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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ucrânia e Venezuela: diferenças


Diferenças entre Venezuela e Ucrânia

viCman/Rebelión
Por FC Leite Filho, no blog Café na Política:

Não quero plagiar a Dilma, para quem “a Venezuela não é a Ucrânia”, mas tentar estabelecer as diferenças dos dois processos, ambos empurrados para a guerra civil, em função do jogo de interesses das potências ocidentais e suas gigantescas transnacionais petrolíferas e midiáticas.

Comecemos pela Venezuela. Rica em petróleo, esta nação, situada ao noroeste de nosso Brasil, é sacudida por intermitentes tumultos, desde 1999. Nesse ano, ela abandonou sua condição de quase protetorado dos Estados Unidos. Por isso, derrotou o analfabetismo, a miséria absoluta em que viviam mais de 50% da população, o desemprego e a subnutrição.

Hoje, o país é o segundo da América Latina em número de universitários por habitante, vencendo mesmo a culta Argentina, só perdendo para Cuba. Para chegar a esta situação confortável, o governo bolivariano gastou 150 bilhões de dólares da conta petróleo. Era o dinheiro que ia, por baixo do pano, para as transnacionais petrolíferas, os tubarões estadunidenses e europeus, com sobras gordas para a oligarquia local. Esses setores não se conformam com a perda da galinha dos ovos de ouro e, com a mídia como principal aríete arremetem, desde então toda sorte de ataque às estruturas do país.

À diferença da Ucrânia, país eslavo a 10 mil km de distância e que agora cai, pela segunda vez nas mãos da direita (a primeira foi com a revolução laranja, responsável pela introdução de um neoliberalismo selvagem que desmantelou a indústria e fez explodir o -desemprego), o país sul-americano repeliu todas as arremetidas forâneas.

Com férrea determinação exercida por uma liderança política de descortino só comparável a Fidel Castro, coisa que os ucranianos estão longe de demonstrar, na atualidade, o presidente Hugo Chávez conseguiu, nos seus quase 14 anos de poder, aprofundar os avanços sociais e de soberania, no que foi reforçado por uma política de integração com os demais presidentes progressistas da região, inclusive do Brasil e da Argentina, os dois maiores do subcontinente. Chávez morreu de câncer, logo depois de ganhar com folga sua terceira eleição, mas passou o poder a seu fiel escudeiro, Nicolás Maduro, também eleito democraticamente e que tem exibido igual domínio das rédeas do processo.

É importante que se recorde as investidas anteriores contra o regime bolivariano, muito mais graves do que a atual, para que não caiamos no simplismo de engolir as informações distorcidas de que o governo do vizinho esteja a pique. Em seguida, vamos fazer a mesma introspecção na situação ucraniana

11/04/2002 - Hugo Chávez, há três anos no governo, é deposto por uma passeata de meio milhão de pessoas no rumo do Palácio Miraflores. No meio do cortejo anti-governista, 11 manifestantes tombam mortos por tiros disparados por sicários a mando da cúpula oculta do próprio movimento, como se comprovou depois. As redes de TV e rádio privadas suspendem suas novelas e até publicidade para concentrar-se na cobertura da passeata de mais de 10 horas e no incitamento sistemático da população contra o presidente.
Supostamente indignados com o massacre, os militares dão o golpe e prendem Chávez, ele próprio um militar. Mas isto só durou 48 horas, tempo suficiente para os golpistas mostrarem seu rosto: fechando o Parlamento, depondo os governadores eleitos de 23 Estados e estabelecendo total censura de informação. Aqui, entra um elemento fundamental não disponível hoje na Ucrânia: o povo organizado, que, mesmo debaixo da maior auto-censura da mídia, ganha as ruas, desta vez com dois milhões de pessoas, arranca Chávez da prisão e o restitui ao Palácio de Miraflores.

12/2002 e 02/2003 - Um lockout, greve patronal, conhecido como o paro petrolero, tenta paralisar, durante 63 dias, rigorosamente, todas as atividades do país, a começar da PDVSA, a empresa de petróleo e responsável por 90% da renda do país. Fecham lojas, supermercados, shoping centers, escolas, estádios de futebol, cinemas. Os venezuelanos não puderam sequer comemorar o Natal e o Ano Novo. Faltou gasolina e o desabastecimento ameaçava causar a fome.

Chávez utilizou o Exército para abrir e operar os supermercados, invadiu os navios petroleiros em greve no alto mar , fazendo-os funcionar, e assumiu o controle de câmbio, para deter a evasão de divisas. Ao mesmo tempo, a população permaneceu mobilizada nas ruas e em casa, para respaldar as medidas governamentais. 80 generais da ativa e da reserva sublevaram-se, tomando a Praça Altamira, a mesma em Chacal, que hoje serve de cenário para os atos violentos das atuais manifestações, atribuídas a estudantes. No início de fevereiro de 2003, Chávez, já no domínio da situação, demite mais de 20 mil engenheiros e dirigentes da PDVSA, por alta traição. Também, reforma mais de 300 altos ofiiciais, e segue com sua revolução bolivariana. Mas o país tinha sofrido um encolhimento no PIB de cerca de 60%.

15/08/2004 - Data do referendo revogatório, exigido pela oposição para cassar o mandato de Chávez, em meio a uma campanha de desmoralização, conduzida pelos meios de comunicação de praticamente todo o planeta, dominando mais de 90 da audiência. Hugo Chávez ganha o referendo por 58% e aproveita a oportunidade para aprofundar suas reformas sociais e econômicas. Os extremistas da oposição tentam mergulhar o país em nova crise, mas vêem-se desmoralizados em suas alegações de fraude eleitoral: a lisura do pleito havia sido atestada por observadores internacionais, inclusive o Center Jimmy Carter, do ex-presidente dos Estados Unidos.

