“Não, a culpa não é do mercado”. Este é o título de um artigo de Carlos Alberto Sardenberg, publicado nesta quinta-feira, 23, pelo jornal O globo. O tema é a crise na Grécia, que o jornalista, especializado em economia, atribui aos próprios gregos.
Por Umberto Martins no PORTAL VERMELHO
Afinado, desde sempre, com a ideologia neoliberal, Sardenberg revela preocupações com o fato de que já “se espalha” pelo mundo “o entendimento de que o mercado, os banqueiros e a União Europeia, com suas exigências de austeridade, são os culpados pelas desgraças da Grécia”.
Resta a resignação
Qual nada, argumenta o funcionário das Organizações Globo, remando contra a maré e o novo senso comum que se forma acerca deste tema, em defesa da verdade neoliberal. O mercado, os banqueiros, o FMI, a União Europeia, e o capitalismo (este sistema maravilhoso, perene e insuperável), não têm culpa alguma no cartório. Muito pelo contrário.
Os trabalhadores gregos, ignorantes ingratos que esbravejam em Atenas contra a troika e a oligarquia financeira, deveriam erguer as mãos para o céu e agradecer ao capitalismo, e aos seus personagens e agentes, pelo (suposto) surto de prosperidade que precedeu a crise da dívida.
Suportar com estoicismo e resignação os venenos impostos pela troika, abdicando dos protestos e "arruaças" nas praças, eis a receita do nosso articulista, digo articulista das Organizações Globo, ao povo. Mas o escriba desconfia que os rebeldes gregos rejeitam seu diagnóstico impecável e os sábios conselhos que dele emanam. “Se perguntarem aos manifestantes nas ruas de Atenas, eles dirão que tudo ia bem até que a crise financeira estragou tudo”, lamenta.
Estado irresponsável
Sardenberg admite que os manifestantes “têm razão num ponto - a vida de fato estava melhorando”. Afinal, comenta, os salários subiram 22% no país helênico entre 2001 e 2010. O PIB per capta “saiu da casa dos US$ 20 mil dólares/ano para os 30 mil, nível de país quase desenvolvido (o Brasil, por exemplo, de renda média, tem cerca de US$ 12 mil). Finalmente, do início do século até a eclosão da crise, a Grécia cresceu, na média, 4% ao ano”.
O que explica este desempenho que quase estava conduzindo a Grécia ao Olimpo pelo menos até os trágicos acontecimentos de 2008? O especialista responde sem pestanejar: “A adesão à moeda comum, o euro, em 2001. A taxa de juros caiu rápida e fortemente, barateando o financiamento para investimentos e consumo. Crédito barato, eis o nome da coisa. Mais que isso, a adesão ao euro foi a cereja do bolo.”
“E não esqueçam”, conclui. “O chamado mercado, o sistema capitalista global, propiciou nada menos que três décadas de expansão. Muitos países perderam a chance, outros aproveitaram. A Grécia aproveitou muito. Muito. O chamado mercado, o sistema capitalista global, propiciou três décadas de expansão.”
Claro, a defesa apaixonada do mercado, banqueiros e iniciativa privada, não pode prescindir da defesa do Estado mínimo e crítica ácida a tudo que é público. “E finalmente, o Estado manteve o controle de 40% da economia - com a ineficiência e a corrupção das entidades estatais, e o costumeiro viés favorável aos funcionários de mais alto nível”.
Bode expiatório
Meio a contragosto, ele reconhece em uma parcimoniosa linha: “Sim, os bancos emprestaram irresponsavelmente para o governo grego, sabe-se agora”. E daí? Isto não abala sua conclusão de que a culpa cabe aos gregos, que gastaram dinheiro a rodo, sem pesar consequências. “Gastaram por conta, sem se preocupar, por exemplo, com a expansão dos investimentos”.
O que diria nosso colega (desta triste profissão) sobre os EUA, cuja dívida externa equivale a 40 dívidas soberanas da Grécia? Não é preciso ser um gênio em economia políticqa para compreender as relações de causa e efeito entre as dívidas estadunidenses (interna e externa, pública e privada) e o desastre financeiro que, desde 2008, perturba o sistema capitalista mundial. Devemos esquecer que a crise da dívida externa na Europa é uma continuidade óbvia e inevitável daquele que teve início no interior da maior potência capitalista do planeta?
Isolar a Grécia do contexto geral e apontá-la como bode expiatório da crise é muito fácil, até mesmo pelas particularidades do endividamento grego, que em muitos aspectos não é comparável ao da Irlanda, Espanha, Portugal ou Itália. Porém, é um truque ideológico que não ajuda a compreender as origens e natureza da crise que está em curso.
