A massificação dos celulares é um fenômeno vivido em
toda a África. Em grande parte dos países africanos, o acesso aos
telefones móveis é maior que à energia elétrica. Devido ao baixo custo
do aparelho e dos serviços (muito menor que no Brasil), os celulares se
transformaram em uma das poucas opções de comunicação disponíveis e
assumiram diversas funções: desde de realizar pequenas operações
bancárias até para receber recomendações médicas.
Considerando essa realidade, uma organização do Zimbábue chamada
Kubatana
procura encorajar cidadãos e a sociedade civil a usarem o celular para
se mobilizarem e promoverem um “ativismo eletrônico”. Fundada em 2002, a
organização desenvolveu o
Freedom Fone,
sistema operacional com código aberto (qualquer organização pode usar
livremente o software e modificá-lo), que funciona como um disque
notícias. O usuário pode receber e enviar informações em mensagens de
voz ou SMS.
Efe
Upenyu Makoni-Muchemwa é ativista da Kubatana, organização que estimula o ativismo eletrônico via celular
Upenyu Makoni-Muchemwa, ativista da Kubatana, esteve no Brasil
para apresentar a experiência da organização no II Fórum de Cultura
Digital, realizado entre 15 e 17 de novembro na Cinemateca, em São
Paulo. Ela conversou com
Opera Mundi sobre o uso dos
celulares para promover cidadania e a situação de seu país, considerado o
menos desenvolvido do mundo pelo último Relatório de Desenvolvimento
Humano, lançado este mês.
Qual é a importância dos celulares na África?
Os celulares estão se tornando cada vez mais
importantes, principalmente nas áreas rurais e remotas. Há lugares no
Zimbábue onde não existe nem telefonia fixa, mas existe sinal de
celular, que se transforma na única ferramenta disponível para se
comunicar com o resto do mundo. Nós vemos casos como a Uganda, onde as
pessoas estão usando a tecnologia dos celulares para microfinanças e
operações bancárias. Ao redor da África, estão usando celular na saúde.
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Qual é o número de pessoas que tem acesso a telefonia móvel no Zimbábue?
Nós estimamos em 5 milhões pessoas. A população do país
é de 6 milhões, segundo o último censo – realizado há 10 anos. Mais
pessoas têm acesso aos celulares que à energia elétrica. A eletricidade
está distribuída em grandes centros urbanos. Mas nas vilas não há
eletricidade. Recentemente, foi lançado no Zimbábue um celular com
bateria solar, o que o torna ainda mais acessível para as pessoas que
vivem nas zonas rurais. Você não precisa mais plugar o aparelho na
tomada, você apenas o coloca no sol e ele está carregado!
Como funciona o Freedom Fone? Quem o acessa, de que local, que tipo de informação as pessoas buscam?
As pessoas ligam e então ouvem as informações que estão
disponíveis no Freedom Fone. Você não precisa estar na Internet para
usá-lo, o que o torna muito conveniente para pessoas que vivem nas áreas
rurais, onde não existe acesso a computadores. O sistema também pode
ligar de volta, o que é importante caso a pessoa não possa pagar.
Qualquer organização pode usar a tecnologia do Freedom Fone. Na
Kubatana nós criamos um canal alternativo de mídia, em que cada número
do telefone te destina para um conteúdo diferente.
Nós descobrimos que muitos estavam interessados no noticiário porque
ele era equilibrado, ao contrário dos outros veículos. Não dizia que o
governo era maravilhoso. Nós apenas colocamos os fatos. Quanto ao local
de acesso, eu imaginava que as pessoas só escutariam em Harare (capital
do Zimbábue), mas a audiência é em todo o país, mesmo nas áreas mais
remotas, mesmo em uma vila com duas pessoas. Foi incrível o jeito que se
espalhou.
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A informação produzida pelo Freedom Fone pode
atingir mais pessoas que a produzida pelos canais informativos
tradicionais, como jornais e televisão?
Sim, considerando o grande número de pessoas que têm
celulares - e todo mundo no Zimbábue tem celular. O nosso maior desafio
no momento é fazer com que as pessoas participem, mas para isso elas
precisam parar de ter medo. Há no Zimbábue a exigência de que todas as
pessoas registrem suas linhas. Com o registro e a vigilância constante
do governo, como fazer para que uma pessoa perceba que não há problema
em ouvir informações e em informar? Sempre ouvimos a pergunta: o governo
vai saber que eu estou enviando a informação, vão vir me pegar?
Em setembro, celulares foram usados para promover uma grande
revolta popular em Moçambique, na fronteira com o Zimbábue, contra o
aumento do custo de vida. Os celulares são um bom instrumento para
mobilizar as pessoas para agendas políticas e temas sociais?
No contexto africano sim e não. Os celulares têm suas
limitações, mas são a mídia mais acessada e o canal mais adequado para
fornecer informações para as pessoas. Então podem ser usados para
promover ativismo, mobilizar. Mas o problema é que os operadores são
movidos pelo lucro, não por moral. Se o governo os pressiona e diz: nós
queremos saber quem está mandando essas mensagens, eles vão liberar essa
informação. O registro das linhas também está ocorrendo em Moçambique.
Isso torna o espaço democrático e de liberdade de discurso muito menor e
ameaça o uso dos celulares para ativismo, para debater o que está
acontecendo no seu país.
Recentemente, foi lançado um novo Índice de Desenvolvimento
Humano, que coloca o Zimbábue na posição do país menos desenvolvido do
mundo. Essa é uma realidade perceptível?
Sim e não. Nós deveríamos ter progredido mais nesses 30
anos de independência. Mas em comparação com outros países, nós não
estamos tão mal. Temos mais de 90% da população alfabetizada. Eu ainda
não conheci uma criança zimbábueana que não soubesse ler e escrever. É
verdade que nos últimos dez anos a educação sofreu muito porque não
havia dinheiro, muitos professores saíram do país. Talvez, por isso, a
próxima geração pode não ser tão alfabetizada quanto as que vieram
antes. Eu não sei qual é o critério desse índice de desenvolvimento, mas
eu não acho que seja uma classificação justa.
Em termos de desenvolvimento como eu o entendo, o Zimbábue não
está mal. O país é capaz de conquistar mudança? Sim! Nosso dinheiro
valia menos que nada e nós sobrevivemos. Por outro lado, se compararmos o
Zimbábue com outros países, como o Brasil, com transporte público,
saúde, educação, eu acho que não estamos onde deveríamos estar.
Qual é a situação do Zimbábue hoje, depois da grande crise que abateu o país?
Nós estamos lutando. Para recuperar a posição em que
estávamos nos anos 90 é um trabalho grande e para avançar é um trabalho
ainda maior. Estamos no meio do caminho, ainda tentando descobrir se
nossa economia vai se estabilizar, se o número de empregos vai aumentar
(nossa taxa de desemprego é de 90%), como essa situação vai mudar. Mas o
mais importante é que o Zimbábue enfrenta hoje uma crise de liderança.
Você não diz: “esta é a pessoa que vai nos tirar do ponto A e nos levar
para o ponto B”. Não. Nós temos um longo caminho pela frente, há muito
trabalho.