segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Entrevista com Flavio Koutzii,no Jornal do Comercio-RS...

Tese da polarização no Estado é um truque, avalia Koutzii


Flavio Koutzii aponta que a função de “pacificador” para Fogaça seria inadequada. Mauro Schaefer/JC
 
Flavio Koutzii aponta que a função de “pacificador” para Fogaça seria inadequada. Foto: Mauro Schaefer/JC

O ex-deputado estadual Flavio Koutzii (PT) entende que o discurso de que há uma eterna polarização no Estado entre governo e oposição serve como um truque, já que não se analisa o conteúdo da disputa. Ele interpreta ainda que essa tese está sendo reforçada para preparar a candidatura do peemedebista José Fogaça (PMDB) ao Palácio Piratini. “O senador Pedro Simon (PMDB) retomou esse discurso e o da necessidade de pacificação no Rio Grande do Sul”, observa.


Koutzii aponta que a função de “pacificador” para Fogaça seria inadequada, porque o prefeito da Capital “pertence ao mesmo bloco de Yeda Crusius (PSDB)”. E também porque “as turbulências no Piratini surgiram dentro do próprio governo e não pela ‘pequena’ oposição”.


Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o petista apresenta uma análise que contesta, em parte, o eventual “isolamento do PT gaúcho” nas eleições, avalia o governo Lula e sustenta que a aliança DEM-PSDB é apoiada pela grande mídia do País.


Jornal do Comércio - O cenário da disputa ao Piratini em 2010 tem a governadora Yeda Crusius, o ministro da Justiça, Tarso Genro (PT), e o prefeito da Capital, José Fogaça. Qual sua avaliação?

Flavio Koutzii - Com Tarso temos um candidato qualificado, com chances importantes. A candidatura de Yeda é ligeiramente inacreditável. Não estou dizendo isso porque acho o governo dela muito ruim, mas porque é o pior dos governos desse bloco. Fogaça, evidentemente, é o candidato mais forte.


JC - Quando o senhor fala em bloco...

Koutzii - Não acho que o governo de (Alceu) Collares (PDT) seja deste bloco que agora está aí. Tinha peculiaridades. Mas o governo (Antonio) Britto (PMDB), o governo Yeda e o governo (Germano) Rigotto (PMDB) são. Não digo que são iguais, porque seriam comparações inúteis e até injustas em alguns casos, mas são do mesmo bloco.


JC - Como será o embate?

Koutzii - Há algumas ideias cultivadas. Por exemplo, o senador Pedro Simon - respeitado e tudo mais, mas que tem escancarado uma opinião “acima do Mampituba” e outra para nós, uma conivência que considero indecente - dizia na segunda-feira passada que Fogaça vem para pacificar. Pergunto: para pacificar o quê, cara pálida? Porque toda a turbulência que há no Rio Grande do Sul vem a partir do próprio governo, em que eles (PMDB) ainda estão. Pacificar o quê? A existência de uma pequena oposição, que tem dez deputados (PT), mais o PCdoB na Assembleia?


JC - O governo diz que a oposição é raivosa.

Koutzii - O que o governo diz é conversa para tentar bloquear a evidência de que é um governo comprometido com a corrupção. E, frente à evidência da corrupção, ele (governo) confirmou os partidos e as direções políticas que têm a ver com isso: pega do PP Otomar Vivan, que vai ser chefe da Casa Civil para organizar, e o PMDB faz um debate interno - que a imprensa revela - e decide ficar no governo. Então, eles têm, pelo menos, três anos nesse governo. Estão (envolvidos com a atual gestão) até o pescoço, na minha opinião. Não só por algumas individualidades, mas por esse gesto político. Para mim, uma das coisas mais importantes é a história da CPI.


JC - O que tem a CPI?

Koutzii - A CPI está paralisada porque oito deputados de 12 não aparecem mais. Mas não aparecem não porque sejam vagabundos. Não aparecem porque são militantes coniventes e cúmplices dos temas em que eles impedem que seja aprofundada a investigação. E não foi alguém da Assembleia Legislativa que desencavou um tema e chegou a uma CPI. Temas profundamente  investigados durante dois anos e meio, nos rigores da lei, com as técnicas que a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) têm dão base ao desenvolvimento da CPI. Isso é um escândalo! A escolha foi botar a CPI no freezer, esterilizá-la ao máximo. Portanto, todos esses deputados estão associados a esse processo.


