segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Desenvolvimento e ciências humanas


Por Márcio Pochmann no GRABOIS
 
O Renascentismo Europeu, ao final do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante até então no mundo medieval.
Com o desafio estabelecido de compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala cada vez mais global.

Para isso, a partilha do conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades urbano-industriais.

A perspectiva de crescente especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais. Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas - públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial.

Tudo isso, contudo, não deixou de produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de alienação na produção do conhecimento.

Tanto assim que a partir dos últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de 4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as universidades tradicionais.

A reação radicalizada do sistema universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na realidade.

No mesmo sentido, as agências públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas. Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as exigências da realidade nacional.

Esse modelo internalizado nos países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma, o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao contrário de outros países.

A recuperação da unidade filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a andar em sentido distinto.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Fonte: Valor Econômico

Cristina Kirchner impõe maior vitória da redemocratização argentina


Cristina Kirchner impõe maior vitória da redemocratização argentina
Cristina, a primeira mulher eleita diretamente à presidência da Argentina, será também a primeira reeleita (Foto: Presidência da Argentina)

Buenos Aires – A presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, obteve neste domingo (23) a maior vitória eleitoral desde a redemocratização do país, em 1983. Segundo a contagem parcial de votos, ela obteve mais de 53% dos votos válidos, 36 pontos à frente do segundo colocado, o ex-governador da província de Santa Fé, Hermes Binner.

Tomando como marco a volta argentina à democracia, este pleito estabeleceu alguns grandes recordes. O primeiro é exatamente a diferença para o segundo colocado. Binner conseguiu capitalizar parte do eleitorado insatisfeito ou indeciso na reta final, crescendo consideravalmente desde as prévias de agosto, mas não o suficiente para evitar uma margem extremamente confortável a favor da continuidade. Além disso, este é o percentual mais alto do vencedor, superando os 51,7% obtidos por Raúl Alfonsín em 1983. Será a primeira vez que uma mesma coalizão emplaca três governos seguidos.

Na história eleitoral argentina, Cristina, que havia sido a primeira mulher eleita diretamente, é também a primeira reeleita. De quebra, recuperou o controle do Congresso, uma avaliação que, para ser fechada de todo, terá de esperar algumas horas. É provável ainda que tenha imposto a vitória na enorme maioria das províncias, com grande possibilidade de superar o recorde anterior, de Carlos Menem.

Nascida há 58 anos na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, Cristina entrou para a vida política na década de 1970, quando cursava advocacia. Ao mesmo tempo, conheceu Néstor, com quem se casaria em 1975. Durante a ditadura, o casal se mudou para Rio Gallegos, na fria província de Santa Cruz, ao sul, onde se dedicaram a um escritório de advocacia. Só após o fim do regime repressor voltaram a atuar politicamente. Em 1989, Cristina se elegeu deputada provincial, enquanto Néstor foi eleito governador em 1991.

Em 1995, Cristina conquistou seu primeiro mandato no Senado, em 1997 foi eleita deputada e em 2001 voltou a ser senadora, no ano em que o país foi ao patamar mais profundo de sua crise política, econômica e social, com a queda do presidente Fernando de la Rúa.

Em 2003, Néstor foi escolhido pelo presidente provisório, Eduardo Duhalde, para ser o candidato. Sem acordo, o Partido Justicialista, conhecido fora da Argentina por peronista, lançou três candidatos, entre eles Carlos Menem, que saiu vitorioso do primeiro turno com 24% dos votos. O santa crucenho ficou em segundo, com 22%, e deveria disputar o segundo turno, mas Menem, ao notar que teria uma rejeição de 70% da população, renunciou à disputa.

Néstor chegou à Casa Rosada em uma eleição que não venceu, longe de contar com o apoio da maioria da população e precisando resgatar a economia nacional e a confiança da população na classe política.

A recuperação econômica, com criação de emprego e aumento de renda, e as políticas sociais e de direitos humanos garantiram a Néstor um bom respaldo. Em 2007, surpreendeu a todos anunciando que abriria mão da candidatura em prol da esposa. Cristina foi eleita com 45% dos votos válidos. Em 2010, a morte do ex-presidente eliminou a possibilidade mais provável para este ano, de que disputasse novamente o cargo, e jogou para a presidenta a decisão de continuar. Em março, ela anunciou que aceitava concorrer mais uma vez, em um momento em que já tinha grande respaldo popular.