27/05/2007 - Por não ter renovado a licença da RCTV (Rede Caracas de Televisión), a maior rede de TV do país, em funcionamento desde 1953, Chávez sofre virulenta campanha internacional, seguida de atos vandálicos nos principais centros do país. O presidente, que acusou a TV de insistir no golpismo contra as instituições, manteve sua decisão de ocupar militarmente o canal e fazer dele uma nova rede do governo, a TVS, que se juntou à Telesur e à VTV. Mas ele ainda ainda teve de aguentar alguns dias de tumulto e atentados a bens públicos, para dominar anarquia que se instalou nos bairros ricos de Caracas e outras cidades, tendo, para isso, de utilizar um dispositivo de 120 mil soldados.

25/08/2012 - O presidente Hugo Chávez já estava gravemente enfermo, quando uma explosão criminosa na refinaria Amuay, a maior do mundo, causa a morte de 48 pessoas e ferimentos em uma centena. Uma investigação concluiu que o vazamento responsável pelo incêndio foi propositado, como frisou o ministro das Minas e Energia e presidente da PDVSA, Rafael Ramírez.

14/04/2013 - Nicolás Maduro se elege presidente, sucedendo a Hugo Chávez, falecido em cinco de março, com apenas 1,5%, ou 300 mil votos, de vantagem sobre Henrique Capriles Radonski, candidato único das oposições. Capriles não aceita o resultado, faz novas acusações de fraude e convoca seus aliados a manifestar-se nas ruas. Atos vandálicos contra escolas e postos de saúde, onde atuam médicos e professores cubanos, redundam na morte de 11 pessoas e cerca de 80 feridos, em 20 dias de distúrbios que assaltaram várias capitais venezuelanas. Maduro manda recontar os votos e assume oficialmente no dia 19 do mesmo mês, iniciando um mandato de seis anos.

11/2013 – Uma explosão de preços, com remarcações, que chegaram a atingir, em alguns casos, até 12 mil por cento, aliada à escassez de produtos de primeira necessidade, levou o presidente Nicolás Maduro a decretar uma série de medidas. Elas obrigaram os comerciantes, desta vez pressionados pelo Eército e o povo na rua, a restabelecer os preços antigos e avender os produtos que haviam escondido em seus depósitos.

“Esta guerra econômica foi decidida na Casa Branca. Faz parte dos fatores de poder nos Estados Unidos, acreditando que tinha chegado o momento de destruir a revolução bolivariana”, disse o presidente. A manobra, entretanto, não foi capaz de evitar nova vitória do governo na eleição municipal de dezembro, quando os chavistas ganharam por 11,5%, dez pontos a mais que a estreita margem da eleição presidencial, em que concorreram Maduro e Henrique Capriles, este candidato único da oposição.

03/12/2013 – A cinco dias da eleição municipal, quase toda a Venezuela, incluindo a capital, Caracas, ficou sem luz devido a um colapso no fornecimento de energia elétrica. O apagão ocorreu durante um discurso televisivo do presidente Nicolás Maduro e uma partida de basquete. Maduro entendeu tratar-se de uma ação subversiva planejada de fora, e ordenou colocar as forças armadas e de segurança em estado de alerta máximo.

23/01/2014 – Renunciando à via eleitoral e institucional, a oposição se bifurca, tendo a vertente mais extremista , liderada por Leopoldo López, ex-agente da CIA, novamente assaltado as ruas, incendiando escolas, postos de saúde, estações do metrô e atentado contra as redes elétricas. Os distúrbios já causaram 15 mortos e tendem a continuar, mas o governo bolivariano, parece novamente no domínio do processo, inclusive porque os atos são de puro terrorismo e são rechaçados por 85% da população. Esta sofre com o trancamento de ruas, depredações, sujeira e detritos infestando as principais vias do país.

Agora analisemos a Ucrânia. Um presidente tíbio e enredado em profundas contradições foi incapaz de domar uma turba violenta de leões de chácara, lutadores de boxe e grupos assumidamente nazistas que havia três meses ocupava, incendiava e assassinava soldados e adversários, na praça do Parlamento, onde também se situam os principais prédios públicos.

Viktor Ianukovitch viu-se finalmente deposto por um golpe parlamentar e fugiu da capital, deixando o poder com os insurretos, financiados e treinados pela Europa e os Estados Unidos, interessados nesta área altamente estratégica e tradicionalmente aliada da Rússia.

Tomaram o poder? Longe disso. No máximo, podem ter precipitado a partição daquele imenso país, o maior em território e celeiro da Europa. Talvez nem isso consiga, porque, como ocorreu com a revolução laranja, de 2004, quando assumiram o poder formal em Kiev, tiveram de sair correndo três anos depois, porque os ucranianos não aceitaram a dilapidação de seu patrimônio e a receita do FMI.

Os principais líderes laranjas, o corrupto Viktor Yushchenko e a bilionária Yulia Timoshenko, até há pouco amargavam na prisão, condenados por desvio de verbas, isso depois de terem sido escorraçados nas urnas pelo mesmo tipo de eleitorado iludido que hoje aclama os “heróis da Praça Maidan”, outro nome dado à Praça da Independência..

Menos de uma semana depois da queda de Yanukovicht lá já estavam os técnicos do FMI para aplicar uma política fiscal, com o mesmo receituário que nos aplicavam por aqui, com arrocho e congelamento salarial, cortes nos programas sociais, recessão econômica e privatização do Estado. O país tem de pagar só este ano 35 bilhões de dólares e a Europa e Estados Unidos já avisaram que o dinheiro tem de ficar a cargo dos ucranianos.

