sábado, 31 de janeiro de 2009

do sitio Correio da Cidadania...

Não, absolutamente não!



Michael Warschavski

O Correio da Cidadania publica este manifesto escrito por Michael Warschavski, do Alternative Information Center (AIC), em 18 de janeiro passado. O jornal se oferece para transmitir à organização patrocinadora do manifesto as adesões que chegarem à redação.

Não em nome deles e nem em nosso nome!

Ehud Barak, Tzipi Livni, Gabi Ashkenazi e Ehud Olmert: não se atrevam a aparecer em qualquer homenagem aos heróis do Gueto de Varsóvia, Lublin, Vilna ou Kishiven. Nem vocês líderes do movimento Paz Agora, para quem paz significa "pacificação" a qualquer preço, inclusive a destruição de todo um povo. Sempre que eu estiver em uma dessas cerimônias, farei tudo para expulsá-los, porque suas presenças são um imenso sacrilégio.

Não em nome deles!

Vocês não têm o direito de falar em nome dos mártires do nosso povo. Vocês não são Ana Frank do campo de concentração Bergen Belsen, mas, sim, Hans Frank, o general alemão que se empenhou em provocar a fome e a destruição dos judeus da Polônia.

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Vocês não representam qualquer continuidade do Gueto de Varsóvia, porque hoje o Gueto de Varsóvia está diante de vocês, como alvo de seus tanques e de sua artilharia - e seu nome é Gaza.

Gaza que vocês decidiram eliminar do mapa, assim como o General Frank pretendia eliminar o Gueto. Mas, diferentemente dos Guetos da Polônia e da Bielorrússia, nos quais os judeus estavam praticamente isolados, Gaza não será destruída porque milhões de homens e mulheres nos quatro cantos do nosso mundo estão construindo um poderoso escudo humano no qual está gravado: NUNCA MAIS!

Não em nosso nome!

Juntamente com dezenas de milhares de outros judeus, do Canadá à Grã-Bretanha, da Austrália à Alemanha, nós os advertimos: não cometam a ousadia de citar nosso nome, porque nós partiremos para cima de vocês e, se necessário, os levaremos ao inferno dos criminosos de guerra e enfiaremos suas palavras goela abaixo até que peçam perdão por nos haver misturado com seus crimes.

Nós, e não vocês, somos os herdeiros de Mala Zimetbaum e Marek Edelman, de Mordechai Anilevics e Stephane Hessel, e agora transmitimos ao mundo a mensagem que eles dirigiram a toda a humanidade na Páscoa de 1943: "Lutamos pela nossa liberdade e pela liberdade de vocês; pelo nosso brio e pelo brio de vocês; pela nossa dignidade social e nacional, assim como pela dignidade social e nacional de vocês".

Esse Apelo do Gueto de Varsóvia nós deixamos sob a custódia dos lutadores da resistência em Gaza.

Para vocês, dirigentes de Israel, "liberdade" é uma palavra feia. Vocês não têm brio e não entendem o sentido da dignidade humana.

Não somos "outra voz judaica", mas a única voz judaica capaz de falar em nome dos santos torturados do povo israelita. A voz de vocês são as bestiais vociferações dos assassinos de nossos antepassados.

O original em inglês pode ser encontrado em http://www.alternativenews.org/content/view/1545/389/.


Os humanos, insensíveis, por ROBERT FISK...

Quando foi que paramos de nos incomodar com civis mortos em tempo de guerra?

Robert Fisk. 31/1/2009, The Independent, UK

Créditos: blog do azenha

Acho que estamos 'naturalizando' a guerra. Não é só porque Israel outra vez safou-se, depois da matança de centenas de crianças em Gaza.

E depois que a própria ministra de Negócios Estrangeiros de Israel disse que o exército israelense recebeu autorização para "enlouquecer" [ing. "go wild"] lá, tudo parece confirmar o que tenho dito, que a "Força de Defesa" israelense é exército tão vagabundo quanto os outros exércitos da Região.

