Terceira etapa da grande crise: a Grécia em
toda parte
À sombra da crise financeira, floresce
sobretudo na Europa o negócio com a dívida pública. Os Estados são os
melhores devedores que um credor pode desejar. A lógica é perversa e
beira o surrealismo. Nos últimos meses, o Banco Central Europeu inundou
os bancos europeus com créditos baratos, negando-se ao mesmo tempo a
emprestar dinheiro a Estados membros em dificuldade. Os bancos europeus –
a começar pelos alemães – tomaram empréstimos do BCE a juros ínfimos
para oferecê-los como empréstimos ao Estado grego com taxas de juro
elevadíssimas. Ao mesmo tempo, como resposta à crise, propõe novas
"reformas" neoliberais. O artigo é de Michael Krätke
Como era previsível, à crise bancária e
financeira não tardou em seguir a crise econômica mundial. E a elas vem
somar-se agora a crise das finanças públicas, terceira etapa da Grande
Crise. Dívida, culpa e expiação, uma luta encarniçada: os cidadãos devem
subsidiar o generoso resgate dos bancos. As dívidas públicas ampliadas
aceleradamente são usadas para alimentar essa lógica. Alguns pequenos
povos – os islandeses no Norte, os gregos no Sul – tentam resistir a
este absurdo dominante e se negam a pagar pela crise. Do dia para a
noite, as dívidas de terceiros se converteram em problema de todos.
De
acordo com as últimas cifras do FMI, cinco dos Estados do G-8 têm um
déficit público superior a 100% do PIB, com o Japão (200%) liderando
esse ranking. Alemanha e Canadá, até aqui, estão abaixo do patamar dos
100%. Já os membros da União Européia – Espanha, Portugal, Itália e
Grécia – estão beirando esse limite ou já o ultrapassaram. Nunca antes
em tempos de paz o déficit público havia subido de maneira tão extrema
nos países capitalistas desenvolvidos como vem ocorrendo agora desde o
início da crise financeira mundial, no final de2007.
Somente em
2009, os títulos de obrigações emitidos pela República Federal da
Alemanha cresceram até alcançar a cifra de 1,6 trilhão de euros. Só em
1995, quando se fizeram sentir de verdade pela primeira vez os custos da
reunificação, o salto da dívida pública alemã registrou um salto maior.
Nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), o nível médio dos déficits públicos chegou a alcançar cerca de
80% do Produto Interno Bruto (PIB) e, em poucos anos, poderia rebaixar
de maneira generalizada a marca dos 100%. A Grécia está em todas as
partes.
Os economistas estão fortemente divididos em matéria de
dívida pública. Um Estado que contrai pouca dívida pública compromete o
futuro; um Estado com demasiados credores arruína a economia nacional.
Na Alemanha, como em todos os países governados por neoliberais, impera o
dogma segundo o qual as dívidas públicas são um mal em si mesmas, levam
à inflação, a uma carga fiscal exorbitante e à bancarrota do Estado.
Tentam fazer esquecer, contando para isso com todo o poder dos meios de
comunicação, a conexão entre crise financeira, socorro bancários e
explosão da dívida pública. Em troca, entoam a cantilena do arrocho e
dos cortes com o refrão do “Estado social insustentável”.
Não há
razão para o pânico. Nenhum Estado europeu tem que ir à falência.
Tampouco os gregos devem devolver esses quase 300 bilhões de euros
(cerca de 130% de seu PIB), mas sim devem limitar-se ao refinanciamento
regular, isto é, ir substituindo regularmente as velhas dívidas por
dívida nova. Em princípio, isso não deveria representar o menor
problema. O Estado, dotado de monopólio fiscal e monetário, é o melhor
devedor. Ao contrário dos grandes bancos, só pode quebrar quando toda a
economia nacional está arruinada. Mas, apesar da crise, isso não pode
ocorrer em nenhum lugar da União Européia.
Quanto mais crescem as
dívidas dos Estados, mais se coloca dívida pública em alguns mercados
financeiros que, em geral, estão ávidos em comprá-las, inclusive com
ganhos de cotização, porque os empréstimos oferecidos estão super
valorizados. Nem a Grécia teve problemas no início do ano para colocar o
triplo da dívida nos mercados financeiros. No conjunto da União
Européia, emitiram-se em 2008 mais de 650 bilhões de euros de dívida
pública. Em 2009, foram mais de 900 bilhões. Em 2010, segundo as
estimativas mais prudentes, esse valor chegará a 1,1 trilhão de euros.
O
conjunto dos Estados da União Européia já tem mais de 8 trilhões de
dólares inscritos como dívida pública. Os EUA os acompanham com mais de
2,3 trilhões de dólares de dívida pública fresca. O negócio com os
títulos de dívida pública floresce como nunca. Por que, então, a
inquietude nos mercados financeiros? Por que a repentina preocupação com
as dívidas da Grécia, Itália, Espanha, Portugal ou Irlanda? De onde vem
o medo de uma bancarrota pública na qual, manifestamente, os mercados
financeiros não acreditam nem um pouco? Agora como antes, os pacotes de
dívida pública grega, espanhola e portuguesa são comprados com pães
quentes saídos do forno; são tão desejados quanto os títulos públicos
alemães. Naturalmente, com suculentas cobranças pelo risco, o que torna
ainda mais rentável o negócio com esses pacotes.
