O presente artigo não visa, absolutamente, ao diagnóstico de quaisquer indivíduos que, por razões diversas, apreciem freqüentar salas de bate-papo na internet, os chamados “chats”. Objetivamos aqui, a reflexão, segundo o legado de Freud, acerca do aspecto compulsivo de um determinado grupo de pessoas que apresentam índices de repetição compulsiva nessa prática, mesmo estando cientes, pela própria experiência, de que o resultado final dessa conduta, em seu caso especificamente, tende a ser o fracasso e o sofrimento. Este trabalho foi motivado por um caso clínico real, que nos levou a estudar os rituais de abordagem nesses espaços virtuais e que viabilizou a compreensão, mesmo que parcial, desse mecanismo interativo.
Há aproximadamente 20 anos, os microcomputadores começaram a fazer parte da lista de produtos indispensáveis em nossas casas e a aquisição desse componente vem-se tornando cada vez mais acessível à classe média e até a alguns segmentos das classes mais baixas. Associado a essa conquista, seguiu-se o acesso cada vez mais irrestrito à internet, o que modificou alguns hábitos nas comunicações interpessoais. Em face dessa nova realidade, surgiram os meios de comunicação virtual, os chats, espaços em que pessoas que normalmente não se conhecem interagem eletronicamente.
Por trás de tal recurso tecnológico, encontra-se um indivíduo que, por meio de um vídeo e um teclado, às vezes uma webcam e um microfone, chega a passar horas seguidas “hipnotizado” pelas fantasias advindas dessa interação. O anonimato do chat oferece um grande “escudo” defensivo. Por detrás de um nick (apelido), o sujeito se sente protegido, já que sua apresentação física não é exposta.
Sob a ótica da Psicanálise, a constituição do indivíduo vai muito além de seu corpo físico, sendo preponderante a existência de um aparelho psíquico. A identidade humana, portanto, não se limita à identificação física, mas tem principalmente uma componente psíquica.
Com os chats, surge uma nova fonte de relacionamentos interpessoais, que vão desde amizade virtual a namoro e sexo virtual. Parece-nos claro que, a partir do momento em que o sujeito se sente seguro com o anonimato, ele se sente livre para externar suas fantasias e desejos que, num mundo “não-virtual”, possivelmente ficariam reprimidos pela censura.
Convém atentar para a idealização da auto-imagem do internauta no contexto em estudo. Num mundo em que padrões de beleza quase inatingíveis são deveras valorizados, o sujeito migra facilmente do ideal imaginário à mentira idealizada. Normalmente, indivíduos com dificuldades de serem socialmente aceitos, por questões físicas ou por limitações emocionais, são adeptos em potencial do chat. A possibilidade de anonimato faz com que aqueles que o freqüentam transformem-nos em verdadeiros sítios de neuroses, onde podem descarregar fantasias e desejos de toda ordem.
Essas “salas de bate-papo” podem facilmente transformar-se em uma rica fonte de alimentação do ego de sujeitos perversos. Segundo Freud, a ansiedade pode corresponder a uma ânsia erótica reprimida, por ser, muitas vezes, desprovida de objeto através do qual possa escoar energia libidinal.
Cabe questionarmos se a satisfação dos anseios, buscada no chat, é de origem afetiva ou sexual. Freud afirma que o sistema Consciente (Cs) normalmente controla não só a afetividade como também o acesso a motilidade, isto é, a demonstração deste afeto. Portanto, a afetividade, por ser controlada pelo Cs, passa a impressão de absoluto controle sobre o sujeito; mas não é bem isso que ocorre, uma vez que a grande maioria dos impulsos de qualquer sujeito é guiada por seu Inconsciente (Ics).