Mas parece que perdemos o senso de imoralidade que se deve esperar que acompanhe todos os conflitos e todas as violências.

A recusa da BBC, de veicular um anúncio de pedido de ajuda para os palestinos é altamente instrutiva. Temos de pôr em discussão a "imparcialidade" da BBC. Em outras palavras, proteger uma instituição foi considerado mais importante que a vida de crianças. A guerra considerada esporte de massa, cujo atento monitoramento – como um jogo de futebol, por mais que o Oriente Médio seja escandalosa tragédia – ganha precedência sobre o sofrimento humano.

Não sei com certeza quando isso começou. Ninguém duvida que a II Guerra Mundial foi banho de sangue de proporções titânicas, mas, depois daquele conflito, implantamos vários tipos de leis para proteger os seres humanos. Os protocolos da Cruz Vermelha Internacional, a ONU – tanto o todo-poderoso Conselho de Segurança quanto a ridícula Assembléia Geral – e a União Européia foram criadas para pôr fim aos conflitos em larga escala. E sim, sei que houve a Coreia (sob bandeira da ONU) e depois foi o Vietnam, mas depois que os EUA retiraram-se de Saigon, criou-se um consenso de que "nós" já não guerreamos.

Estrangeiros, sim, cometem atrocidades em massa – pode-se pensar no Camboja – mas nós, ocidentais superiores, não. Não agimos assim. Guerra de baixa intensidade na Irlanda do Norte, talvez. E daríamos algum jeito no conflito Israel versus árabes. Mas havia um sentimento de que My Lai, nunca mais. Os civis voltaram a ser sagrados no Ocidente.

Não sei exatamente quando a mudança começou. Terá sido a desastrosa invasão israelense do Líbano, em 1982 e o massacre em Sabra e Chatila, pelos aliados de Israel, de 1.700 palestinos civis? (Gaza não bateu esse recorde.) Israel, como sempre, alegou estar lutando "nossa" "guerra contra o terror". Mas o exército de Israel não é o que se supõe que seja e os massacres (lembro do massacre de Cana, em 1996; e das crianças de Marwahine, em 2006) parecem estar associados a isso.

Além do mais, claro, há o assuntinho da guerra Iran-Iraque, de 1980 a 1988, que os ingleses apoiaram entusiasmados fornecendo armas aos dois lados, e o massacre, pelos sírios, de milhares de civis em Hama e...

Não, talvez tenha começado na Guerra do Golfo de 1991. Os rapazes e as moçoilas da televisão deitaram e rolaram – foi a primeira guerra que teve trilha sonora para acompanhar as imagens –, e os soldados dos EUA simplesmente queimaram vivos milhares de soldados iraquianos nas trincheiras, e só soubemos muito depois e nem demos muita bola; e quando os soldados dos EUA ignoraram as regras da Cruz Vermelha que mandam identificar e sinalizar valas comuns, safaram-se também desse crime. Havia cadáveres de mulheres em algumas dessas valas comuns – vi soldados ingleses enterrando cadáveres de mulheres. E lembro que viajei até Mutla, de carro, para mostrar a um delegado da Cruz Vermelha onde eu vira uma vala comum cavada pelos norte-americanos e ele viu uma papoula de plástico [é um broche, espécie de medalhinha distribuída para os que contribuíram para os fundos de apoio aos veteranos dos EUA] presumivelmente deixada ali por um norte-americano e disse: "Alguma coisa aconteceu."

O que ele disse foi que alguma coisa acontecera à lei internacional, às regras da guerra. Haviam sido violadas. Depois veio Kosovo – onde nosso caro Lord Blair pela primeira vez exercitou seus talentos de fazedor de guerra – e mais massacres. Claro, Milosevic era o bandido (embora muitos dos kosovares ainda estivessem em suas casas quando a guerra começou, o objetivo da guerra foi a volta deles, depois da brutal expulsão pelos sérvios). Mas aqui, outra vez, os ingleses violaram algumas regras a mais e safaram-se.