A Rússia, que se habilitara a pagar a conta em contrapartidas bem mais suaves, certamente vai retirar a proposta, além de suspender as parcelas mais gordas do empréstimo de 15 bilhões prometidos ao antigo governo. Isolada na Praça Maidan, a turba que controla a Praça da Independência, sempre falando em nome da sociedade civil e indicando os nomes do novo governo, terá também pela sua frente a ameaça concreta de separação das regiões leste e sul, fronteiriças ao antigo território soviético, e onde estão concentradas as indústrias. Os nacionalistas já saíram às ruas para pedir a autonomia da Crimeia, outro território rico à beira do Mar Negro, onde uma base naval, reforçada pelo governo do presidente Vladimir Putin, deverá garantir as aspirações dos 60% da população de origem russa daquele território.

A Ucrânia é um país geográfica, étnica, econômica, cultural e militarmente dividido. Quase um quarto da população, vivendo nas regiões sul e leste do país, é de origem russa e fala a língua de seus antepassados, de quem se consideram aliados incondicionais, inclusive por uma questão de sobrevivência.

Finalmente, há a questão estratégica. O governo Putin já avisou que não vai aceitar a aberta ingerência da Europa e dos Estados Unidos, na sua fronteira, sobretudo agora, que já recuperou boa parte de seu poderio militar, destroçado depois da aventura da Perestroika e do consequente colapso do então Bloco Soviético.

Como se sabe, o trunfo russo não reside apenas na força militar e atômica que, segundo o politólogo Moniz Bandeira, autor do livro A Segunda Guerra Fria, recentemente lançado pela Editora Civilização Brasileira, permaneceu quase intacto depois da dissolução do bloco soviético. Ele está também em mais de 50% da energia (petróleo e gás natural) com que a Rússia abastece a Europa, através o gasoduto, que inclusive passa pela Ucrânia, país altamente dependente neste setor e que agora terá que se virar para pagar o preço real pelo seu uso e não mais o preço camarada de que desfrutava até a “revolução” de Maidan.

Como o fez com a Geórgia, que depois de tomada pelo Ocidente, em 2003, Putin dividiu em três, propiciando a independência da Ossétia e da Abecásia, estas ficando sob influência russa. O presidente da antiga segunda potência também anunciou seu propósito de instalar bases militares na Venezuela, Cuba e Nicarágua, da mesma maneira que os Estados Unidos fizeram com seus vizinho na região do Cáucaso.

Está reinstalada a guerra fria, dirão alguns, mas pelo menos estes países, sob ameaça permanente de invasão pelo Exército norte-americano, terão uma proteção contra aventuras intervencionistas, como Cuba teve no passado com a velha União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ou alguém tem dúvida de que a URSS teria impedido a invasão do Iraque, Afeganistão e a guerra civil na Síria?

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

‘Dilma aprofunda desregulamentação, liberalização e desnacionalização’


 VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO   do CORREIO DA CIDADANIA




“Os traidores sempre acabam por pagar por sua traição, e chega o dia em que o traidor se torna odioso mesmo para aquele que se beneficia da traição”. É com esta frase, atribuída a Victor Hugo, que o economista e professor titular de Economia da UFRJ, Reinaldo Gonçalves,encerra entrevista que concedeu ao Correio da Cidadania, para avaliar a atual crise econômica que arrasta países emergentes e as orientações econômicas e políticas em vigor nos anos petistas, em geral, e no governo Dilma, em particular.

Em busca de situar o Brasil em meio à grave crise econômica que as nações em desenvolvimento enfrentam em 2014, Gonçalves destaca que, há mais de dois anos, já havia previsto que onúmero de países atingidos pela crise econômica de 2008 aumentaria no mundo subdesenvolvido. “As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe chamado Brasil descarrila mais uma vez”.

Quanto às causas da tormenta, estas se situam muito além dos equívocos de política econômica tão ao gosto das citações da mídia corporativa e neoliberal, em coro com os ditames do FMI e Banco Mundial. “No Brasil, há o problema estrutural que se chama Modelo Liberal Periférico (MLP). Esse modelo híbrido combina o que tem de pior do liberalismo e da periferia e tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro”, ressalta Gonçalves.

A atuação do governo dos trabalhadores para aquela que deveria ser um de seus alvos primordiais, a distribuição de renda, não passa, ademais, de algo “raso, superficial e circunstancial”, visto não incidir na distribuição da renda funcional (salários versus renda do capital) e da riqueza. “Depois de 11 anos de governo, há a falência do PT, que tem sido absolutamente incapaz de realizar mudanças estruturais no país. Só houve a consolidação do Modelo Liberal Periférico”.

Finalmente, em face do atual arranjo político e eleitoral, considerados governo e oposição, não são alvissareiras as expectativas de Gonçalves – o governo, enfraquecido, deverá no máximo proclamar um discurso eleitoral mais à esquerda, para, após eventual vitória, fazer ainda mais ajustes sociais regressivos e concessões aos setores dominantes.

A seguir, a entrevista completa.

Correio da Cidadania: O ano de 2014 começa, ao que parece, selando o fim da bonança para os emergentes. Trata-se de uma crise anunciada?

Reinaldo Gonçalves: É a queda do mito de que vagões podem puxar locomotivas. Esse mito deveu-se, principalmente, a uma visão otimista a respeito do crescimento da China. E a maior divulgação do mito deveu-se a visão equivocada em relação a outros grandes países em desenvolvimento (Índia, Rússia, Brasil, África do Sul etc.), que têm economias estruturalmente frágeis.