Socorro aos bancos
Apesar das singularidades nacionais, o fato é que a crise fiscal explodiu na Europa em consequência das custosas e generosas operações de socorro aos banqueiros levada a cabo pelos governos e envolvendo centenas de bilhões de euros. O norte-americano Paul Krugman (Prêmio Nobel de Economia em 2008), que não pode ser caracterizado como um intelectual de esquerda, já escreveu vários artigos explicando o fenômeno. Cito abaixo dois parágrafos de um de seus textos a respeito (“Zumbis gastadores”, de 2-12-2011), onde analisa os casos da Espanha e Itália.
“Antes da crise, a Espanha tinha um endividamento baixo, que recuava cada vez mais. A Itália tinha um alto endividamento herdado do passado, mas estava num constante processo de redução deste endividamento em relação ao seu PIB. Nenhum dos dois países estava gastando de maneira irresponsável – simplesmente não foi isto que ocorreu. Desde o início da crise o endividamento tem aumentado em relação ao PIB, mas é isto que ocorre quando tem-se uma crise econômica.
“Pois é, a Grécia. Mas a Grécia é agora uma pequena parte desta história. A Grécia (PIB de aproximadamente US$ 300 bilhões) equivale mais ou menos à Grande Miami (US$ 270 bilhões). Itália e Espanha são as grandes protagonistas, e estes países não estavam – repito: não estavam – agindo com irresponsabilidade fiscal.”
Valorização do capital financeiro
É evidente que o endividamento excessivo, antes e depois da crise, decorreu do processo de valorização do capital financeiro num ambiente liberal de desregulamentação e pletora de capital (ou excesso de liquidez) respaldada por taxas de juros reais negativas nos EUA, Europa e Japão. Objetivamente, a superprodução de capital e de mercadorias (imóveis) engendrou a crise, que Krugman caracteriza de Grande Recessão.
Sobre culpas e culpados, peço paciência ao leitor (ou leitora) para citar mais uma vez o economista estadunidense ao abordar a queda do PIB na União Europeia no último trimestre de 2011. “Essa retração está atingindo países que nunca se recuperaram da última recessão. Apesar de todos os problemas dos Estados Unidos, seu produto interno bruto finalmente ultrapassou seu pico anterior à crise; o da Europa, não. E alguns países estão sofrendo dissabores do nível da Grande Depressão: Grécia [que amarga mais de quatro anos de recessão] e Irlanda tiveram quedas de dois dígitos na produção; a Espanha enfrenta 23% de desemprego; e a retração atual da Grã-Bretanha já é mais prolongada que a que enfrentou nos anos 1930.”
O que explica a diferença, conforme Krugman, é a política econômica. “Alguns líderes europeus – e uma boa quantidade de players americanos influentes – ainda estão casados com a doutrina econômica responsável por esse desastre. As coisas não precisavam estar tão ruins. A Grécia estaria enfrentando um problema grave independentemente das decisões políticas tomadas, e o mesmo vale, em menor escala, para outros países da periferia da Europa.”
“Mas as coisas foram agravadas bem mais que o necessário pela maneira como líderes da Europa, e, mais amplamente, sua elite política, substituíram moralização por análise e fantasias pelas lições de história. Especificamente, a economia de austeridade do começo de 2010 – a insistência de que governos deviam cortar gastos mesmo em face do alto desemprego – virou moda nas capitais europeias.
“A doutrina afirmava que os efeitos negativos diretos do corte de gastos sobre o emprego seriam compensados por alterações na “confiança”, que os cortes de gastos radicais acarretariam um aumento dos gastos industriais e de consumo, enquanto os países que não conseguissem fazer esses cortes sofreriam uma fuga de capitais e uma alta das taxas de juros. Se isso lhe parecer algo que Herbert Hoover poderia ter dito, você está certo: parece mesmo e ele disse.
“Agora, os resultados estão visíveis – e eles são exatamente o que três gerações de análise econômica e todas as lições da História poderiam ter-lhes dito que ocorreria. A fada da confiança não apareceu: nenhum dos países que cortaram gastos viu o antecipado crescimento do setor privado. Em vez disso, os efeitos depressivos da austeridade fiscal foram reforçados pela queda dos gastos privados.”
Ideologia e interesses de classe
As ideias e ideologias, conforme notou Karl Marx, dialogam mais com os interesses do que com a ciência e carregam um forte caráter de classe. A crise mundial do capitalismo é uma só, embora se manifeste de forma desigual nos diferentes países. São muitas, porém, e no mais das vezes contraditórias, as análises e diagnósticos sobre sua natureza. As diferenças refletem os interesses contraditórios envolvidos objetivamente na realidade que é objeto de análise.