Lembrem o trem de passageiros que os ingleses bombardeamos na ponte Surdulica – e a famosa sequência em que o filme de Jamie Shea é acelerado, para mostrar que quem bombardeou não teria tido tempo para manter o fogo? (A verdade é que o piloto voltou para um segundo bombardeio depois de o trem já estar em chamas, mas essa parte foi cortada no filme.) Depois, o ataque à estação de rádio em Belgrado. E às estradas civis. Depois, o ataque a um hospital no interior. "Alvos militares", disse Jamie. Tinha razão. Havia soldados escondidos entre os pacientes, no hospital. Todos os soldados sobreviveram. Todos os pacientes morreram.

Depois foi o Afeganistão e todo aquele "dano colateral" e vilas inteiras varridas do mapa e depois foi o Iraque em 2003 e dezenas de milhares – ou meio milhão ou um milhão – de iraquianos civis mortos. Mais uma vez, no início, voltamos aos nossos truques ingleses de bombardear pontes e estações de rádio e pelo menos uma residência civil em Bagdá, onde "nós" imaginamos que Saddam estivesse escondido. Sabíamos que estava protegido por um escudo humano (de cristãos, aliás, por acaso), mas os americanos disseram que se tratava de operação "de alto risco" – e 22 civis foram mortos. Vi quando tiraram dos escombros o último cadáver, um bebê.

E não damos sinais de nos incomodar muito. Lutamos no Iraque, agora vamos voltar a lutar no Afeganistão, outra vez, e todos os direitos humanos e proteção devida à pessoa parecem ter evanescido mais uma vez. Arrasaremos vilas e cidades e descobriremos que os afegãos nos odeiam e formarão mais grupos de milícias criminosas – exatamente como fizemos acontecer no Iraque – para lutar contra nós. Os israelenses organizaram milícia semelhante em sua zona de ocupação no sul do Líbano, comandada por um major do exército libanês e fanático. Agora, os soldados ingleses é que "enlouquecerão". E a BBC está preocupada com sua "imparcialidade"?

Artigo original, em inglês em:

http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fiskrsquos-world-when-did-we-stop-caring-about-civilian-deaths-during-wartime-1521708.html

Teresa Cristina, Jussara Silveira & Rita Ribeiro - Três Meninas do Brasil Ao Vivo (2008)




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Créditos: UmQueTenha

Uma semana no Líbano martirizado

por Miguel Urbano Rodrigues [*]

.Na minha idade as emoções são mais controladas e menos frequentes do que nos anos da juventude. O encontro com o Líbano rompeu essa tendência. Os breves dias que ali passei foram vividos em estado de tensão permanente, tocado por emoções muito fortes.

O contacto directo com o sofrimento dos povos palestiniano e libanês desencadeou em mim um sentimento de dor, uma sensação próxima da angústia, acompanhada de outro sentimento, que fundia a compreensão do ódio dos povos da Região ao sionismo com a frustração nascida da consciência da pobreza da solidariedade dos ocidentais progressistas às vitimas dos monstruosos crimes do Estado de Israel.

O primeiro choque foi produzido pelo ajustamento à realidade do quadro físico e humano imaginado. Quase tudo diferia daquilo que esperava encontrar.

AS TRÊS BEIRUTES

Três são as cidades que coexistem na capital do país: Beirute Este, Beirute Sul e Beirute Oeste. O povo é o mesmo, mas na primeira a maioria dos moradores é cristã, nas duas últimas muçulmana.

Desde a época das Cruzadas, muçulmanos e cristãos conviveram pacificamente na Região. A implantação na vizinha Palestina do Estado de Israel alterou as relações entre as duas comunidades. Em 1976, em Beirute como noutras cidades, cristãos e muçulmanos passaram a viver em áreas separadas. Uma guerra civil irracional, incentivada pelo imperialismo e apoiada por Tel Aviv – numa época em que os palestinianos da OLP constituíam uma força hegemónica no Líbano – destruiu grande parte de Beirute. A agressão israelense de 1982 acabou com o que restava. O centro da capital foi transformado num montão de escombros. A agressão somente terminou com a saída dos combatentes palestinianos e o exílio em Tunis de Yasser Arafat.

