio disso tudo.

Eu assisti pela televisão o que fizeram em Pinheirinho (SP). Teve um despejo numa cidade inteira praticamente, para defender o Naji Nahas, para defender o sistema capitalista, a propriedade privada! A sociedade capitalista que vivemos é só barbárie! Na floresta, nós compreendemos que essas populações estão sendo expulsas de suas residências, sob o nome de “remoção”. O Estado tem utilizado de vários nomes para deturpar a realidade nua e crua que é esse sistema de acumulação de riqueza na mão de poucas pessoas.

Como o “capitalismo verde” de Marina Silva é compreendido pelos trabalhadores e seringueiros na Amazônia?

Osmarino Amâncio: Virou uma doença! As pessoas não entendem o significado da nova economia verde implementada na Amazônia. O desenvolvimento sustentável, na nossa compreensão, é diversificar uma economia sem ameaçar a fonte de renda e as gerações futuras. No caso, a implementação dessa economia verde está ameaçando a fonte de renda, pois, por exemplo, Belo Monte não é sustentável – tem gerado energia a um grupo de empresas para continuarem depredando a natureza, explorando trabalhadores e inundando uma grande área da floresta, que vai acabar com várias espécies e culturas. E tampouco a energia da usina vai servir para a população.

Outro exemplo é o manejo madeireiro. Se você tira toda a floresta para o manejo – sendo que ela é fonte de renda da população local, é ela que evita, também, o aquecimento global –, desequilibra ambiental e socialmente toda a região. Eu vivo da castanha, se acabar a floresta como vou sobreviver? Não fui ensinado a trabalhar na agricultura, e muito menos a região é propícia à agricultura. O aproveitamento racional daquela região não está sendo feito pelos grandes projetos de expansão com a proposta da economia verde. A Marina Silva organizou junto com o Lula este projeto, de mãos dadas com a Monsanto – o primeiro estrago foi a aprovação dos transgênicos – e depois veio a Lei de Florestas Públicas e o mercado de exportação dos bens naturais. Quem tem o selo de exportação pode destruir o que é ilegal de destruir, mas que por conta do selo vira “legal”.

O grande desmatamento vem do latifúndio, não dos pequenos proprietários. Em 1980, no estado do Acre, 10 pessoas eram donas de oito milhões de hectares de floresta – mais da metade do estado. A MANASA, hoje, é dona de 4 milhões de hectares de terra. As pessoas no governo foram as que tiveram mais capacidade de dar estrutura para o agronegócio, em especial o governo Lula com a Marina Silva no Ministério, e agora a Dilma Rousseff com essa ministra do Meio Ambiente (Izabella Teixeira). Eles não têm critérios para aprovar leis que destroem todo um potencial natural. As barragens são feitas sem discussão em audiência pública. É uma vergonha! Os projetos vêm todos prontos para serem implementados. Se as pessoas resistem, vão para o enfrentamento com o exército e a polícia. A Força Nacional, hoje, não sai de dentro da floresta para criminalizar os seringueiros e os índios.

E como se insere a Rio +20 nesse cenário?

Osmarino Amâncio: A Rio +20 será para selar, como um todo, entre sociedade e governo, uma proposta de “economia sustentável”. Esta proposta é uma idéia do modelo capitalista que temos, que se apropriou da natureza e da ecologia para ganhar muito dinheiro, sem se preocupar com o desastre que vai acontecer nas gerações futuras. A Marina foi a peça chave no Ministério do Meio Ambiente, arrodeada de ONGS e entidades que fazem o comercial do selo de exportação FSC. Isso é uma proposta perigosa, de lucro imediato, de concentração da riqueza da natureza. Não deveria estar se comercializando a floresta, pois ela é direito de todos. A natureza que se evoluiu para a humanidade tem hoje uma minoria de capitalistas se apropriando dela, que cria as leis e privatiza em nome da “sustentabilidade”.

É muita responsabilidade de todos fazer o enfrentamento a essa proposta que será selada na Rio +20. Essa é uma discussão que vem desde a década de 1970, em que já estávamos realizando os empates na Amazônia contra a destruição, depois veio a ECO-92 com essa discussão. O agronegócio não está preocupado com as consequências disso. Apenas com a soja, com a cana para o etanol, as barragens. Na Amazônia tem uma onda de açudagem em complemento às barragens, tudo pensado para a exportação dos meios naturais. O seringueiro que vive do seu roçado de subsistência, da castanha, da caça e da pesca, hoje é o vilão, considerado criminoso, mas ele vive há centenas de anos na floresta e nunca a destruiu. No entanto, é ignorado o que o grande capital faz, e é criminalizado o seringueiro que vive da sua cultura e costumes de subsistência na região.

Qual projeto que você acredita que falta para o Brasil e como se deve dar essa unidade entre movimentos populares, trabalhadores e juventude para superar o sistema que vivemos, especialmente sob essa nova capa verde?

Osmarino: O que todo mundo tem de ter consciência é que não se deve aderir a tal projeto, pois ele é do sistema capitalista. Tem que ser descartado! Temos que pensar que a sociedade capitalista não serve para a classe trabalhadora, não serve para a humanidade. Precisamos pensar numa sociedade socialista, numa sociedade humana, numa sociedade libertária. Em relação ao projeto econômico, é só respeitar as iniciativas das populações tradicionais que sempre sobreviveram sem financiamento de banco. Os índios, seringueiros e populações tradicionais nunca precisaram de dinheiro de banco. Tem que respeitar, pois cada povo indígena é uma nação. Índios, ribeirinhos, pescadores. O que a gente precisa, na verdade, é uma educação de qualidade. E o sistema capitalista não dá isso, além de excluir a classe trabalhadora das universidades, da escola, do acesso à educação. Precisamos de uma sociedade libertária. E o respeito a cada categoria, permitindo que implemente sua arte, sua cultura.

A educação precisa ter participação dos estudantes e professores na elaboração do que nela vai ser investido. Tem que ter transparência desde o calendário até os currículos formulados. A comunidade tem que participar deste processo e tem que estar de acordo com a necessidade de cada realidade. Temos de fazer este novo projeto econômico. Não podemos aceitar essa receita pronta, que já demonstrou não ser mais viável – um projeto para meia dúzia de pessoas, organizado pelas multinacionais, pelo agronegócio e o latifúndio.

Estamos em luta de classes, e temos de ter consciência disso. Temos de fazer um desafio à juventude, que em sua maioria está “viajando” na internet e acredita que vai promover uma mudança através dela, ou então passeando nos shoppings, delirando com o mercado de consumo. Só que precisa de três planetas para suportar a atual demanda. Se não tivermos cuidado com o conto do comercial do consumismo, não vamos evitar a depredação. As famílias nas grandes cidades têm três, quatro carros. A indústria automobilística é a que mais polui no mundo. No Brasil, Lula tirou o imposto dos carros para as pessoas comprarem mais. E, no entanto, não criou condições para a reforma agrária, não tirou a terra concentrada da mão de poucas pessoas.

Um projeto que não presta, portanto, devemos construir um novo. E o novo projeto todos sabem qual é: discutir o lucro, o respeito à vida, o fim da concentração de riqueza e da exploração do homem. Isso só vai ser possível quando a sociedade se rebelar, se levantar contra o sistema capitalista, dando um basta. Temos que apoiar as ocupações de terra, questionar a gestão das fábricas, da educação, da saúde. Temos de ir nos apropriando de acordo com a capacidade de mobilização que precisamos. E nesse sentido também acredito que a Conlutas pode ser um seio aglutinador destas categorias que querem confrontar a burguesia na luta de classes.

Flavia Alli é jornalista.