Em dezembro de 2011, escrevi um artigo com o título “Crise econômica: eles hoje, nós amanhã” (revista CIÊNCIA HOJE, nº.: 289, janeiro/fevereiro de 2012). Há mais de dois anos a conclusão era que havia risco crescente de que o número de países atingidos pela crise econômica de 2008 aumentasse no mundo subdesenvolvido. O cenário mais provável era que os Estados Unidos e os principais países desenvolvidos da Europa sairiam da crise no médio prazo. Por outro lado, o argumento era que o Brasil seria atingido pela crise caso não ocorressem mudanças significativas nas estratégias e nas políticas. O cenário mais provável no médio prazo era, por um lado, os Estados Unidos e países europeus importantes saírem da crise. E, por outro, o Brasil, país marcado por enormes fragilidades e vulnerabilidades estruturais, afundaria em crises de todos os tipos.

As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe chamado Brasil descarrila mais uma vez. Atualmente, o que temos é exatamente essa situação.

Correio da Cidadania: A mídia corporativa e neoliberal, em coro com os ditames do FMI e Banco Mundial, está sempre a salientar para o público leigo a inépcia fiscal, monetária e cambial dos governos, que seriam grandes motivadores dessa crise que agora assola os emergentes. Você poderia avaliar, neste sentido, as causas estruturais dessa crise?

Reinaldo Gonçalves: Não há como negar que políticas econômicas equivocadas também são causas de crises. Governos erram quando estimulam a expansão extraordinária do crédito e, portanto, o alto endividamento de indivíduos e empresas. Há outros erros: elevar a dívida pública para níveis insustentáveis e deixar as variáveis macroeconômicas fundamentais em níveis inadequados, como taxa de juro e taxa de câmbio. Os governos erram quando definem graus de liberalização e desregulamentação que são incompatíveis com a estrutura econômica do país. Os governos dos Estados Unidos e de países da Europa cometeram graves erros nos últimos anos e estão pagando por isso. No caso do Brasil, não há como negligenciar o déficit de governança e os erros cometidos nos governos FHC, Lula e Dilma. O Governo Dilma é a própria apoteose da mediocridade em termos de estratégias, condutas e resultados. Esse governo comete muitos erros.

Ademais, a crise no Brasil tem profundas causas estruturais. Por exemplo, a vulnerabilidade externa estrutural do Brasil é muito elevada e, portanto, o país é muito afetado pela desaceleração do comércio internacional e a volatilidade dos fluxos financeiros internacionais. Países como a China se protegem com elevados níveis de competitividade internacional e baixa dependência em relação a recursos financeiros externos. No Brasil, por outro lado, esses riscos são particularmente elevados porque o país depende significativamente da exportação de produtos básicos (minério de ferro, carne, soja e outros) e da captação de recursos externos para sustentar seu crescente e elevado déficit nas contas externas (as transações comerciais, de serviços e financeiras com os outros países).

Ou seja, a despesa do Brasil em moedas estrangeiras é maior do que a receita. Em 2013, o país precisou captar US$ 81 bilhões para fechar suas contas externas. Portanto, há crescente risco de crise cambial, que tende a causar crises financeira, real e fiscal, bem como maior inflação. Não podemos esquecer que o passivo externo brasileiro supera US$ 1,5 trilhão. Ou seja, nas contas externas há extraordinários desequilíbrios de fluxos e estoques. Além de haver evidente deficiência de gestão, no Brasil há o problema estrutural que se chama Modelo Liberal Periférico (MLP). Esse modelo híbrido combina o que tem de pior do liberalismo e da periferia. O MLP tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro.

Correio da Cidadania: A Argentina esteve nestas últimas semanas no olho do furacão. Como vê o país e que correlação se pode fazer entre as conjunturas argentina e brasileira nesse momento?

Reinaldo Gonçalves: Há semelhanças importantes que derivam da vulnerabilidade externa estrutural e do déficit de governança em ambos os países. Entretanto, penso que, em uma perspectiva de longo prazo e estrutural, a situação argentina é melhor que a brasileira. Enquanto os argentinos procuram adotar um modelo de desenvolvimento com foco no crescimento e na redução da vulnerabilidade externa estrutural, o Brasil aprofunda cada vez mais o Modelo Liberal Periférico, marcado por crescente vulnerabilidade externa estrutural. A liberalização na área de serviços, as privatizações, a desnacionalização e a desindustrialização, que avançaram no Governo Dilma, ampliam e aprofundam este modelo. No que se refere às contas externas, tanto Brasil como Argentina têm elevados desequilíbrios de fluxos; no entanto, o desequilíbrio de estoque na Argentina (passivo externo financeiro líquido) é pequeno, enquanto no Brasil é muito elevado.

Correio da Cidadania: E as economias centrais, EUA e Europa por exemplo, como as situa neste contexto? Estão de fato em um processo de retomada de suas economias e sociedades, como se quer fazer crer a partir da algumas análises?

Reinaldo Gonçalves: Se, por um lado, é certo que instabilidade e crise são próprias ao capitalismo, também é verdadeiro que esse sistema econômico desenvolveu mecanismos para superar crises. Por esta e outras razões, o capitalismo, que é marcado por desperdício, injustiça e instabilidade, sobrevive e avança há séculos e, inclusive, atualmente, é o substrato da economia mais dinâmica do mundo (a chinesa).

Nos últimos anos, os principais países desenvolvidos perderam graus de liberdade na aplicação de políticas macroeconômicas convencionais (redução de juros e aumento de gastos públicos). Entretanto, esses países dispõem de pelo menos quatro instrumentos para a estabilização econômica: distribuição de riqueza e renda, progresso técnico, competitividade internacional e guerra. O processo de distribuição de riqueza e renda gera ampliação do consumo dos trabalhadores. Entretanto, é pouco provável que ocorra este processo no horizonte previsível. Muito pelo contrário, parte expressiva do ajuste frente às crises está recaindo sobre os trabalhadores e os grupos de menor renda. A política de distribuição de renda está sendo impedida pelo capital e pelas forças conservadoras e, de fato, a concentração de renda tem aumentado na maior parte dos países desenvolvidos.