Beirute continuou a ser uma cidade dividida, mas, com o transcorrer dos anos, a tensão entre as duas comunidades foi caindo para um nível cada vez mais baixo.

Destruída múltiplas vezes ao longo dos séculos, Beirute renasceu sempre, acariciada pelo Mediterrâneo e pelas brisas das montanhas que a emolduram num cenário deslumbrante. Neste Inverno um toucado de neve cobria os píncaros das serranias paralelas à costa, contrastando com o azul puríssimo do céu.

Finda a guerra civil, o Centro foi totalmente reconstruído graças a uma ajuda internacional negociada em condições que endividaram brutalmente o país. Ao percorrer demoradamente as suas ruas e a grande Praça da Estrela, esse Centro apareceu-me como um corpo estranho, ultra moderno mas sem personalidade, enxertado num conjunto urbano mediterrânico. Ali palpita o coração financeiro da cidade e concentram-se estabelecimentos comerciais de luxo, hotéis, restaurantes, as sedes de grandes empresas. O Estado financiou e dirigiu a reconstrução, mas tudo em benefício do sector privado.

Paradoxalmente, ao entardecer e à noite o movimento aumenta nesse Centro de fisionomia europeia em vez de diminuir, porque afluem à zona moradores vindos de muitos bairros. Nas esplanadas dos cafés misturam-se cristãos e muçulmanos. Mesquitas e igrejas erguem-se a escassa distância, a lembrar aos visitantes estrangeiros que comunidades com religiões diferentes podem coexistir pacificamente. Estranhei não identificar na área vestígios da agressão israelense de 2006. Soube então que Beirute Oeste e Beirute Este não foram então bombardeadas. Somente por engano, e na periferia, explodiu uma ou outra bomba nos bairros habitados pela burguesia.

Foi sobre Beirute Sul, a Beirute pobre, muçulmana e ardentemente solidária com o Hezbollah, que a Força Aérea sionista despejou as suas bombas, visando com mísseis supostamente "cirúrgicos" instalações do Hezbollah e residências de dirigentes da organização.

Contaram-me que nem um só quadro destacado do movimento patriótico foi então abatido durante essa operação de terrorismo sionista planeada com larga antecedência.

Enquanto na Beirute burguesa a malha urbana não permite ao forasteiro perceber que o Líbano foi devastado em 2006 por uma agressão monstruosa, isso não acontece na Beirute pobre, baluarte da resistência.

Ali enormes crateras permanecem abertas, como espectros do passado recente, ao lado de edifícios degradados. A reconstrução avança lentamente nessa zona que lembra um enorme estaleiro. Uma vida intensa anima as ruelas estreitas, projectando a imagem de uma comunidade que não perdeu a alegria de viver e se acostumou a transformar a desgraça em fonte de esperança.

Nas áreas bombardeadas não é permitido por motivos de segurança fazer fotografias. Mas não esquecerei o espectáculo doloroso oferecido por quarteirões inteiros onde montes de entulho empurram a imaginação para edifícios onde há dois anos pulsava a vida de famílias atingidas pela barbárie israelense.

Um comércio efervescente, na tradição oriental, contribui para a atmosfera de Beirute Sul, transmitindo a certeza de que a vaga quase ininterrupta de agressões sionistas não conseguiu abalar o espírito de resistência daquela gente.

Falei com os proprietários de minúsculas lojas.

A mensagem que transmitiram foi a mesma. Pediram que contasse no meu país o que vira, porque na União Europeia, a avaliar pela televisão, somente "dizem mentiras" sobre o Líbano e a Palestina.