JC - A alegação é que a CPI não apresenta fatos novos.

Koutzii - Isso é inaceitável. Na CPI do Detran, todos que iam testemunhar se negavam a falar, orientados pelos seus advogados. Nessa, não foi possível sequer trazer as testemunhas, à exceção do ex-diretor do Detran (Sérgio) Buchmann, que eles queriam arrebentar e o Palácio autorizou. Fora isso, nada.


JC - E esse apoio dos partidos da base?

Koutzii -  Está se aproximando o período eleitoral e acabou havendo uma solidariedade geral. Todo esse bloco - o mesmo que apoiou Britto, o mesmo que apoiou Rigotto, o mesmo que conseguiu derrotar o PT na prefeitura de Porto Alegre - tira interpretações da sociedade gaúcha, onde o tema da polarização, da disputa governo-oposição, é sempre evocado. Mas nunca se fala sobre os conteúdos. Isso virou um truque. Um truque hábil para dizer: nós somos os pacificadores.


JC - Fogaça pode se cacifar como novo “pacificador”?

Koutzii - Mas ele é dessa turma (do governo)... A estratégia da pacificação foi brilhantemente encarnada pela candidatura Rigotto (em 2002), até porque ele tinha muito a ver com a proposta, era um cara de diálogo e conseguiu isso. Assim como Fogaça (em 2004) - para quem eu gostaria de dar o kikito de melhor achado de publicidade, que foi aquele “fica o que está bom e muda o que está ruim”, genial do ponto de vista de síntese, hábil, enganoso - funcionou. Mas agora o tema da pacificação está sendo forçado.


JC - Como?

Koutzii - O presidente da Federasul (José Paulo Dornelles Cairoli), na cerimônia do Prêmio Líderes e Vencedores, fez um discurso, breve, e disse, não por acaso, que a responsabilidade pela crise do Rio Grande do Sul é da situação e da oposição. Como é possível dizer isso? Não conseguem nem colocar uma CPI para funcionar com eficácia, porque não tem base institucional dentro da Assembleia. Então esse negócio de pacificação não cabe, não tem nada que ver com a realidade hoje.


JC - Em 2006, o senhor disse que o presidente Lula era a Geni da mídia. Também diria que a governadora sofreu uma surra midiática?

Koutzii - Não, ela sofreu denúncias de pessoas que estão no governo dela. E a imprensa noticiou os fatos relevantes, colocou os temas que a PF e o MPF evidenciaram por investigações. As coisas foram postas pela imprensa, mas a partir de um certo momento estabilizam-se.


JC - De que forma?

Koutzii - Como se dissesse: “se nós continuarmos indo adiante e os articulistas de opinião seguirem pressionando, ela (Yeda) vai cair”. Com uma aliança, ela se manteve e conseguiu manter partidos importantes, criando uma espécie de solidariedade de ferro, à prova de qualquer tema e qualquer indício. A devida responsabilização da governadora não foi adiante porque isso iria afundar o bloco de alianças que a sustenta. O “tombo” foi até um determinado ponto. Grandes famílias políticas de líderes que há 20 anos apitam muito no Estado, todos eles estão enterrados nessa história. E representam frações muito importantes de seus partidos. A CPI foi paralisada e, apesar do esforço heroico que está sendo feito, ficou contida. E a imprensa não vai acima disso. Como fui chefe da Casa Civil do governo Olívio e vi o que aconteceu com a CPI, dita, da Segurança, comparando, é um escândalo.


JC - Qual sua análise da  perda de espaço do PT eleitoralmente no Estado? Fala-se do isolamento do partido.

Koutzii - Isso virou um dos mantras, tanto do jornalismo quanto de uma parte do próprio PT, como um jeito de condicionar o pensamento óbvio. Há uma crise da ética e de pensamento político. Está tudo amassado por essa lógica, é tudo maniqueísta, totalmente bom ou ruim...


JC - O partido já aprovou aqui no Estado alianças com PSB, PCdoB e PDT para as eleições 2010. Tarso fala até em abrir o leque ao PTB.

