sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O empobrecimento do debate político



Vladimir Safatle no CARTA CAPITAL

Há várias maneiras de despolitizar uma sociedade. A principal delas é impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida infinitamente como um mantra.
Isto é o que ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os males da vida nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da saúde à escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção. Dessa forma, não há mais debate político possível, pois o combate à corrupção é a senha para resolver tudo. Em consequência, a política brasileira ficou pobre.
Não se trata aqui de negar que a corrupção seja um problema grave na vida nacional. É, porém, impressionante como dessa discussão nunca se segue nada, nem sequer uma reflexão mais ampla sobre as disfuncionalidades estruturais do sistema político brasileiro, sobre as relações promíscuas entre os grandes conglomerados econômicos e o Estado ou sobre a inexistência da participação popular nas decisões sobre a configuração do poder Judiciário.
Por exemplo, se há algo próprio do Brasil é este espetáculo macabro onde os escândalos de corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e governo.
O que nos deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado tenta jogar o escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores da mídia nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos lados. O chamado mensalão demonstra claramente tal lógica. O esquema de financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido gestado pelo presidente do principal partido de oposição. Situação e oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha ocorrido.
Uma verdadeira indignação teria nos levado a uma profunda reforma política, com financiamento público de campanha, mecanismos para o barateamento dos embates eleitorais, criação de um cadastro de empresas corruptoras que nunca poderão voltar a prestar serviços para o Estado, fim do sigilo fiscal de todos os integrantes de primeiro e segundo escalão das administrações públicas e proibição do governo contratar agências de publicidade (principalmente para fazer campanhas de autopromoção). Nada disso sequer entrou na pauta da opinião pública. Não é de se admirar que todo ano um novo escândalo apareça.
Nas condições atuais, o sistema político brasileiro só funciona sob corrupção. Um deputado não se elege com menos de 5 milhões de reais, o que lhe deixa completamente vulnerável -para lutar pelos interesses escusos de financiadores potenciais de campanha. Isso também ajuda a explicar porque 39% dos parlamentares da atual legislatura declaram-se milionários. Juntos eles têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de reais. Ou seja, acabamos por ser governados por uma plutocracia, pois só mesmo uma plutocracia poderia financiar campanhas.
Mas como sabemos de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará a colocar em questão as distorções do sistema político brasileiro, ficamos sem a possibilidade de discutir política no sentido forte do termo. Não há mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação popular nos processos decisórios, constituição de uma democracia direta, o papel do Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico realmente competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como queremos financiar um sistema de educação pública de qualidade e para todos. Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de zero.
Tem-se a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi dada (programas amplos de transferência de renda e reconstituição do mercado interno). Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou realmente na pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil continua a ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo. Sequer temos imposto sobre herança. Mas os próximos meses da política brasileira serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns políticos cairão para a imperfeição da nossa democracia continuar funcionando perfeitamente.

E se o golpe de 2005 tivesse dado certo?


Por Emir Sader

Um historiador inglês (Neill Ferguson, História virtual) se dedicou a pensar vias alternativas daquelas que triunfaram efetivamente na história realmente existente, como exercícios de pensamento sobre o que teria sido se não fosse. Por exemplo: e se a Alemanha de Hitler tivesse triunfado na Segunda Guerra? E se a URSS não tivesse desaparecido? E outras circunstâncias como essas.
No Brasil podemos pensar o que teria acontecido se várias tentativas de golpe militar – antes e depois da de 1964 – tivessem triunfado, o que teria acontecido com o Brasil. Um bom exercício também para entender o presente, quando as mesmas forças que protagonizaram essas tentativas no passado – as fracassadas e a vencedora de 1964 – se excitam de novo e, como toda força decadente, tratam de dar aos estertores da sua última tentativa, uma dimensão épica, que somente uma classe que não pode olhar para sua vergonhosa historia golpista, pode fazer. Juizes, jornalistas, políticos derrotados, usam os superlativos que suas pobres formas de expressão permitem, para falar “do julgamento do século”, do “maior caso de…”.
Pudessem assumir a história do Brasil como ela realmente ocorreu e ocorre, se dariam conta que o maior julgamento da nossa história teria sido o da ditadura militar – aventura da qual essas mesmas forças participaram ativamente -, que destruiu a democracia no país, violou todos os direitos humanos, em todos os planos – políticos, jurídicos, sociais, culturais, econômicos -, abriu as portas para o assalto do Estado e do pais às grandes corporações nacionais e internacionais, impôs a ditadura também no plano da liberdade de expressão, prendeu, torturou, assassinou, fez desaparecer, alguns dos melhores brasileiros.
Em suma, passar a limpo essa página odiosa da nossa história – que tem as impressões digitais dos mesmos órgãos de comunicação que lideraram a ofensiva golpista de 2005 – teria sido o maior julgamento da nossa história, onde seriam réus eles mesmos, junto à alta oficialidade das FFAA, grande parte dos empresários nacionais e internacionais, entre outros.
Podemos, por exemplo, especular o que teria sido o país se tivesse triunfado o golpe contra Getúlio, em 1954. Era um movimento similar ao que triunfou uma década depois, com origem na Doutrina de Segurança Nacional, típica ideologia da guerra fria. Na Argentina, por exemplo, a queda de Peron, um ano depois do suicídio do Getúlio, introduziu o tipo de militar “gorila” (a expressão nasceu na Argentina, com o golpe de 1955), que se generalizaria a partir do golpe brasileiro.
Na Argentina, com a proscrição do peronismo, Arturo Frondizi conseguiu se eleger presidente, mas nem ele, nem os presidentes ou ditadores que o sucederam – houve novo golpe em 1966, que também fracassou, como o de 1955 – conseguiram estabilizar-se, frente à oposiçao do peronismo, principalmente do seu ramo sindical, que tornou impossível a vida a todos os governos, até o retorno de Peron, em 1973.
No Brasil, um objetivo central do golpismo era evitar a continuidade do getulismo, expressada no JK, mas também no Jango. A famosa frase – suprassumo do golpismo – de Carlos Lacerda, de que “Juscelino não deveria ser candidato; se fosse, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, não deveria poder governar”, espelhava aquele objetivo.
Se Getulio nao tivesse apelado para o gesto radical do suicídio, para brecar a ofensiva golpista, o movimento de 1964 teria surgido uma década antes. Ao invés das eleições relativamente democrática de 1955, teríamos tido uma ditadura militar mais ou menos similar à de 1964. As consequências teriam sido ainda mais catastróficas, porque o sacrifício do Getúlio conquistou dez anos, que o movimento popular aproveitou para se fortalecer amplamente. Nessa década avançou não apenas a industrialização, mas também o movimento sindical e outros movimentos populares, assim como a consciência social na massa da população. Uma ditadura – ou algum regime duro, mesmo se recoberto de formas institucionais, mas que impedisse a continuidade do regime getulista – teria atuado sobre um movimento popular com muito menor capacidade de organização e de consciência social.
Na Argentina os militares tiveram que, em prazos mais ou menos curtos, convocar novas eleições, o fizeram depois de prescrever o peronismo, a grande força politica e ideológica, do campo popular argentino. No Brasil, teriam feito algo similar, castrando a democracia brasileira da vitalidade que os movimentos populares possuíam e imprimiam ao país.
De qualquer forma, grande parte dos retrocessos que a ditadura
impôs ao Brasil, teriam sido antecipados por um movimento de direita que tivesse se apropriado do Estado brasileiro em 1964. Nossa história seria ainda pior do que ela foi, a partir do golpe triunfante de 1964.
Outras tentativas golpistas existiram durante o governo do Juscelino, pelo menos duas de caráter militar – por membros da Aeronáutica -, de menor monta, mas as articulações golpistas nunca deixaram de existir, de tal maneira que os antecedentes do golpe de 1964 vem da fundação da Escola Superior de Guerra, por Golbery do Couto e Silva e Humberto Castelo Branco, vindos da guerra na Itália, sob influência e patrocínio diretos dos EUA, que desembocou finalmente no golpe vitorioso de 1964, que não por acaso teve nesses dois militares seus protagonistas fundamentais.
E se nos perguntarmos o que teria sido do Brasil se o movimento de um golpe branco contra o Lula – que poderia ter sido um impeachment ou uma derrota eleitoral em 2006 – tivesse triunfado?
Se nos recordamos que o candidato da direita era o neoliberal acabado que é Alckmin, podemos imaginar os descalabros a que teria sido submetido o país. (O que torna ainda mais absurda a posição da ultra esquerda, que se absteve ou pregou o voto nulo diante da alternativa Lula ou Alckmin.) Só para recordar uma circunstância concreta, quando Calderon triunfou no México, de forma evidentemente fraudulenta, nas eleições presidenciais de julho de 2006, Alckimin saudou-a como o caminho que o Brasil deveria seguir. (Ver artigo aqui na Carta Maior, comentando essa similitude assumida por Alckmin.)
Significaria, antes de tudo, a retomada de um Tratado de Livre Comércio com os EUA, ja que a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) tinha sido substituída por tratados bilaterais com países do continente, como o Chile, entre outros, pelos EUA, depois que o Brasil contribuiu decisivamente para enterrar a ideia de uma America Latina totalmente aderida ao livre comercio, subordinada completamente aos EUA.
Os processos de privatização que FHC não tinha conseguido completar, pela resistência do movimento popular brasileiro, seriam retomados, atingindo a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Economica, a Eletrobras, entre outras empresas sobreviventes do vendaval privatizando do governo dos tucanos.
Mas sem ir mais longe, bastaria imaginar o que teria sido o Brasil – e também a América Latina – se a crise internacional do capitalismo, iniciada em 2007 e ainda vigente, tivesse encontrado o Brasil tendo ao neoliberal duro e puro do Alckmin como presidente. Estaríamos ainda pior do que um país como a Espanha ou a Grécia ou Portugal. Estaríamos devastados pela recessão, pelo desemprego, pelos compromissos escorchantes do FMI.
Basta esse quadro realista do que estaríamos vivendo se o golpe de 2005 tivesse dado certo. O seu objetivo inicial era tentar impor uma derrota de longo prazo à esquerda, que teria fracassado, com Lula, seu principal dirigente, por um prazo longo, permitindo que as forças tradicionais da direita retomassem o controle do Estado brasileiro.
O julgamento que começa esta semana é, sobretudo, o julgamento de uma tentativa frustrada de golpe branco contra um governo popular e democrático, eleito pelo voto popular e legitimado pela reeleição do Lula e pela eleição da Dilma. O povo já disse sua palavra.

Emir  Sader é escritor, sociólogo, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela USP