O FÓRUM INTERNACIONAL

O Fórum Internacional de Beirute, em que participei, realizado nas instalações da UNESCO, foi praticamente ignorado pelos grandes media da União Europeia e dos EUA. Tal atitude não surpreende. A Declaração Final, que publicamos hoje, reflecte bem a importância do acontecimento no contexto da solidariedade com os povos agredidos pelo sionismo. Expressa uma clara condenação das guerras imperialistas no Iraque e no Afeganistão e da aliança dos EUA com o regime neofascista de Uribe, repudia as ameaças e provocações ao Irão, à Síria e ao Sudão e propõe alternativas ao diktat do mercado que está a encaminhar a humanidade para o abismo.

A agressão genocida contra Gaza foi obviamente o tema mais tratado. Além dos painéis principais sobre a luta contra o imperialismo, a solidariedade, a crise mundial e a construção de alternativas e as violações do direito internacional, houve duas mesas redondas, uma de parlamentares e outra sobre o combate ao bloqueio mediático.

Entre as centenas de participantes intervieram no Fórum personalidades de prestígio internacional como Ramsey Clark, ex-Procurador de Justiça dos EUA; o belga François Houtart, o filosofo francês Jean Salem; e Selim Hoss, ex-primeiro ministro do Líbano. A delegação da Venezuela, saudada com entusiasmo e gratidão pela ruptura do governo de Hugo Chávez com Israel, foi a mais numerosa. Os delegados do Irão, pela solidariedade do seu povo com a luta do Hezbollah e do Hamas, foram ouvidos com especial atenção.

O Fórum foi torrencial. Salientar esta ou aquela intervenção, entre as centenas que se sucederam em três dias, da abertura ao encerramento, não contribuiria para que o leitor europeu pudesse sentir a atmosfera do evento. O que o diferenciou de iniciativas de solidariedade similares foram a revolta, a indignação, a transparência do sofrimento dos porta-vozes dos povos da Região contra a criminosa estratégia do Estado sionista. Palestinianos e libaneses sobretudo estão conscientes de que muita gente progressista os apoia no mundo, mas condenam com firmeza a cumplicidade dos governos do Ocidente com Tel Aviv e lamentam a passividade, para eles incompreensível, das grandes maiorias perante os crimes do Estado sionista. E inspira-lhes profunda repulsa a conivência – para não dizer a aliança tácita – da maioria dos governantes árabes com Israel. O desprezo que sentem por Mahmud Abbas é hoje também praticamente unânime nas camadas populares.

Essa atitude imprimiu ao Fórum a atmosfera peculiar que a Declaração Final não podia transmitir. Em quase todos os painéis o debate tornou-se inviável, porque os oradores muçulmanos que se sucediam na tribuna preferiam exteriorizar emotivamente o seu sentir em vez de formular perguntas aos conferencistas.

Não creio que esse desvio do programa tenha sido negativo. A emoção e o protesto abriram portas à compreensão de uma conjuntura histórica e social contraditória que, pela sua complexidade, não pode ser captada recorrendo exclusivamente à ciência política.
No Hezbollah e no Hamas, satanizados pelos governantes ocidentais como organizações terroristas, identifico movimentos que na resistência ao terrorismo de Estado sionista cumprem um papel revolucionário. São eles e não as forças armadas de Tel Aviv que, como sujeitos da história, na defesa das suas terras ancestrais e dos seus povos assumem princípios e valores eternos da condição humana. Mas essa gesta heróica não deve levar a conclusões sentimentais simplistas.

Em primeiro lugar as generalizações não facilitam a compreensão da tragédia iniciada com a criação do Estado de Israel como facto colonial, patrocinado pelo imperialismo britânico sob a pressão dos lobbies judaicos. O Hezbollah e o Hamas diferem muito, com a peculiaridade de os dirigentes do primeiro serem muito mais permeáveis ao dialogo e à cooperação com forças e organizações marxistas.

Mas seria um erro não traçar a fronteira entre o nacionalismo, o patriotismo dos movimentos islamistas que são o pulmão da resistência, e uma opção orientada para mudanças sociais de conteúdo revolucionário.

A grande maioria dos dirigentes do Hezbollah e do Hamas não luta para abolir o capitalismo e implantar o socialismo.