Koutzii - Pelo que ele diz e pelo modelo nacional, é óbvio que está aberto. Tenho minhas opiniões sobre isso. Mas essas simplificações (sobre o isolamento do PT) são meio que armadilhas. Então, tudo que fizemos nos levou ao isolamento. Só que antes nos levou a 300 vitórias e a um peso inquestionável nesse Estado. Mas esta pauta de ampliação de alianças é legítima, há no governo federal, acho até que é um governo dominantemente PT-PMDB, só que Lula tem papel protagônico e central.


JC - Por que o senhor desistiu de concorrer às eleições em 2006?

Koutzii - Queria registrar minha inconformidade com as circunstâncias de 2005 e 2006, que envolveram o mensalão e aquela crise. Estava marcando uma posição sobre o próprio partido, sem sair dele. Tinha como quase certa minha eleição, essa questão não era nada fácil. Escolhi esse caminho porque não queria fazer críticas que me pareciam pertinentes e, ao mesmo tempo, dizer para as pessoas que poderiam votar em mim, “que sou bacana e legal”.


JC - Como o senhor avalia o quadro político nacional?

Koutzii - Primeiro, está claro que, do ponto de vista do que eram os nossos ideais no PT há dez anos, algumas bandeiras ficaram pelo caminho. Do ponto de vista da realidade política e social, considero o segundo governo Lula melhor que o primeiro, e a segunda parte do segundo governo melhor do que a primeira parte do segundo.


JC - Por quê?

Koutzii - Pelas realizações. Nos primeiros três anos, a ênfase da área econômica era tentar controlar a transição, evitar algumas bombas que estavam impostas pelo modelo seguido até então. E a inflexão da equipe do (ex-ministro da Economia Antonio) Palocci e aquela crise acabaram trazendo uma renovação obrigatória na equipe econômica e na Casa Civil. Foi quando a pauta passou da estabilização para uma perspectiva de desenvolvimento. Então, vamos ter Dilma (Rousseff) com suas qualidades enormes, tanto técnicas quanto políticas - li a entrevista de (Carlos) Araújo (segunda-feira passada, no Jornal do Comércio), está bem aquilo ali: ela fez política desde os 18 anos, tem experiência, e conhece tecnicamente os temas importantes, como energia e desenvolvimento. Não dá para comparar seu perfil com o de Lula, que, na presidência, já entrou para a história do País e tem, inclusive, protagonismo internacional.


JC - A política internacional do País recebe críticas por ações como Honduras...

Koutzii - A direita brasileira acha a política internacional de Lula desastrosa. Eu acho extraordinária. Lula se transformou em um interlocutor mundial. E nunca se reconheceu que era interessante para o Brasil ter mais peso no tabuleiro. Como dizer que foi um erro a história de Honduras? Foi um grande acerto. O crime foi o golpe militar. Mas a metade da universidade - os preferidos que, aliás, são sempre os mesmos, chamados especialistas - considera que foi um erro extraordinário.


JC - E a mídia?

Koutzii - Frente à crise de 2005 e 2006 (mensalão) e outros episódios com outros protagonistas - que não pararam de acontecer, ao serem descobertos pela PF -, aconteceu um processo interessante: a colocação no tabuleiro político da ética. Está posto por quem? Pela aliança conservadora e poderosíssima PSDB-DEM, que tem o seu centro político mais dinâmico, criador de pauta, nos grandes impérios midiáticos: Folha, Estadão, O Globo, TV Globo e Veja. A grande imprensa nacional compensa e, na verdade, já passou na frente da fragilidade relativa do PSDB e do DEM. O problema é que o que eles queriam venceu e foi hegemônico na década de 1990, com Fernando Collor e, depois, com Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Existe uma oposição no Brasil, mas ela não tem bandeira.


JC - O senhor quer dizer que o problema da ética é pautado por DEM e PSDB?

Koutzii - Pela imprensa em primeiro lugar. Esses grupos que nominei têm a linha de frente das iniciativas e das pautas. Esses dois partidos e seus aliados atiram para cada lado. E repercutem, dão vida à sua presença de oposicionistas com essa bandeira. Eles, que foram vitoriosos eleitoralmente, hegemônicos nas ideias e propostas na década de 1990, não têm mais isso. Então, como não têm essa proposta, precisam de outra que a substitua.


JC - E esse caso do DEM no Distrito Federal não pode quebrar um pouco esse paradigma da ética, tendo em vista que ele vira vidraça?

Koutzii - Torna-se vidraça. Mas estou falando dos últimos cinco anos, isso foi ocupando o tabuleiro do cenário político com grande eficácia. Ou seja, fragilizar esse governo (Lula) sem apresentar propostas melhores do que as do governo.