Diga-me o que pensa e eu te direi a quem serve, é o que convém afirmar neste caso, parodiando um grande filósofo grego. O funcionário das Organizações Globo sabe bem a quem e a que interesses serve. Felizmente, a classe trabalhadora, e não só na Grécia, já não se deixa levar pelo canto de sereia neoliberal.
Resta a resignação
Qual nada, argumenta o funcionário das Organizações Globo, remando contra a maré e o novo senso comum que se forma acerca deste tema, em defesa da verdade neoliberal. O mercado, os banqueiros, o FMI, a União Europeia, e o capitalismo (este sistema maravilhoso, perene e insuperável), não têm culpa alguma no cartório. Muito pelo contrário.
Os trabalhadores gregos, ignorantes ingratos que esbravejam em Atenas contra a troika e a oligarquia financeira, deveriam erguer as mãos para o céu e agradecer ao capitalismo, e aos seus personagens e agentes, pelo (suposto) surto de prosperidade que precedeu a crise da dívida.
Suportar com estoicismo e resignação os venenos impostos pela troika, abdicando dos protestos e "arruaças" nas praças, eis a receita do nosso articulista, digo articulista das Organizações Globo, ao povo. Mas o escriba desconfia que os rebeldes gregos rejeitam seu diagnóstico impecável e os sábios conselhos que dele emanam. “Se perguntarem aos manifestantes nas ruas de Atenas, eles dirão que tudo ia bem até que a crise financeira estragou tudo”, lamenta.
Estado irresponsável
Sardenberg admite que os manifestantes “têm razão num ponto - a vida de fato estava melhorando”. Afinal, comenta, os salários subiram 22% no país helênico entre 2001 e 2010. O PIB per capta “saiu da casa dos US$ 20 mil dólares/ano para os 30 mil, nível de país quase desenvolvido (o Brasil, por exemplo, de renda média, tem cerca de US$ 12 mil). Finalmente, do início do século até a eclosão da crise, a Grécia cresceu, na média, 4% ao ano”.
O que explica este desempenho que quase estava conduzindo a Grécia ao Olimpo pelo menos até os trágicos acontecimentos de 2008? O especialista responde sem pestanejar: “A adesão à moeda comum, o euro, em 2001. A taxa de juros caiu rápida e fortemente, barateando o financiamento para investimentos e consumo. Crédito barato, eis o nome da coisa. Mais que isso, a adesão ao euro foi a cereja do bolo.”
“E não esqueçam”, conclui. “O chamado mercado, o sistema capitalista global, propiciou nada menos que três décadas de expansão. Muitos países perderam a chance, outros aproveitaram. A Grécia aproveitou muito. Muito. O chamado mercado, o sistema capitalista global, propiciou três décadas de expansão.”
Claro, a defesa apaixonada do mercado, banqueiros e iniciativa privada, não pode prescindir da defesa do Estado mínimo e crítica ácida a tudo que é público. “E finalmente, o Estado manteve o controle de 40% da economia - com a ineficiência e a corrupção das entidades estatais, e o costumeiro viés favorável aos funcionários de mais alto nível”.
Bode expiatório
Meio a contragosto, ele reconhece em uma parcimoniosa linha: “Sim, os bancos emprestaram irresponsavelmente para o governo grego, sabe-se agora”. E daí? Isto não abala sua conclusão de que a culpa cabe aos gregos, que gastaram dinheiro a rodo, sem pesar consequências. “Gastaram por conta, sem se preocupar, por exemplo, com a expansão dos investimentos”.
O que diria nosso colega (desta triste profissão) sobre os EUA, cuja dívida externa equivale a 40 dívidas soberanas da Grécia? Não é preciso ser um gênio em economia políticqa para compreender as relações de causa e efeito entre as dívidas estadunidenses (interna e externa, pública e privada) e o desastre financeiro que, desde 2008, perturba o sistema capitalista mundial. Devemos esquecer que a crise da dívida externa na Europa é uma continuidade óbvia e inevitável daquele que teve início no interior da maior potência capitalista do planeta?
Isolar a Grécia do contexto geral e apontá-la como bode expiatório da crise é muito fácil, até mesmo pelas particularidades do endividamento grego, que em muitos aspectos não é comparável ao da Irlanda, Espanha, Portugal ou Itália. Porém, é um truque ideológico que não ajuda a compreender as origens e natureza da crise que está em curso.
Socorro aos bancos
Apesar das singularidades nacionais, o fato é que a crise fiscal explodiu na Europa em consequência das custosas e generosas operações de socorro aos banqueiros levada a cabo pelos governos e envolvendo centenas de bilhões de euros. O norte-americano Paul Krugman (Prêmio Nobel de Economia em 2008), que não pode ser caracterizado como um intelectual de esquerda, já escreveu vários artigos explicando o fenômeno. Cito abaixo dois parágrafos de um de seus textos a respeito (“Zumbis gastadores”, de 2-12-2011), onde analisa os casos da Espanha e Itália.