Poucos povos no mundo contribuíram tanto como o dos antepassados dos libaneses para o estabelecimento de relações comerciais entre sociedades distantes. É suficiente um passeio por qualquer cidade libanesa para que a enorme densidade de pequenas lojas transmita ao visitante uma mensagem: a propriedade privada tem no país raízes milenares e a sua defesa assume para os proprietários um carácter sagrado. Surge-lhes como razão de existência.

A contradição apontada esteve presente na diversidade de posições dos delegados estrangeiros que foram a Beirute expressar a sua solidariedade a palestinianos e libaneses em luta contra Israel. Pela tribuna desfilaram xiitas e sunitas, ortodoxos, comunistas, marxistas sem partido, social-democratas, intelectuais conservadores que acreditam na humanização do capitalismo.

NAS TERRAS DA FRONTEIRA SUL

Quase tudo no Líbano apresenta a marca da excepcionalidade.

Numa área de 10.400 quilómetros quadrados (quase idêntica à do Distrito de Beja) vivem mais de 4 milhões de pessoas, metade das quais na capital.

Quatro quintos da população concentram-se nas planícies da delgada faixa costeira. O Líbano mediterrânico apareceu-me quase como uma infindável avenida marginal onde as cidades se encadeiam numa cortina urbana somente interrompida aqui e ali por bananais, pomares e hortas.

Tive a oportunidade de subir no Norte até Byblos, a antiga cidade fenícia onde foi reformado o primeiro alfabeto fonético criado na vizinha Ugarit, prodigiosa conquista, que iria abrir ao progresso da humanidade um rumo então inimaginável.

Em excursão promovida pelos organizadores do Fórum um grupo de estrangeiros, sobretudo europeus, desceu até ao Sul do país.

Em Tiro, milenária cidade-estado fenícia, hoje património da humanidade, são ainda visíveis feridas dos bombardeamentos de 2006. Reconstruiu-se tudo o que era susceptível de reconstruir, com o dinamismo peculiar ao povo libanês. Mas a memória da onda vandálica que atingiu todo o Sul essa permanece bem viva nas pessoas que viveram aqueles dias medonhos.

Em Canaan, a aldeia das bodas famosas onde, segundo a Bíblia, Jesus transformou a água em vinho, ouvimos de alguns moradores, idosos e jovens, relatos do ataque aéreo que ali arrasou uma casa isolada, matando todos quantos, principalmente crianças e jovens, ali se tinham refugiado. Os retratos das vítimas, próximo das campas, com os nomes gravados na pedra, e o fragmento de uma bomba recordam a chacina.

"Eles sabiam que não havia fuga possível", ouvi de uma velhinha, testemunha do massacre. "Foi tudo premeditado e rapidíssimo. Eles são monstros com rosto humano".

À medida que descíamos para o Sul, numa zona montanhosa, verifiquei com alguma surpresa que, distanciadas de pequenas aldeias, surgiam em encostas nuas e áridas belas moradias isoladas, de dois pisos.

Informaram-me que são residências de férias de famílias geralmente abastadas, de Beirute. O solo é ali muito pedregoso, mas em volta dessas casas os seus proprietários criaram terra fértil onde o verde de minúsculas hortas e pomares suaviza a dureza da paisagem.

Muitas foram destruídas, mas os donos voltaram a erguê-las no pedregal.

Passamos por um posto militar da chamada força de paz das Nações Unidas. Mas não vi ali um só soldado.

Caminhando por uma estrada de terra desde a aldeia de Aita Al–Shaab, chegamos a uma plataforma sobranceira a um vale muito verde onde passa a fronteira.

A quietude da tarde luminosa, a beleza agreste do lugar e o silêncio da natureza estimulavam a imaginação. A ideia da violência surge ali como aberração.

Mas a guerra foi muito real. Uma guerra repugnante.

As conversas animam-se, as estórias cruzam-se, evocadas por narradores que suportaram a chuva de mísseis que atingiam as suas aldeias e viram as bombas cair do céu sobre no casario.