JC - Como o senhor projeta a disputa pelo Planalto?

Koutzii - A transferência de votos de Lula é um desafio difícil. Mas sei que a candidatura desse governo tem enormes possibilidades. O grande desafio é estabelecer as ligações entre as realizações importantes e o candidato. Acredito que Dilma ganha (a eleição), seja quem for o adversário (José Serra ou Aécio Neves, do PSDB). Mas não é uma vitória fácil.


JC - A estratégia do PT é fazer uma comparação entre os dois ciclos de oito anos de governo Lula e FHC?

Koutzii - Não conheço a estratégia eleitoral do PT, mas esse é um elemento impossível de não ser apresentado, até porque os números são espantosamente favoráveis a Lula. Se as pessoas perceberem mais, e o ano eleitoral ajuda, qual é o cenário que está em jogo, que é a unilateralização do tema ética e, com isso, o biombo que oculta as não propostas... Sempre que dou exemplo, digo que enfrentei o governo Britto. Era um governo que tinha proposta com início, meio e fim. Uma coisa é não estar de acordo, outra coisa é não ter proposta.


JC - Não há?

Koutzii - O principal que eles tinham a propor propuseram, a sociedade seguiu, os elegeu, eles fizeram mudanças - a diminuição do aparelho do Estado, privatizações, aplicaram a receita, o Consenso de Washington. Então, teriam que dizer o que fizeram lá - e pode ver que o recente artigo do FHC sobre isso gerou mal-estar entre os tucanos.

Perfil

Flavio Koutzii, 66 anos, é natural de Porto Alegre. Cursou Filosofia na Ufrgs, onde presidiu o Centro Acadêmico e iniciou sua atividade política. Também estudou Economia, mas não concluiu a graduação - em 1970 teve de sair de Porto Alegre por causa da ditadura militar. Fora do Brasil, fixou-se na Argentina em 1972, onde participou de uma organização política até ser detido. Ficou encarcerado de 1975 até 1979. Libertado, seguiu para a França como refugiado político e viveu em Paris por cinco anos, período em que concluiu o curso de Sociologia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. O resultado do trabalho acadêmico foi o livro Pedaços de morte no coração. De volta ao Brasil, em 1984, filiou-se ao PT. Em 1986, concorreu nas eleições como candidato a senador. Mas sua primeira vitória nas urnas se deu em 1988 - foi o terceiro vereador mais votado de Porto Alegre. Em 1990, obteve vaga na Assembleia Legislativa, sendo reeleito deputado estadual em 1994, 1998 e 2002. De 1999 a 2002, foi chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra (PT). Em 2006, depois do episódio do mensalão, decidiu que não concorreria à reeleição. Em 2008, foi convidado para ser assessor do presidente do Tribunal de Justiça, cargo que deixou em novembro deste ano.

Interessante análise...