O que as mobilizações chilenas nos ensinam?


Por Caio Zinet na CAROS AMIGOS

Durante os últimos quatro meses, os estudantes chilenos estão mobilizados em uma forte luta pela educação pública, gratuita e de qualidade. São cerca de 700 colégios e universidades ocupados por todo o país e até o momento foram realizadas, pelo menos, seis manifestações que reuniram em torno de 500 mil pessoas nas ruas de várias cidades do país. A maior delas, realizada no dia 18/9, reuniu um milhão de pessoas em Santiago.
A popularidade do governo Piñera despencou desde o começo do ano, e o apoio às pautas estudantis aumentou vertiginosamente desde o início dos protestos. Nesse período, também foram realizadas duas grandes greves gerais que paralisaram o país e colocaram a necessidade de se discutir também as leis trabalhistas herdadas da ditadura.
As mobilizações no Chile, e o imenso apoio popular que vem recebendo, apontam para o esgotamento de um modelo de educação gestado a partir de 11 de setembro de 1973, quando um golpe militar derrubou o governo socialista de Salvador Allende, e conduziu o general Augusto Pinochet ao poder.
Junto a Pinochet vieram as ideias dos teóricos neoclássicos (ou neoliberais, como preferir), como Milton Friedman, Hayek entre outros. Os “chicago boys”, como ficaram conhecidos, fizeram do Chile umas das primeiras experiências neoliberais da história contemporânea.
O Estado, dentro dessa concepção, é um grande e pesado ator social que deve preparar a economia do país para as empresas, retirando barreiras para o mercado financeiro, transformando os países em grandes fantoches do capital financeiro internacional.
Dentro dessa visão, o Chile transformou quase toda a sua educação em privada, e a parte que não é privada é subvencionada pelo Estado. Dessa forma, todo o chileno que quiser estudar terá que arcar com altos gastos de mensalidades, e pesados juros. As dívidas acompanham os estudantes chilenos por muitos anos. Estima-se que 40% dos estudantes deixem a universidade com dívidas.
A educação brasileira caminha para o mesmo rumo. Em 1995, cerca de 60% dos estudantes do ensino superior estavam matriculados no ensino privado, em 2007 essa proporção saltou para 74,6%.
As políticas estatais que propiciaram essa inversão foram gestadas durante os dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso, e se tornaram ainda mais concretas com o governo Lula, consolidando programas como o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e criando o Programa Universidade Para Todos (ProUni) e o que tiram verbas da educação pública e remetem para os grandes grupos de educação brasileira. Ao mesmo tempo, a educação pública vem sendo sucateada, e a qualidade de ensino é deixada em segundo plano.
Ao contrário do que sustenta o governo federal, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação das Universidades Federais (Reuni), não melhorou a qualidade do ensino público no país, pelo contrário. Aumenta-se o número de alunos por sala de aula e os recursos permanecem praticamente os mesmos.
Na prática o que se nota é que a educação pública está sendo aos poucos sucateada. Prova disso são as mais de dez ocupações de universidades federais e estaduais que estão acontecendo ou aconteceram por todo o país nesse segundo semestre, e tem entre suas principais pautas infraestrutura e qualidade de ensino. Os estudantes entraram em universidades públicas, mas não tem salas de aula, laboratórios adequados, faltam restaurantes universitários a todos, muitas vezes nem mesmo os prédios que abrigaram os cursos estão prontos.
A luta dos estudantes chilenos reflete ao que a educação chilena foi submetida, e mostra que o caminho que vem sendo trilhado pelo Brasil na educação leva ao fortalecimento do modelo privatista de educação, e a destruição do ensino público, gratuito, de qualidade e acessível a todos e a todas sem distinção de classe.
Aos estudantes e a sociedade brasileira que não esperem que a educação brasileira chegar a uma crise tão profunda como a chilena para se levantar contra esse modelo de educação. Aos estudantes brasileiros que se revoltem agora, que lutem para que 10% do Produto Interno Bruto (PIB) sejam destinados à educação pública.
O modelo chileno que deve nos guiar é o dos estudantes nas ruas dizendo que "educação não é mercadoria", e não o modelo neoliberal de educação, herança de Pinochet, que se mostra cada vez mais insustável.

Caio Zinet é jornalista