Um amigo francês perguntou a um dirigente local da resistência se achava correcto definir a política exterior do Estado de Israel como fascista.

A resposta foi imediata e afirmativa. E prosseguindo, foi mais explícito:
"A gente destas aldeias não usa uma linguagem ideológica para dizer o que pensa da agressividade do sionismo na sua fase actual. Mas Israel com os seus crimes, sobretudo a partir da invasão de 2006, transformou num sentimento de ódio muito generalizado sentimentos de aversão e medo que eram inseparáveis da esperança de uma coexistência muito difícil, mas não impossível.

Aqui na fronteira, vivemos a ocupação destas terras do Sul durante anos. Estamos perto das colinas de Golan e sabemos o que significa para os nossos irmãos sírios a humilhação resultante da ocupação dessa parcela do país.

Hoje ninguém acredita na paz, temos consciência de que os EUA são íntimos aliados de Israel. Obama vai mudar o discurso, e fazer muitas promessas, mas é tudo retórica. Já começou mal com o discurso sobre a Jerusalém “indivisível”".

Uma jovem activista, presumivelmente do Hezbollah, interveio na conversa:
"O meu país acreditou na paz até à invasão, há dois anos. Depois abriu os olhos e compreendeu. Hoje sentimos orgulho por os termos derrotado militarmente. Julgavam-se invencíveis, mas os nossos combatentes barraram-lhes o avanço. Os seus tanques foram detidos a poucos quilómetros da fronteira por todo o lado.

Bonita, desinibida, cobria a cabeça com um véu negro, mas respondeu sem hesitar às questões colocadas.

Perguntei-lhe se o Hezbollah contava com o apoio da maioria da população. "Não há estatísticas, evidentemente. Mas pensamos que 60% apoiam a Resistência, dos quais mais de metade incondicionalmente e que apenas uns 10% adoptam uma posição crítica e acreditam que o Líbano não voltará a ser atacado. E anote: talvez 20% dos cristãos simpatizam com o Hezbollah, não obstante este ser um movimento xiita ortodoxo".

"E sobre a Palestina vê alguma saída para o seu povo?"- perguntei, abordando um tema ainda mais escaldante. Por motivos de segurança não lhe pedi, obviamente, que se identificasse.

"A tragédia de Gaza, que supera em horror tudo o que conhecíamos da barbárie sionista, confirmou o que o Hamas já sabia. Israel tem como objectivo estratégico inconfessado concretizar a aspiração dos fundadores do Estado hebraico que nasceu banhado em sangue. O discurso de Tel Aviv sobre a paz é um disfarce hipócrita. A multiplicação de colonatos na Cisjordânia é reveladora das suas intenções. Eles pretendem através do terror expulsar os palestinianos da sua terra. Em Gaza voltaram a utilizar armas proibidas por convenções internacionais, como as bombas de fósforo. Continuam a semear o ódio. A cumplicidade do Ocidente com essa criminosa politica fere-nos profundamente. As grandes cadeias de televisão justificam a agressão israelense como resposta aos rockets lançados pelo Hamas. É monstruoso o paralelo. Os rockets palestinianos destruíram meia dúzia de casas e mataram três pessoas. Eles já mataram mais de 1.300 e estão a arrasar Gaza…"

O desabafo da jovem fez-me recordar uma estranha cena de que eu fora testemunha na véspera. Um grupo de moços desenhara no chão do grande átrio do Centro da UNESCO, sede do Fórum de solidariedade, um mapa da Palestina antes da Partilha, encimado por uma frase: "Toda a terra do mar até ao rio é dos palestinos". Dezenas de pessoas, ao passar em frente, ajoelhavam-se e assinavam o seu nome.

Israel, com a sua escalada de barbárie, estimula o radicalismo palestiniano.

FUTURO NEVOENTO

Quatro dias após o início do cessar-fogo, tive a oportunidade em Beirute Sul, no Centro de Investigação Social e Económica de falar demoradamente com dirigentes do movimento revolucionário. Tudo ali é provisório porque a sede anterior foi destruída há dois anos durante um bombardeamento.