O que é adultério

By Paulo Ghiraldelli
1975
Os homens ainda traem mais que as mulheres, mas as estatísticas estão caminhando para uma situação igualitária de maneira rápida. Além disso, o número de pessoas que traem também cresce de modo contínuo e veloz. Não tardará o dia em que todos nós, ao menos uma vez, não só será corno (ou corna), mas saberá disso de modo bem claro. E isso não em situações de namoro ou casamentos pouco sugestivos, mas mesmo em casamentos promissores ou efetivamente duradouros.
Não é o caso aqui de falar de motivos para o adultério. A literatura diz melhor sobre isso que a filosofia. O que me interessa aqui é a própria situação de adultério, ou seja, o que a caracteriza se a olhamos não pelo que seria o vulgar, mas pela descrição tentada a partir da filosofia.
A traição é o rompimento de uma confiança que se imagina ser mútua. Na situação pré-moderna a traição entre amigos era mais condenada que a traição entre cônjuges. A modernidade – e todo o seu fundamento profundamente romântico – inaugurou a equiparação entre essas formas de traição e, de certo modo, até mesmo a ampliação da condenação no segundo caso. A adoção da união “por amor”, e não por qualquer outro motivo, fabricou essa nova situação.
ArendtO casamento “por amor” implica no consenso inicial pactuado na intimidade e, portanto, às relações sexuais e institucionais da união soma-se a própria cláusula da amizade. De um modo geral, nos meios caracteristicamente urbanos, a união atual que é a procurada é a que funde dois requisitos: satisfatórias relações sexuais e amizade. Sendo assim, toda a carga emotiva da amizade entra, agora, em um espaço que, em princípio, seria só do sexo e de resquícios de tradições das obrigações matrimoniais do passado. Na lírica de Rita Lee, amor sem sexo é amizade, no pentagrama da vida urbana contemporânea, amor para o casamento é exatamente, então, a amizade com sexo. Desse modo, a traição ganha força dupla – ela rompe não laços que podem ser formais, mas elos da confiança mútua – a amizade – que fixava o horizonte que se prometia comum. Por isso, nos tempos contemporâneos, justamente em uma época que os mais distraídos pensam que “uma traição amorosa não conta mais nada”, ela conta muito. Quem trai não ofende a honra do outro e, sim, se tudo é descoberto ou contado, magoa os sentimentos do outro e fere seu orgulho próprio de modo inaudito. Caso uma constelação celeste desfavorável se insinue, há então situações de confronto espetaculares e trágicas.
HeideggerO que se passa na traição que não temos coragem de contar, talvez nem para nós mesmos, diz respeito a uma completa complexidade de sentimentos. Muitos não se dão conta dos detalhes dos sentimentos ou porque que se observam pouco ou, inversamente, porque se observam muito e ficam chocados com suas reações psicológicas.
A primeira coisa que o cônjuge traído imagina diz respeito ao momento de intimidade que o parceiro ou a parceira viveu com o terceiro elemento. Tudo se passa como se o cônjuge traído fosse levado para a cama de um terceiro elemento a contragosto.  O traído sente-se invadido, devassado, exposto. Seu sentimento é o de que é ele que foi levado ao sexo – e de modo desagradável, pois com o estranho. Assim, não é de se achar esquisito que a mesma fantasia do “sexo com o estranho”, que deixa muitos homens e mulheres excitados, reapareça no momento exato em que os casais brigam por conta de traições Assim, não raro, em meio a fantásticas discussões, repentinamente eles se reconciliam, fazem sexo e, após isso, se não voltam a brigar logo em seguida, se engalfinham em bate-bocas e desforras no dia seguinte, ou em maquinações piores. O momento do sexo, no dia anterior, não foi uma reconciliação em toda a extensão da palavra, mas apenas uma situação opaca, criada pela fantasia latente do sexo com o estranho. O estranho, nesse caso, pode funcionar como um fantasma bem específico na imaginação dos dois envolvidos, inclusive cumprindo um papel homossexual, num sentido amplo da palavra.
Casais em meio a uma briga podem fazer sexo, sendo que o traído, nesta hora, imagina o parceiro fazendo sexo com o terceiro elemento – isso parece algo não homossexual, mas, em certo sentido, há sim um componente homoerótico aí envolvido. Há aí a competição, a luta imaginária entre rivais. É claro que as relações de sadismo e masoquismo emergem neste contexto, quase que invariavelmente. Sodomizo minha mulher porque quero, agora que sei que ela pode ter feito sexo com outro, puni-la e/ou mostrar para ela que sou mais homem que o outro. Sodomizo minha mulher porque sempre quis agir assim, mas nunca a vi como mulher sexualizada – objetificada – o suficiente para tal. Então, como ela se mostra ou se fez desejosa de outro, eu avanço o sinal que eu mesmo havia colocado (eis aí o meu erro) de não tratá-la de modo não objetificado. Essa sodomização pode ser simplesmente o coito anal ou mesmo o coito vaginal com alguns tapas etc., nada além. Mas, ao mesmo tempo em que meu sadismo se amplia, mantenho meu sofrimento latente na medida em que o outro que esteve no meu lugar, também esteve ali presente, na minha fantasia quase que impossível de deter. Esse outro fez da minha mulher o que quis, com o consentimento dela. Sofro com isso e o ato sexual perdura meu sofrimento, necessário agora para o meu prazer real – o masoquismo – e, enfim, também para a minha mulher. A mulher, nesta hora, percebe que despertou o marido para algo que ela queria e sabia que queria, ou que, talvez, nem soubesse tanto que queria.  Mutatis mutandis tudo isso vale inversamente, para a mulher.
