Um dos maiores especialistas em cultura digital fala sobre as tendências no segmento e faz severas críticas à postura do governo brasileiro. Quando o site de vídeos YouTube foi lançado, há cinco anos, os internautas passaram a viver uma verdadeira revolução naquela que, por si só, já podia ser considerada uma era de revoluções.
A possibilidade de colocar todo tipo de material multimídia na web, à distância de um clique de qualquer pessoa, fez com que muita gente deixasse a cadeira de espectador para se tornar protagonista em vídeos online.
Mas todo esse sucesso — confirmado pelas mais de 2 bilhões de visualizações diárias — está longe de ser o ideal para uma internet que pretende ser democrática.

“Mesmo sendo gratuito, o YouTube não te dá a opção de marcar que seu vídeo está em licença livre”, explica um dos maiores especialistas em cultura digital(1) do país, o VJ Pixel.
O rapaz franzino de 28 anos, que se nega a dar seu nome verdadeiro, é hoje o representante no Brasil da Open Video Alliance, uma associação de empresas, produtores e interessados em difundir o uso de softwares livres para a distribuição de vídeos na rede mundial de computadores.
Se isso parece pouco, Pixelman lembra que somente a adoção das ferramentas não proprietárias dá liberdade aos usuários para que acessem seu material a qualquer tempo, sem depender das incômodas atualizações dos fabricantes. “Em 2008, uma empresa chamada Veoh, semelhante ao YouTube, decidiu fechar os seus serviços para apenas 33 países. Com isso, pessoas no Brasil que tinham postado seus vídeos nesse site não conseguiram sequer entrar para retirar seu conteúdo”, conta o VJ. “É um serviço gratuito, mas como essas empresas estão te dando a plataforma, elas querem ter um retorno que, muitas vezes, não vem de patrocínio”, completa ele.
Pixel, natural de Salvador, esteve em Brasília esta semana para a 9ª Oficina para a Inclusão Digital, organizada pelo governo e por empresas de tecnologia. Ele falou ao Correio Brasiliense sobre a importância da livre comunicação nos tempos dos bits e dos bytes.

Como e quando você começou a se interessar pela distribuição de vídeos em plataformas livres?
No fim da década de 1990, eu me interessei por software livre porque era uma coisa meio underground, que não era muito conhecida. Aí passei a estudar a tecnologia paralelamente ao meu trabalho como VJ. Trabalhei em eventos de música eletrônica e criei um coletivo que pesquisava a cybercultura na Bahia, aqui chamada de cultura digital. Em 2003, realizamos o primeiro encontro de software livre da Bahia, com DJs e VJs tocando com ferramentas não proprietárias. Atuei em programas do governo voltados para essa área e, no ano passado, fui convidado para a Open Video Conference, em Nova York. Esse grupo está trabalhando no diagnóstico do uso de softwares livres em países em desenvolvimento e eu sou responsável por isso aqui no Brasil.

Por que essa questão ainda é complicada para os produtores culturais?
Os softwares multimídia são complexos como os softwares de games. Então é muito complicado desenvolver um programa desses sem patrocínio ou sem um plano de negócios. As ferramentas livres existentes ainda não são maduras e não há desenvolvedores que pensam melhorias para esses programas. Para se ter uma ideia, a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia já ensina produção de áudio com ferramentas livres. Mas isso não ocorre no caso do vídeo.

Para os usuários isso também é um problema?
A dificuldade ocorre quando você quer que seu arquivo tenha ampla distribuição. Se a ideia é mandar o vídeo para 3 mil ou 4 mil pessoas diversas, muitas delas podem não ter o codec(2) que vai abrir esse arquivo em licença livre. As pessoas não estão adotando, em geral, por falta de conhecimento. Uma das coisas que os produtores têm feito para resolver essa situação é distribuir em um codec livre e em um codec proprietário. Se o player do usuário consegue tocar aquele arquivo livre, ele abre, se não ele vai buscar automaticamente, sem o usuário nem perceber esse pulo e um para o outro. Mas a gente notou que há uma intenção muito grande na utilização dessas ferramentas. O primeiro passo, que é muito importante, já foi dado: as pessoas estão começando a distribuir em formatos livres.

Há algum levantamento sobre essa tendência dos produtores?
Houve uma chamada pública em ambientes ligados à cultura livre e entrevistamos as pessoas que nos procuraram. Foram 15 entrevistas via bate-papo online e pouco mais de 30 usuários preencheram formulários sobre os codecs. Algumas questões abordavam a licença que a pessoa utilizava e qual licença ela acreditava ser a ideal. Um terço das pessoas falaram que usavam licenças proprietárias, mas nenhuma disse que essa era a licença ideal.