A lógica da globalização (rivalidade internacional, foco na maior competitividade e efeito China) também tem dificultado a adoção de políticas distributivas. Boa parte da decepção com os governos Hollande e Obama advém dos fracassos das suas políticas de ajuste via mecanismos redistributivos. Entretanto, pode-se prever que os principais países capitalistas retomarão a fase ascendente no médio prazo tendo em vista o uso dos outros mecanismos estruturais. Este argumento aplica-se às principais economias capitalistas do mundo (EUA, Alemanha, França e Japão). É bem verdade que economias pouco importantes (Grécia, Portugal etc.) continuarão em crise.

O progresso técnico implica aumento de produtividade e lançamento de novos produtos, que elevam a massa de lucros. Há, então, estímulo para os investimentos. A maior competitividade internacional permite vender mais produtos no mercado internacional. A guerra impulsiona os gastos bélicos e, portanto, a geração de renda e emprego, além de estimular o progresso tecnológico e a competitividade internacional. Nesse sentido, há oportunidades extraordinárias (Líbia, Síria etc.), além de outras que podem ser criadas. Ou seja, além de desperdício, injustiça e instabilidade, o capitalismo é marcado por dinamismo e barbárie. O capitalismo é sustentado pelo dinamismo e pela barbárie!

Correio da Cidadania: Quais serão as consequências dessa crise para as economias emergentes, em especial para o Brasil?

Reinaldo Gonçalves: É a trajetória de instabilidade e crise. No caso do Brasil, o Modelo Liberal Periférico causa o processo de desenvolvimento às avessas. É a trajetória do Brasil no início do século XXI, que se caracteriza, na dimensão econômica, por: fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória, observam-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições; e um sistema político corrupto e clientelista. Essas questões são analisadas no meu livro Desenvolvimento às Avessas (Rio de Janeiro: LTC, 2013; Prêmio Brasil de Economia, categoria livro, 1º lugar).

Correio da Cidadania: O que vê como alternativas para esta situação, a curto e médio prazos? O controle de câmbio poderia ser uma medida adotada frente a uma fuga de capitais do país?

Reinaldo Gonçalves: No atual quadro político e eleitoral não vejo saídas, nem mesmo no longo prazo. As candidaturas e os arranjos políticos este ano envolvem continuísmo, seja com a situação, seja com a oposição, ambos igualmente conservadores, medíocres e comprometidos com o Modelo Liberal Periférico. Neste quadro, é improvável qualquer controle de capitais. O governo Dilma continua ampliando e aprofundando a liberalização e desregulamentação dos fluxos financeiros internacionais. Este governo também tem estimulado o investimento externo direto, ou seja, a desnacionalização via privatizações (aeroportos, energia etc.). Qualquer mudança na direção de controles de capitais só ocorrerá em resposta a uma gravíssima crise cambial e risco de grave crise política e institucional.

Correio da Cidadania: Quanto a esta condução da política econômica pelo governo Dilma, analistas de mercado, paradoxalmente, criticam o que seria um intervencionismo estatal exacerbado na economia? O que diria nesse sentido?

Reinaldo Gonçalves: Intervenção do governo na economia é fundamental em qualquer país. Isso ocorre nas funções alocação, distribuição, regulação e estabilização. Mesmo em países que adotam modelos mais liberais (por exemplo, os Estados Unidos), o governo realiza essas funções. Quanto mais desenvolvido for o país, maior é o foco nas políticas de regulação e estabilização.
O desafio dos países em desenvolvimento é definir estratégias de desenvolvimento e, portanto, prioridades e hierarquia de funções e políticas de Estado. O problema brasileiro (evidente no caso do atual governo) é que a estratégia implícita (Modelo Liberal Periférico) está condenada ao fracasso, o sistema político é patrimonialista, clientelista e corrupto, e há déficit estrutural de governança. Mesmo a função distributiva do Estado é rasa, superficial e circunstancial, visto que não ataca o problema da distribuição funcional da renda (salários versus rendas do capital) e da distribuição da riqueza.

O problema do governo Dilma não é, naturalmente, o grau de intervenção, mas a qualidade da intervenção (gestão incompetente e inconsistência de políticas) e o enquadramento estrutural (dado pelo Modelo Liberal Periférico). Assim, quando há a adoção de políticas adequadas, esta é comprometida pela incapacidade de gestão, enquanto políticas equivocadas são adotadas para atender os setores dominantes (bancos, agronegócio, mineração, empreiteiras) e promover o MLP. Em artigo recente faço um balanço da economia brasileira durante os governos petistas e mostro os fracos resultados do governo Lula e os resultados medíocres do governo Dilma (comparáveis aos resultados igualmente medíocres do governo FHC). (“Balanço crítico da economia brasileira nos governos do Partido dos Trabalhadores”, Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, No. 37, janeiro de 2014).

Correio da Cidadania: Como, finalmente, enxerga as reações recentes do governo diante dessa crise e, em especial, como acredita que ele vá chegar às eleições?

Reinaldo Gonçalves: A direita não consegue fazer uma crítica consistente e realista ao atual governo. E é cada vez mais raro encontrar uma crítica rigorosa e contundente pela esquerda. Vejamos. O governo Dilma está tentando empurrar com a barriga o impacto dos problemas causados pelas nossas fragilidades e vulnerabilidades estruturais, bem como pelos erros de estratégias e políticas do próprio governo. Muito provavelmente o governo chegará ainda mais enfraquecido às eleições. Mas tenta ganhar tempo, fará um falso discurso eleitoral à esquerda e, após as eleições, fará ajustes de alto custo social e maiores concessões aos setores dominantes. Os protestos populares refletem este enfraquecimento. De fato, os protestos populares têm como principais causas os problemas estruturais e os erros cometidos no passado recente.