“Antes da crise, a Espanha tinha um endividamento baixo, que recuava cada vez mais. A Itália tinha um alto endividamento herdado do passado, mas estava num constante processo de redução deste endividamento em relação ao seu PIB. Nenhum dos dois países estava gastando de maneira irresponsável – simplesmente não foi isto que ocorreu. Desde o início da crise o endividamento tem aumentado em relação ao PIB, mas é isto que ocorre quando tem-se uma crise econômica.
“Pois é, a Grécia. Mas a Grécia é agora uma pequena parte desta história. A Grécia (PIB de aproximadamente US$ 300 bilhões) equivale mais ou menos à Grande Miami (US$ 270 bilhões). Itália e Espanha são as grandes protagonistas, e estes países não estavam – repito: não estavam – agindo com irresponsabilidade fiscal.”
Valorização do capital financeiro
É evidente que o endividamento excessivo, antes e depois da crise, decorreu do processo de valorização do capital financeiro num ambiente liberal de desregulamentação e pletora de capital (ou excesso de liquidez) respaldada por taxas de juros reais negativas nos EUA, Europa e Japão. Objetivamente, a superprodução de capital e de mercadorias (imóveis) engendrou a crise, que Krugman caracteriza de Grande Recessão.
Sobre culpas e culpados, peço paciência ao leitor (ou leitora) para citar mais uma vez o economista estadunidense ao abordar a queda do PIB na União Europeia no último trimestre de 2011. “Essa retração está atingindo países que nunca se recuperaram da última recessão. Apesar de todos os problemas dos Estados Unidos, seu produto interno bruto finalmente ultrapassou seu pico anterior à crise; o da Europa, não. E alguns países estão sofrendo dissabores do nível da Grande Depressão: Grécia [que amarga mais de quatro anos de recessão] e Irlanda tiveram quedas de dois dígitos na produção; a Espanha enfrenta 23% de desemprego; e a retração atual da Grã-Bretanha já é mais prolongada que a que enfrentou nos anos 1930.”
O que explica a diferença, conforme Krugman, é a política econômica. “Alguns líderes europeus – e uma boa quantidade de players americanos influentes – ainda estão casados com a doutrina econômica responsável por esse desastre. As coisas não precisavam estar tão ruins. A Grécia estaria enfrentando um problema grave independentemente das decisões políticas tomadas, e o mesmo vale, em menor escala, para outros países da periferia da Europa.”
“Mas as coisas foram agravadas bem mais que o necessário pela maneira como líderes da Europa, e, mais amplamente, sua elite política, substituíram moralização por análise e fantasias pelas lições de história. Especificamente, a economia de austeridade do começo de 2010 – a insistência de que governos deviam cortar gastos mesmo em face do alto desemprego – virou moda nas capitais europeias.
“A doutrina afirmava que os efeitos negativos diretos do corte de gastos sobre o emprego seriam compensados por alterações na “confiança”, que os cortes de gastos radicais acarretariam um aumento dos gastos industriais e de consumo, enquanto os países que não conseguissem fazer esses cortes sofreriam uma fuga de capitais e uma alta das taxas de juros. Se isso lhe parecer algo que Herbert Hoover poderia ter dito, você está certo: parece mesmo e ele disse.
“Agora, os resultados estão visíveis – e eles são exatamente o que três gerações de análise econômica e todas as lições da História poderiam ter-lhes dito que ocorreria. A fada da confiança não apareceu: nenhum dos países que cortaram gastos viu o antecipado crescimento do setor privado. Em vez disso, os efeitos depressivos da austeridade fiscal foram reforçados pela queda dos gastos privados.”
Ideologia e interesses de classe
As ideias e ideologias, conforme notou Karl Marx, dialogam mais com os interesses do que com a ciência e carregam um forte caráter de classe. A crise mundial do capitalismo é uma só, embora se manifeste de forma desigual nos diferentes países. São muitas, porém, e no mais das vezes contraditórias, as análises e diagnósticos sobre sua natureza. As diferenças refletem os interesses contraditórios envolvidos objetivamente na realidade que é objeto de análise.
Diga-me o que pensa e eu te direi a quem serve, é o que convém afirmar neste caso, parodiando um grande filósofo grego. O funcionário das Organizações Globo sabe bem a quem e a que interesses serve. Felizmente, a classe trabalhadora, e não só na Grécia, já não se deixa levar pelo canto de sereia neoliberal.