Muitas pessoas hoje utilizam o YouTube para distribuir seu conteúdo. Isso não seria o começo da mudança?
O YouTube não é o ideal. O Youtube e diversas outras plataformas de vídeo foram criados no início dos anos 2000 e, de lá para cá, se tornaram ubíquas. A gente tem, por exemplo, celulares que são utilizados para gravar vídeos. Alguns desses dispositivos, inclusive, já editam vídeos internamente. Computadores novos também já vêm com sistema operacional que inclui ferramenta de edição de vídeo. Como o acesso está maior, as pessoas estão utilizando mais esses recursos. Só que, em geral, o formato que esses dispositivos usam é proprietário, assim como os serviços de distribuição na internet. O YouTube, por exemplo. Mesmo sendo gratuito, o site e não te dá a opção de marcar que seu vídeo está em licença livre. Se você está distribuindo um vídeo lá, ele assume que é proprietário. Já no Flickr (site especializado em fotografia),você pode marcar fotos como livres, o YouTube não evoluiu a esse ponto.

Quais os perigos na utilização de ferramentas proprietárias?
Se você salva seu vídeo numa ferramenta livre, por um lado há o problema de que muitos usuários não têm o codec livre atualmente. Por outro lado, você garante que seu vídeo vai poder ser aberto daqui a 10 ou 20 anos. Como ele está em especificação aberta, daqui um tempo a pessoa pode voltar e buscar. Se ele estiver em um formato fechado, passa a ter problemas para abrir, tais como muitas pessoas têm vivenciado hoje com arquivos de texto, que são os mais utilizados. Quando muda de uma plataforma para outra, as empresas passam a não dar suporte aos formatos mais antigos. Para se ter uma ideia, em 2008, uma empresa chamada Veoh, semelhante ao YouTube, decidiu fechar os seus serviços para apenas 33 países. Com isso, pessoas no Brasil que tinham postado seus vídeos nesse site não conseguiram sequer entrar para retirar seu conteúdo. É um serviço gratuito, mas como essas empresas estão te dando a plataforma, elas querem ter um retorno que, muitas vezes, não vem de patrocínio. Pode, inclusive, haver a venda dos vídeos que estão nas plataformas.

Existe alguma plataforma que seria como o YouTube do software livre?
Existe, a gente está desenvolvendo agora em um consórcio de três empresas, Ministério da Cultura e Associação Software Livre. Daqui a um mês, entre 21 e 24 de julho, no Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre, a gente vai fazer a demonstração dessa plataforma. Inclusive, um dos desenvolvedores vai mostrar recursos de edição de vídeo. O Youtube acabou de lançar isso, acho que foi esse mês, e a gente já tem esse recurso antes de ter a plataforma pronta.

Você acha que existe certo protagonismo do Brasil no desenvolvimento de licenças livres?
Apesar de ser uma das principais lideranças a nível internacional, o Brasil ainda peca em muita coisa. Uma das minhas maiores críticas é que o governo economiza muito com a utilização de software livre, mas investe pouco em desenvolvimento. Eu não tenho esses números, mas pelos produtos que são apresentados, não chegam a gastar um quinto do que economizam.

Você acha que isso ocorre porque as iniciativas são muito isoladas?
Pouco divulgadas. O padrão de TV digital brasileiro, por exemplo, foi desenvolvido pela PUC do Rio de Janeiro e pela Universidade Federal da Paraíba. Curiosamente, a PUC, que é uma instituição privada, liberou o acesso ao código deles e a UFPB, que é uma instituição pública não liberou. O código que foi desenvolvido em uma universidade pública, com dinheiro público, é fechado e proprietário. A Dataprev, o Serpro, diversos ministérios têm soluções próprias, mas que, em geral, atendem apenas demandas internas. Não há edital do governo específico para estimular o desenvolvimento de ferramentas já existentes ou mesmo criar novas ferramentas. Nem o Ministério da Ciência e Tecnologia, que teria esse papel, faz isso. Segundo a Coordenação de Cultura Digital do Ministério da Cultura eles estão pensando em fazer um edital que tenha esse foco, mas não há previsão para isso.

O que é uma pena, já que os softwares livres podem ser utilizados em outras áreas…
Sim, para todas as áreas. Um sistema muito utilizado no governo é o Moodle, sistema de educação a distância. Quando eu estava no Projeto Casa Brasil (do governo federal), observei o Moodle. O investimento que as instituições fazem são apenas adaptações pontuais para suas necessidades. Tudo bem, eles devolvem as melhorias, mas não há um investimento no desenvolvimento da ferramenta como um todo. Eles economizam, sei lá, R$ 10 milhões e investem R$ 3 mil. A minha crítica é a essa proporção. Até porque é papel do governo estimular a criação de ferramentas livres, isso é serviço público, é inclusão digital.

1 - Entregue à tecnologia
A cultura digital, ou cybercultura, é aquela produzida ou distribuída com o uso de novas tecnologias. Exemplos de cultura digital são as obras expostas somente pela internet e a gravação de filmes e vídeos com celulares.

2 - A chave do código
Os codecs são arquivos de computador responsáveis pela codificação e pela decodificação de arquivos multimídia. Como os arquivos são muito pesados para serem transmitidos integralmente pela web, há a compressão do conteúdo que, para ser ouvido ou visto no destinatário, tem de ser decodificado.
por Carolina Vicentin
Fonte Correio Brasiliense