A crise atual também é conseqüência do surgimento de três fenômenos nos dois governos petistas: o Brasil Invertebrado, o Brasil Negativado e o Lulismo (transformismo do PT). O Brasil Invertebrado caracteriza-se pelo fato de que os grupos dirigentes têm cooptado a grande maioria das organizações sociais, sindicais, estudantis e patronais. Exemplos: MST, CUT e UNE. Grupos sociais não-organizados, assim como movimentos sociais de maior envergadura, também são neutralizados por meio de políticas clientelistas — o bolsa-família, os benefícios da previdência e o salário mínimo são instrumentos poderosos tanto no plano da redistribuição da renda dentro da classe trabalhadora, como no plano político e eleitoral. Ademais, a impunidade de corruptos e corruptores continua como a regra geral, que tem poucas e surpreendentes exceções (as condenações do mensalão). Grandes grupos econômicos desempenham papel de atores protagônicos via abuso do poder econômico, corrupção e financiamento de campanhas eleitorais. Neste sentido, a ausência de organizações efetivamente representativas provoca revolta no povo.

O Brasil Negativado, por seu turno, expressa a deterioração das condições econômicas e abarca o país, o governo, as empresas e as famílias. As finanças públicas se caracterizam por significativos desequilíbrios de fluxos e estoques, além, naturalmente, dos problemas epidêmicos de déficit de governança e superávit de corrupção. O aumento da dívida das empresas e famílias tem causado crescimento significativo da inadimplência. O aumento da negatividade é resultado da política de crédito fortemente expansionista no contexto de taxas de juros absurdas, fraco crescimento da renda, inoperância da atividade fiscalizadora e abuso de poder econômico por parte dos sistemas bancário e financeiro. Milhões de pessoas (pobres e classe média) estão desesperadas e perdem o sono diariamente porque estão negativadas, não conseguem pagar suas dívidas. E isto causa sofrimento e revolta.

Por fim, vale destacar que a eleição de Lula expressou a vontade popular de transformações estruturais e de ruptura com a herança do governo FHC. Entretanto, o transformismo dos grupos dirigentes do PT gerou grande frustração. O social-liberalismo corrompido do PT se consolidou com as transferências e políticas clientelistas e assistencialistas. Depois de 11 anos de governo, há a falência do PT, que tem sido absolutamente incapaz de realizar mudanças estruturais no país. Só houve a consolidação do Modelo Liberal Periférico (que reúne o que há de pior no liberalismo e na periferia) e a manutenção da trajetória de Desenvolvimento às Avessas. O transformismo petista gera frustração e revolta.

O Brasil Invertebrado, O Brasil Negativado e o Lulismo (transformismo do PT) agravam os problemas econômicos, sociais, éticos, políticos e institucionais, comprometem a capacidade de desenvolvimento do país e geram frustração, sofrimento, revolta e ódio. Portanto, os governos petistas e seus aliados são os principais responsáveis pela crise atual e pelos protestos populares. (Ver meu artigo disponível na internet: “Déficit de governança e crise de legitimidade do Estado no Brasil”, 2013). Por essas e outras razões, o povo e a esquerda não podem ser complacentes com o PT, seus dirigentes e suas candidaturas!

Capital estrangeiro, empreiteiros, mineradores, banqueiros e os figurantes do sistema político clientelista, patrimonialista e corrupto aplaudem de pé o atual governo e o MLP, e se protegem do risco-Brasil enviando cada vez mais capital para o exterior. Nunca antes na história desse país, os ricos mandaram tanto capital para o exterior — algumas dezenas de milhares de brasileiros, de gente rica e muito rica. Por outro lado, no que se refere ao povo, às massas, não há as alternativas de sonegação, corrupção, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro, fuga de capitais e proteção frente ao risco-Brasil e ao Desenvolvimento às Avessas.

Restam os protestos populares, que são reações concretas à crescente percepção do que se tornou odioso no Brasil. Essa percepção não é mitigada por elevação do salário mínimo, bolsa família e benefício da previdência. Aqui, cabe citar a frase atribuída a Victor Hugo: “Os traidores sempre acabam por pagar por sua traição, e chega o dia em que o traidor se torna odioso mesmo para aquele que se beneficia da traição”.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Não nos esqueçamos da Taxa Tobin!






Um tema recorrente no debate sobre mudanças estratégicas em nosso País refere-se à necessidade de uma reforma tributária. Assim como a reforma política ou a reforma previdenciária, trata-se apenas de um mote para promoção de alterações em algum sistema jurídico-institucional existente. Podem ser encontradas diferentes alternativas e modelos para atender a todos os gostos. O “xis” da questão reside no verdadeiro sentido da transformação que se pretende operar, uma vez que não existe neutralidade na adoção de determinado tipo de política pública. Haverá sempre algum tipo de interesse por trás das diferentes propostas colocadas sobre a mesa, sempre que assuntos desse tipo venham à baila.

No caso da reforma tributária, o quadro de conflitos existentes é bastante explícito.
 
Os representantes do capital normalmente se escondem por trás dessa reivindicação genérica para pleitear a redução de impostos. E ponto final. Sob o discurso da carga tributária excessiva ou da cantilena do elevado custo Brasil, os representantes do empresariado pretendem diminuir o volume de tributos incidentes sobre suas atividades. Pouco importa se tal “reforma” vai implicar uma carência de receitas do Estado para dar conta das despesas envolvidas com a manutenção das políticas públicas tão sabidamente emergenciais e necessárias.
 
Afinal, o que importa mesmo é a busca tresloucada pela rentabilidade do empreendimento privado.

Sistema tributário regressivo e a necessidade de mudança

Outro enfoque bem distinto para dar conta da questão tributária implica em reavaliar a natureza do nosso sistema de impostos. E qualquer análise minimamente isenta vai confirmar que se trata de um modelo bastante regressivo.
 