A dívida pública
é mais velha que o capitalismo moderno. A bancarrota do Estado foi
outrora – antes do descobrimento do déficit público permanente – um meio
bm provado de que se serviam os governantes para submeter seus
credores, que se vingavam com juros exorbitantes. Em nossos dias, a
falsa demagogia sobre os perigos da bancarrota pública é um meio
sumamente efetivo de submeter governos, povos e nações pretensamente
soberanos aos interesses dos mercados financeiros. Se o crédito de um
Estado é posto efetivamente em dúvida, isso serve sobretudo aos credores
e, hoje em dia, a regra geral é que os credores não são outros Estados,
mas sim investidores privados, bancos, companhias seguradoras e fundos.
Uma parte considerável da riqueza de uma nação vai parar em seus
bolsos.
As meras taxas de déficit e de dívida pública pouco dizem
sobre o risco efetivo do devedor. Obviamente, os leigos em economia que
formam a classe política adoram essas taxas, porque elas desviam a
atenção das verdadeiras debilidades da economia nacional (por exemplo,
no caso da Alemanha, a extrema dependência das exportações). Também se
simplificam de muito bom grado os tipos de juros, a relação entre as
receitas fiscais anuais e os juros pagos anualmente. Quando, como ocorre
agora na Grécia, as receitas fiscais caem, então os tipos de juros
sobem rapidamente até 30 ou 40%. Quando isso ocorre, ou seja, quando o
serviço da dívida gera um rombo no orçamento público, o país afetado
cai, efetivamente, na armadilha devedora. Para evitá-la é preciso
reduzir a carga de juros. Uma comunidade como a formada pelos
euro-países poderia conseguir isso de maneira mais simples, fortalecendo
a credibilidade de um membro como a Grécia sem necessidade de aumentar a
pressão de sua dívida pública. Com isso, seriam desfeitas todas as
necessidades populistas de Merkel e companhia.
Foram e seguem
sendo os bancos – no caso, os europeus – os compradores da dívida
pública grega, os controladores da mesma e os principais responsáveis
por sua crise financeira: seguradoras e institutos bancários franceses,
suíços e alemães são os principais credores, seguidos de longe por
bancos britânicos e estadunidenses. Os bancos portugueses possuem quase
tanta dívida pública grega quanto os dos EUA.
Não resta dúvida:
os déficits públicos podem ser enxugados com uma vigorosa inflação que
desvalorize os títulos da dívida e reduza os juros nominais que o Estado
tem que pagar por esses títulos. Mas, para ajudar no curto prazo, a
inflação teria que ser galopante. Apesar de uma dívida pública crescente
em escala planetária, isso é agora praticamente impossível, pois, dado
que existem supercapacidades estruturais em praticamente todos os ramos
da economia, os preços podem apenas levantar a cabeça. Por ora, o
impulsionador dos preços é o Estado e algumas grandes corporações
empresariais capazes de controlar a energia e os recursos. E isso não
basta para uma hiperinflação.
Que saída resta então? Pois bem,
por uma vez só e para variar um pouco, por que não proceder com bom
juízo em vez de adotar zelo dogmático e tendência populista? Seria
possível ajudar o povo grego de modo simples e efetivo sem aumentar um
centavo a dívida pública do país. Por exemplo, com eurobônus ou créditos
do Banco Central Europeu (BCE). Bastaria agarrar-se à regra
extraordinária que permite que os bancos centrais da Zona Euro aceitem
dívida pública e obrigações da Grécia e de outros países.
Para
evitar crises deste tipo no futuro faria mais sentido mudar as regras.
Não tem nenhuma lógica econômica que os estatutos do BCE proíbam comprar
e possuir dívida pública dos países membros da Zona do Euro. Conforme
essa regra absurda, o BCE inundou nos últimos meses os bancos europeus
com créditos baratos, negando-se ao mesmo tempo a emprestar dinheiro a
Estados membros. Ao invés disso, os bancos europeus – a começar pelos
alemães – tomaram empréstimos do BCE a juros ínfimos para oferecê-los
como empréstimos ao Estado grego com taxas de juro elevadíssimas. Bonito
negócio. Ackerman (1) e companhia estão fascinados.
Não se trata
só de necessidade; a coisa tem método. Com o medo da bancarrota pública
e a ameaça de um caos monetário em caso de queda do euro, promovem-se
novas “reformas” neoliberais. Na Espanha, Itália, Portugal e Inglaterra;
a ordem do dia é a aposentadoria aos 67 anos. Em toda parte elas impõem
aos cidadãos comuns - não aos proprietários de capital e de patrimônio
– drásticos aumentos de impostos. Por toda parte se cortam serviços
públicos, se reduz o setor público. Impulsionada agora pela situação de
suposta emergência financeira do Estado, avança-se irresponsavelmente na
privatização da propriedade pública. Os gregos são massacrados, os
portugueses são torrados; as facas contra a Espanha perfilam-se com zelo
digno da melhor causa. De te fabula narratur (A história fala de ti).
(1)
Josef Ackerman é o presidente executivo do Deutsche Bank, o principal
banco privado alemão.
(*) Michael R. Krätke, membro do Conselho
Editorial de Sinpermiso, é professor de Política Econômica e Direito
Tributário na Universidade de Amsterdan, investigador associado ao
Instituto Internacional de História Social dessa mesma cidade e
catedrático de Economia Política e diretor do Instituto de Estudos
Superiores da Universidade de Lancaster, na Inglaterra.
Tradução:
Katarina Peixoto