Ao observarmos por algumas horas a dinâmica de um chat, percebemos que as interações ocorrem de forma sistemática: primeiro vem a abordagem inicial e, quando correspondida, seguem-se as apresentações iniciais, em que se questionam idade e local de moradia, possivelmente para que, mesmo no campo da fantasia, elabore-se a possibilidade de uma aproximação mais efetiva, levando-se em conta a compatibilidade etária e geográfica. Em seguida, aparece a curiosidade recíproca em torno da aparência física do outro seguida de perguntas acerca de atividades laborativas, preferências da vida cotidiana, etc. Encontra-se o sujeito entre o simbólico Ideal-de-Ego e o Imaginário Ego-Ideal, movido, inevitavelmente, em função do contexto instaurado, por evidente pulsão libidinal.
Podemos inferir que o gozo obtido nessa busca pelo “outro virtual” é nitidamente de caráter sexual, o que nos remete à importância dos efeitos da repressão das pulsões libidinais a que o sujeito fora submetido ao longo de sua vida.
Freud afirma que o anseio de um sujeito pode ser levado à satisfação se o objeto ansiado lhe for concedido. O caráter até então virtual da relação, não passada à condição presencial, tende a gerar certa intensificação de desejos, por conta da grande quantidade de energia ligada que o indivíduo acumula, convertendo-se o anseio em ansiedade, que não se converte inteiramente em libido por estar submetida à barra de tradução. Aumentada e ao mesmo tempo reprimida a ansiedade, surge a possibilidade de o sujeito, eleger o outro como objeto. O outro passa a ser, portanto, alvo de uma inevitável relação objetal motivada por expressiva transferência. Nesse estágio da relação virtual, o psiquismo do sujeito já está completamente exposto.
É freqüente o aparecimento em consultório de casos envolvendo dramas pessoais, tais como casamentos mal sucedidos, decorrentes desse tipo de comportamento que, via de regra, é atribuído a uma compulsão inexplicável. Todos esses casos têm grande interseção num certo grau de fracasso e sofrimento. Poderíamos ousar aduzir que o gozo no sofrimento começa antes mesmo do desencadeamento de tais dramas. O anonimato no chat não deixa de ser uma forma de auto-repressão, uma forma de sofrimento imposta a si próprio pelo internauta, um sistema mantenedor de substituição dos sofrimentos anteriores. Tais substituições de sofrimento, poderão também ser transferidas aos objetos de desejo ou aos relacionamentos virtuais não efetivados. Essa estratégia nos remeterá a diversas tendências masoquistas.
Freud declara que no masoquismo “O próprio sofrimento é o que importa; ser ele decretado por alguém que é amado ou por alguém que é indiferente não tem importância. Pode mesmo ser causado por poderes impessoais ou pelas circunstâncias; o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha oportunidade de receber um golpe”.
Parece-nos evidente que a aparente busca do prazer por meio de interações interpessoais em chats gera muito mais sofrimento do que prazer, o que não significa que o sujeito não obtenha satisfação, levando-se em conta a diferença entre os conceitos acima. O sofrimento gerado pelas barreiras, sejam elas quais forem, que muitas vezes inviabilizam a consumação do que reside na fantasia do chat, assim como as conseqüências dessa prática, muitas vezes desastrosas na vida de quem as adota, parecem seduzir o sujeito, que obtém o gozo nessa dinâmica.
Como mencionado na introdução, é arriscado atribuir especificamente a uma estrutura psíquica tal conduta, mas pode-se abstrair dessa tendência fortes traços de masoquismo em sujeitos normalmente infelizes, mas que obtém expressivo gozo na compulsão e na repetição.
Referências Bibliográficas:
Freud, Sigmund.: O Pequeno Hans, in: Volume X. Edição Eletrônica.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969-1980.
_____________: O Problema Econômico do Masoquismo, in: Volume XIX. Edição Eletrônica.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969-1980.
_____________: Emoções Inconscientes, in: Volume XIV. Edição Eletrônica.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969-1980.
_____________: Além do Princípio de Prazer, in Volume XVIII. Edição Eletrônica.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969-1980.