Isso significa que ele foi concebido de forma a penalizar os setores de renda mais baixa da população. São várias as razões para a sobrevivência de tal quadro. Ainda não foi implementada a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), tal como previsto no art. 153, inciso VII, da Constituição Federal. A sistemática de alíquotas do Imposto de Renda suaviza os segmentos de renda muito elevada. Os impostos sobre consumo de bens e serviços não são capazes de diferenciar o comprador de acordo com sua remuneração. Assim, o milionário paga o mesmo tributo incidente sobre o litro de leite ou sobre o kwh da conta de eletricidade do que um assalariado que ganha um salário mínimo.

Portanto, quando se fala em reforma tributária, a estratégia dos trabalhadores e demais setores populares deve ser a de implementação de um modelo progressivo, de maneira a que passem a contribuir com mais impostos as camadas sociais que sejam mais bem aquinhoadas na repartição do bolo do patrimônio e da renda. Paga mais tributo quem possui mais riqueza ou quem recebe mais dinheiro.
 
Simples assim, uma mera questão de equidade e de restabelecimento de padrões mínimos de justiça social. E as possibilidades de utilização de instrumentos de tributação com esse fim são bastante amplas, podendo ser também de incidência internacional.

Taxa Tobin: inovação tributária global

Um exemplo bem característico dessa modalidade é a chamada Taxa Tobin. Trata-se de uma proposta que foi apresentada pelo economista norte-americano James Tobin (prêmio Nobel de economia em 1981), ainda na década de 1970. Há quase meio século atrás, ele propôs a criação de um imposto a ser aplicado sobre as operações envolvendo transações financeiras internacionais. Apesar de sua formação conservadora, Tobin compreendia a necessidade de impor algum grau de regulação na desordem perversa dos negócios internacionais. Ocorre que a idéia sofreu ataques pesados por mais de trinta anos, em particular pelas forças ligadas ao sistema financeiro, em especial a partir do momento em ela se transformou em bandeira dos movimentos progressistas pelo mundo afora. A criação de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais cumpriria com duas funções. Por um lado, o papel de regular esse tipo de operação, até hoje fora de qualquer tipo de supervisão ou controle. De outro lado, a possibilidade de constituir um fundo internacional, a partir do recolhimento da taxa, com objetivo de redução das desigualdades sociais e econômicas existentes entre as nações.

Ainda que o autor da proposta tenha tentado voltar atrás em sua proposição inicial, ela adquiriu vida própria e se converteu em uma das bases da constituição de movimentos e organizações que pleiteiam uma nova ordem econômica mundial. É o caso da ATTAC, sigla da “Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”, criada na França em 1998. Em pouco tempo a iniciativa ganhou escala internacional, aproveitando a toada do movimento altermundista e das articulações do Fórum Social Mundial. Durante a época de hegemonia absoluta do pensamento neoliberal, havia muito pouco ou quase nenhum espaço para esse tipo de proposição nos foros institucionais oficiais. Afinal, a criação de um tributo sobre qualquer tipo de transação econômica era vista como uma ingerência indevida no reino intocável das livres forças de mercado. Heresia pura!

Tanto mais se a intervenção que se imaginava viesse para o espaço do financismo e das relações econômicas internacionais. Vale lembrar que um dos pressupostos essenciais do Consenso de Washington era a livre circulação de capitais entre os países, sem nenhuma interferência nas entradas e saídas dos fluxos financeiros. A instituição de uma taxa impositiva nessa seara era vista como algo inconcebível.
 
No entanto, nada como um dia após o outro - e uma crise financeira internacional no meio - para colocar alguns dogmas do liberalismo em questionamento. Após a catástrofe provocada pela quebradeira generalizada dos bancos norte-americanos em 2008, o próprio “establishment” da economia mundial começou a flexibilizar seus graus de ortodoxia. Nada que cheirasse a alguma transformação mais profunda, de natureza político-ideológica. Apenas uma acomodação racional e oportunista, com o intuito de chamar o Estado de volta à cena e ajudar o capital a reduzir as suas perdas. “Business as usual”. A velha estória de promover a apropriação privada de lucros e a socialização de prejuízos.

A crise internacional e oportunidade de mudança

Assim, dentre as diversas propostas de inspiração keynesiana que passaram a frequentar a agenda dos organismos multilaterais desde então, voltou a ser mencionada a taxação das transações financeiras internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a própria União Européia (UE) resolveram incorporar o debate a respeito do assunto. Afinal, algumas projeções levavam a resultados bem interessantes, do ponto de vista das finanças internacionais. Um exercício com a alíquota irrisória de 0,01%, por exemplo, a incidir sobre alguns tipos de operações financeiras no mercado globalizado levariam a uma arrecadação superior a US$ 400 bilhões anuais. Uma quantia razoável para se iniciar um programa global contra a fome e a miséria, por exemplo. Ou seja, uma taxa praticamente invisível propiciaria a arrecadação de somas e fundos expressivos. Nesse caso, fica evidente que o discurso de que a ação do Estado sempre distorce a dinâmica do mercado não se sustenta. Uma alíquota como essa passa praticamente desapercebida pelos preços transacionados, mas resulta em volume de recursos nada desprezível, em razão da escala das operações.

Os momentos mais adequados para a introdução desse tipo de inovação são, em geral, aqueles marcados por algum tipo de crise. No entanto, é fundamental assegurar que os recursos sejam destinados a mecanismos de redução das desigualdades entre os países no mundo e não simplesmente a socorrer os caixas das instituições financeiras em dificuldades. Aliás, caso o governo brasileiro esteja mesmo interessado em manter seu protagonismo na esfera da diplomacia internacional, nada mais interessante do que patrocinar esse tipo de sugestão. Os países do Terceiro Mundo só terão a agradecer a iniciativas como essa, bem como a maioria da população do planeta.