Impressionou-me a serenidade, o nível cultural e o conhecimento da História antiga desses dirigentes, apresentados na União Europeia como terroristas.

Todos deixavam transparecer uma educação esmerada. Registei que respondiam cortesmente a perguntas que as estrangeiras formulavam, mas em vez do banal aperto de mão, colocavam o braço direito no peito e saudavam-nas, sorrindo, com uma vénia.

Um deles revelou uma intimidade tão grande com questões ligadas à guerra que admito ser um quadro militar.

Quis saber o que pensava da possibilidade de uma trégua duradoura.

"O cessar-fogo antes da posse de Obama era uma certeza para nós. Tudo foi combinado com a Administração Bush, com a concordância do presidente eleito. Até o silêncio deste antes de tomar posse. Mas o dilúvio de comentários e de especulações dos media europeus e americanos nestes dias esconde uma realidade muito incómoda para Washington e Tel Aviv. Israel não atingiu nenhum dos objectivos da agressão. Semeou a morte na Faixa e destruiu ali infra-estruturas fundamentais, lançando na miséria aquela sofrida população. Mas o Hamas saiu fortalecido. O seu prestígio aumentou não apenas na Faixa e na Margem Ocidental, mas em todo o mundo muçulmano. Alguns dos túneis destruídos (antes eram quase um milhar) já foram reabertos. Não esqueça também que até ao cessar-fogo os combatentes do Hamas continuaram a lançar rockets sobre o território da potência agressora".

"O governo de Olmert acreditou que obteria uma vitória fácil e rápida bombardeando a Faixa e invadindo-a depois. Pretendia restaurar o mito da sua invencibilidade, abalado pela derrota de 2006. Mas a previsão foi desmentida. A coragem do povo de Gaza e a fibra dos patriotas do Hamas infligiram-lhe noutro contexto uma nova derrota. Não fazemos previsões sobre os desenvolvimentos políticos da situação. Mas Israel exibiu o rosto hediondo do sionismo expansionista com tamanha arrogância que milhões de pessoas, acreditamos, começaram a perceber em dezenas de países que Tel Aviv mente despudoradamente quando afirma desejar a paz. A solidariedade dos povos é agora mais do que nunca necessária para os nossos irmãos palestinianos e também para o povo do Líbano. O fanatismo sionista, o seu racismo, a imposição do apartheid só encontram precedentes no III Reich nazi."

E o que vai acontecer? - perguntei ao despedir-me.

"Não somos adivinhos. Mas o movimento da História é lento. Nele as décadas contam por vezes pouco. Estados que em determinadas épocas se imaginam vocacionados para durar séculos, desaparecem de repente, inesperadamente, em situações de crises imprevisíveis. Israel, pela sua ambição ilimitada, pela irracionalidade de uma estratégia de violência criminosa pode, sem tomar consciência, estar a abrir a sepultura para o Estado-nação criado artificialmente há 60 anos na Palestina. Uma nova diáspora judaica não é uma impossibilidade."


Ontem, enquanto escrevia este artigo, Israel rompeu o cessar-fogo e voltou a bombardear Gaza.

Não recebi a notícia com surpresa. Recordei palavras do médico palestino Eyad Sarraj, proferidas numa entrevista à jornalista Alexandre Lucas Coelho.

Esse homem declarou acreditar durante anos numa solução pacífica para a Palestina. Os horrores de Gaza, onde ele e a família, viveram dia e noite durante três semanas sob as bombas de Tel Aviv, levaram-no a mudar de opinião. É na resistência que vê agora a dignidade do seu povo.

Em Israel identifica hoje um caso de "doença patológica, de paranóia". Chegou à conclusão de que o Estado sionista "é o mal sem fronteiras".

Serpa, 28 de Janeiro de 2009

O original encontra-se em http://www.odiario.info/articulo.php?p=1032&more=1&c=1

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .