quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Classes e luta de classes: retornando à classe média


ESCRITO POR WLADIMIR POMAR   no CORREIO DA CIDADANIA




Tomar a propriedade privada dos meios de produção e as relações de produção assalariadas como fatores básicos da divisão social e da caracterização das classes sociais parece algo superado para grande parte dos estudiosos do assunto, mesmo para aqueles que criticam o critério de renda com mais ou menos vigor.

Waldir José de Quadros, Denis Maracci Gimenez e Davi José Nardy Antunes, por exemplo, afirmam que a busca de pleno emprego num estado de bem-estar democrático teria gerado um cidadão de classe média com renda disponível pouco superior à da base do mercado de trabalho, com reduzida capacidade de diferenciação do consumo e cercado de ampla proteção social.

A camada inferior ou baixa dessa classe média seriam os auxiliares de escritório, vendedores, garçons, professores primários, policiais, auxiliares de enfermagem etc., com carências de todo tipo. Ou seja, na linha de Pochmann, eles incluem na classe média diferentes tipos de assalariados, ao invés de incluí-los na classe dos trabalhadores assalariados. Isto, segundo eles, porque essa camada se apropria de uma renda, embora pouco superior à da base do mercado de trabalho.

Por outro lado, em certo sentido, comungam da mesma opinião de Marcelo Neri, para o qual a renda, e a capacidade de consumo e acesso a bens duráveis, representaria o comportamento típico da classe média. Contra o que se insurge Eliana Vicente, já que consumir e desejar coisas não são particularidades da nossa sociedade, mas algo percebido em todas as sociedades, desde as pré-letradas. Os homens sempre consumiram, através de um metabolismo constante com a natureza, o que não é particularidade de qualquer classe social.

Em sua argumentação, Quadros et al mostram que, no Brasil, os 31,5 milhões de domicílios localizados no intervalo de renda da chamada nova classe média (entre R$ 1.315,00 e R$ 5.672,00, atualizados para 2013) abrigam uma forte desigualdade em seu interior, com predomínio de domicílios nas faixas de renda inferiores. É a partir dos mesmos critérios que Celia Kerstenetzky e Christiane Uchôa consideraram o perfil socioeconômico desses domicílios.

Como somente 23,6% deles possuem dois banheiros; 35,1% de seus chefes possuem cartão de crédito; 17,1% possuem cheque especial; 28,7% possuem plano de saúde; 7,8% possuem educação superior; e 8% de seus filhos estudam na rede pública, isto singularizaria a classe média no Brasil. Isto é, frente à insuficiência e condição insatisfatória dos serviços públicos universais, a classe média tenderia a consumir serviços sociais no setor privado, especialmente educação privada e plano de saúde.

Segundo elas, essa situação comprovaria a intuição de Bourdieu de que a classe média significaria não exatamente um padrão de consumo, mas um estilo de vida, que envolveria diferenciação/distinção de morar “bem”, ter uma educação “distinta”, consumir serviços de “qualidade”, ter acesso a capitais, entre outros. Nessas condições, as evidências indicariam que o perfil da assim chamada “nova classe média” de Neri não exibiria a maior parte dos critérios considerados distintivos de uma classe média, o que certamente é verdadeiro.

Vicente também parece concordar com isso. Afirma que lugares, comidas e vestimentas são elementos que marcam a distinção entre a classe média mais tradicional do segmento emergente da classe média e dos mais pobres. Assim, além do investimento em educação ser uma característica das classes médias modernas, seria este tipo de investimento que garantiria a reprodução e a perpetuação do status social desse grupo, conforme Guerra et al. Nesse ponto, Vicente se aproxima de Jessé Souza quanto ao papel do que este chama capital cultural.

O problema consiste em que caminhamos da renda para o estilo de vida, embora seja difícil falar de estilo de vida e de cultura sem falar em renda, da mesma forma que é difícil falar de renda sem falar de onde ela vem. Isso é, se vem da venda da força de trabalho, ou do trabalho assalariado, ou da apropriação de mais-valia através da utilização do capital, por menor que seja tal capital e a apropriação correspondente.

Certamente por isso, Sonia Fleury critica os intelectuais orgânicos que tomam como base o critério do crescimento da renda como indicador privilegiado da mobilidade social. Eles teriam adotado o termo classe C para indicar aquela parcela da população que, com o crescimento de sua renda, maior do que o crescimento da renda dos grupos mais ricos, teria ultrapassado a linha da pobreza e justificado sua inclusão no vago conceito de classe média.

No entanto, se continuarmos amarrados apenas ao conceito de mobilidade social, em que elementos de uma classe social podem trafegar dentro de sua classe ou de uma classe para outra, continuaremos com dificuldade para definir os critérios para a análise real das classes sociais. Mesmo Claudio Salm e Lígia Bahia, ao frisarem que o conceito de classe média foi construído pela sociologia clássica enfatizando a propriedade, se veem obrigados a colocar no mesmo plano da propriedade a educação diferenciada. O que, no final de contas, volta a diluir os fatores fundamentais para a conceituação de uma classe. Isto é, a propriedade e as relações de produção.

Amélia Cohn é mais direta. Segundo ela, a classe média tradicional vem, há muito, sofrendo um processo de crescente proletarização, seja vinculada aos serviços públicos, seja ao setor privado. Proletarização esta vinculada não ao valor do salário mínimo, mas à precarização das condições e dos contratos de trabalho. Para ela, há que se ir à luta e conquistar, custe o que custar, espaço no mercado de trabalho.

Marilene de Paula, ao contrário, considera que a classe média tradicional possui uma rede de relações e contatos que podem realocá-la em novos empregos de igual nível ou oferecer facilidades na obtenção de serviços públicos ou privados. Estaria preparada e formada para o exercício profissional. O que, a rigor, também vale para a classe trabalhadora assalariada com qualificação profissional. Assim, podemos deduzir que, em termos gerais, Eliana Vicente tem certa razão em supor que a denominação de “nova classe média” pode confundir e obscurecer o entendimento das questões relativas às desigualdades e ao consumo, este compreendido como forma de reconhecimento social.

Na verdade, o conceito de classe média, que pode ser usado genericamente para situar a classe social intermediária entre a burguesia e a classe trabalhadora assalariada, se torna um imbróglio quando se procura colocar à mostra suas características econômicas, sociais, culturais, ideológicas e políticas. Para clarificar tais características, talvez seja mais conveniente apelar para o tradicional conceito de pequena-burguesia, que oferece um maior rigor na classificação, ao mesmo tempo em que permite certa flexibilidade, tendo em conta as profundas tendências contraditórias dessa classe social.

Historicamente surgida no feudalismo, com base no capital comercial, ela deu surgimento ao capitalismo moderno, ao mesmo tempo em que se reproduzia e se transformava, tanto em burguesia, quanto em proletariado e ralé, ou lumpem-proletariado, em virtude da feroz luta contra os feudais, e também da não menos feroz competição ou concorrência capitalista.

Sua característica básica sempre foi a propriedade de pequeno capital, apenas transformável em meios de produção, ou capital constante, mas nem sempre com a capacidade de também transformá-lo em capital variável. O sapateiro, o chaveiro, o marceneiro, o ourives e outros indivíduos de categorias idênticas, que possuem as ferramentas e máquinas necessárias à produção e/ou ao conserto, mas não têm capital para contratar ajudantes, fazem parte da pequena-burguesia baixa, ou inferior. Na prática, eles arrancam a mais-valia absoluta e, portanto, o lucro, de sua própria força de trabalho.

Se seu negócio se torna promissor e lhe permite arrancar uma taxa maior de mais-valia e de lucro de seu trabalho-extra, isso lhe dá condições de contratar ajudantes ou outros profissionais, passando a arrancar mais valia não só de seu trabalho direto, mas também dos assalariados que contratou. A mobilidade social se evidencia com sua elevação a um nível mais elevado na própria pequena-burguesia. Mas ele continua, ambiguamente, sendo capitalista e trabalhador. Ele só se eleva a um nível superior da classe quando a acumulação de capital, permitida pela exploração de sua própria força de trabalho e da força de trabalho alheia, lhe permite abandonar a ambiguidade de trabalhador produtivo e se tornar apenas administrador de seu capital, tanto constante quanto variável.

Nesse processo de mergulho mais profundo no sistema de funcionamento do capital, sob a pressão da concorrência e da luta de classes, sua necessidade inescapável, que aparentemente não passa de um sonho, é se tornar burguês. Mesmo porque, se não conseguir superar os obstáculos que se antepõem a isso, seu destino pode ser o retorno ao nível mais baixo da classe ou, como diz Amélia Cohn, sua proletarização. É essa necessidade que muitas vezes torna a maior parte da pequena-burguesia aparentemente mais exploradora do que os capitalistas plenos, arrancando o couro de seus trabalhadores.

Processo reverso pode ocorrer com trabalhadores assalariados qualificados, seja do chão de fábrica, seja de colarinho branco, que percebem altos salários e conseguem acumular parte deles como capital, numa das diversas formas através das quais se apresenta na sociedade. Com isso, sai da classe trabalhadora assalariada, ou do proletariado, e ingressa na pequena-burguesia, passando a sofrer todas as vicissitudes dessa classe.

No entanto, isso nada tem a ver com os assalariados, em especial os de colarinho branco, que não têm condições de acumular capital, mas sonham viver como se fossem pequeno-burgueses ou mesmo burgueses. A sua ideologia pode ser pequeno-burguesa, mas a sua realidade não é, criando as crises existenciais típicas desses sonhadores.

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.