Alguns casais seguem em frente após isso. Há quem diga: foram cicatrizadas as feridas. Não! Ou ao menos não no sentido de que os prazeres envolvidos no despertar do sadismo e do masoquismo desapareceram. Caso as feridas tenham sido cicatrizadas, as chances de ocorrer novamente são grandes. Pois a ferida misturada ao sexo pode ser um ingrediente necessário para aquele casal. Há mulheres que percebem isso e, amando de fato seus maridos, sugerem que os traíram para que a fantasia do jogo sado-masoquista possa estar presente, tênue ou não, no decorrer do casamento. Esquecem-se elas que talvez nem precisassem de tal coisa, pois seus homens, na calada da noite no sexo com elas, sempre estiveram fantasiando, imaginando situações em que elas os corneavam. Isso é muito mais comum do que podemos obter por mensurações estatísticas feitas por psicólogos amadores.
Os homens tendem menos a criar situações, reais ou fictícias, de que estão traindo suas mulheres. Uma boa parte dos homens acha que é melhor “andar na linha”, visivelmente ou realmente, pois podem machucar suas mulheres (ou perder o controle delas por falta de legitimidade moral nas relações de poder que montam um casamento). Há, ainda, uma grande culpa do homem em relação à mulher, pelo fato dele exercer, ainda que não individualmente, uma supremacia social. Mas, logo agirão assim também, ou seja, podendo insinuar uma pequena traição, pois em uma sociedade como a contemporânea os papéis masculinos e femininos, caracterizados antes por “psicologias”, vão desaparecendo em função de um comportamento semelhante e unificado.
Muitos que observam casais que viveram situações de traição imaginam que os divórcios não saíram porque os casais foram hipócritas e, se odiando eternamente, viveram juntos por “pressões sociais”. Às vezes essa verdade que não se conta é, no fundo, apenas uma mentira. Ou seja, a pressão social contou menos do que imaginamos. O grande filósofo alemão, Heidegger, que inclusive chegou por um momento a ter simpatias com o nazismo, viveu uma paixão com uma aluna bem mais jovem, a judia Hanna Arendt que, depois, se tornou também uma filósofa famosa. Heidegger nunca se divorciou. Depois, já sem os encontros com Arendt, ele manteve outros casos extraconjugais com alunas, cada vez mais distantes de sua idade. Sua mulher sempre esteve ali, ciente, consciente, vigilante e compreensiva. Sim, compreensiva, mas dona da situação. Arendt a odiou a vida toda. Todavia, sabe-se que a mulher de Heidegger confessou a ele que amou o médico do casal. As cartas mostram que Heidegger soube disso, inclusive soube (ou sempre soube) que um de seus filhos era, em verdade, filho do médico. Heidegger nunca deixou de amar o filho e jamais se separou da mulher. Eles tinham todo um conjunto de segredos de polichinelo para compartilhar. Olhando de fora, pode-se dizer: o grande filósofo nunca foi nada além de um babaca. Não teve coragem de deixar a família para viver o grande amor com a deliciosa e inteligente judia. Mas, será esta a verdade? Ou, a quatro paredes, este casal, o filósofo e sua esposa, não tiveram uma vida sexual das melhores, um amor aparentemente burguês e, no fundo, além do amor burguês? Caso tenha sido isto, talvez o mecanismo sado-masoquista, a que aludi acima, tenha estado presente na cama deles, segurando eternamente o casamento. Nunca saberemos a verdade. Por isso mesmo, a história é boa. E dá o que pensar.
A situação do adultério é evitável. Muitos que se sabem poligâmicos podem optar pela monogamia. Os que não se tomam como poligâmicos têm mais dificuldade em serem monogâmicos por opção. Mas, como já disse, não é esta a questão aqui. A questão aqui era só a de descrever a situação de adultério. Ou seja, o que queria era poder dizer: o que ocorre no adultério é isso – e foi o que eu disse. Ou quase, porque o que falei está longe de ser um padrão. Vamos continuar acreditando que não nos comportamos de modo padronizado e, assim, cada um que vier a ler este meu texto poderá, ainda, conversar comigo e dizer “Ah, Paulo, o que falou, não tem nada a ver – ao menos comigo”. Ou seja, poderá ainda conversar comigo.
Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo e escritor e está lançando entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010 dois áudio books, “O que é marxismo?” e “Nietzsche apaixonado” (Universidade Falada) e um livro A aventura da filosofia (Manole)