Se o espaço de aceitação da Taxa Tobin continuar se ampliando, como indicam as pressões recentes de países europeus e da própria China, faz-se necessário avançar também na definição do arcabouço institucional. No plano das uniões econômicas ou da soberania de cada país, é mais fácil criar e gerir um tributo dessa característica. Porém, inexiste até o momento, um espaço internacional com legitimidade diplomática e capacidade tributária global. O caminho passa pela construção de um amplo consenso transcontinental em torno da medida e a constituição de um fundo mundial comunitário a partir da coleta dos recursos oriundos das transações tributadas.

Esta seria uma importante demonstração - concreta e objetiva - de que um outro mundo é mesmo possível.

- Jaciara Itaim é economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
 
23/01/2014


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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uma retrógrada ditadura rentista e terrorismo global


Uma retrógrada ditadura rentista e terrorismo global

Jaime Petras no PATRIA LATINA

A Arábia Saudita tem todos os vícios e nenhuma das virtudes de um estado rico em petróleo como a Venezuela. O país é governado por uma ditadura familiar que não tolera qualquer oposição e pune severamente os defensores dos direitos humanos e os dissidentes políticos. Centenas de milhares de milhões de receitas do petróleo são controlados pelo despotismo real e alimentam investimentos especulativos no mundo inteiro.
A elite dirigente confia na compra de armas ocidentais e nas bases militares dos EUA para sua proteção. A riqueza de nações produtivas é sugada para enriquecer o consumo notório da família saudita governante. A elite dirigente financia a versão mais fanática, retrógrada e misógina do Islão, o "waaabismo", uma seita do Islão sunita.

Confrontada com a dissidência interna de súbditos reprimidos e de minorias religiosas, a ditadura saudita vê ameaças e perigos por todos os lados: no exterior, governos xiitas seculares nacionalistas; internamente, sunitas moderados, nacionalistas democratas e feministas; no seio das cliques realistas, tradicionalistas e modernizadores. Como resposta, virou-se para o financiamento, treino e armamento de uma rede internacional de terroristas islâmicos que têm como objetivo atacar, invadir e destruir regimes que se opõem ao regime clerical-ditatorial saudita.

Bandar bin Sultan. O cérebro da rede terrorista saudita é Bandar bin Sultan, que há muito tem ligações profundas a altos funcionários políticos, militares e de informações dos EUA. Bandar foi treinado e catequizado na Base da Força Aérea Maxwell e na Universidade Johns Hopkins e foi embaixador saudita nos EUA durante duas décadas (1983-2005). Entre 2005 e 2011 foi secretário do Conselho de Segurança Nacional e em 2012 foi nomeado diretor-geral da agência de informações saudita. Desde muito cedo Bandar mergulhou profundamente nas operações terroristas clandestinas que funcionavam em ligação com a CIA. Entre as inúmeras "operações sujas" com a CIA durante os anos 80, Bandar canalizou 32 milhões de dólares para os Contra da Nicarágua envolvidos numa campanha terrorista para derrubar o governo revolucionário sandinista na Nicarágua. Durante o seu mandato enquanto embaixador envolveu-se ativamente na proteção da realeza saudita com ligações ao ataque terrorista às três Torres e ao Pentágono em 11/Set/2001. A suspeita de que Bandar e os seus aliados na família real tinham conhecimento prévio do ataque por terroristas sauditas (11 em 19) é sugerida pela súbita fuga da realeza saudita na sequência do ato terrorista. Documentos das informações americanas relativas à relação saudita-Bandar estão a ser analisados pelo Congresso.

Com a abundância de experiência e treino em dirigir operações terroristas clandestinas, proveniente das duas décadas de colaboração com os serviços secretos americanos, Bandar estava em posição de organizar a sua rede terrorista global em defesa da despótica monarquia saudita, isolada, retrógrada e vulnerável.

A rede terrorista de Bandar

Bandar bin Sultan transformou a Arábia Saudita de um regime virado para dentro, com base tribal, totalmente dependente do poder militar dos EUA para a sua sobrevivência, num importante centro regional duma vasta rede terrorista, apoiante financeiro ativo de ditaduras militares de direita (Egito), de regimes clientelistas (Iémen) e de regimes que intervêm militarmente na região do Golfo (Bahrain). Bandar financiou e armou uma vasta série de operações terroristas clandestinas, utilizando afiliados islâmicos da Al Qaeda, a seita waabita controlada pelos sauditas, assim como muitos outros grupos armados sunitas. Bandar é um operador terrorista "pragmático": reprime os adversários da Al Qaeda na Arábia Saudita e financia os terroristas da Al Qaeda no Iraque, na Síria, no Afeganistão e noutros locais. Embora Bandar tenha sido um trunfo a longo prazo dos serviços secretos dos EUA, mais recentemente assumiu um 'percurso independente' em que os interesses regionais do estado déspota divergem dos interesses dos EUA. Na mesma linha, embora a Arábia Saudita tenha uma inimizade antiga com Israel, Bandar desenvolveu um "entendimento secreto" e uma relação de trabalho com o regime de Netanyahu, em torno da sua inimizade comum para com o Irão e, mais especificamente, em oposição ao acordo provisório entre os regimes Obama-Rohani.

Bandar interveio, diretamente ou através de amigos, para reformular alinhamentos políticos, desestabilizando adversários e reforçando e expandindo o alcance político da ditadura saudita desde o norte de África até ao sul da Ásia, desde o Cáucaso russo até ao Corno de África, por vezes em concertação com o imperialismo ocidental, outras vezes projectando as aspirações hegemónicas sauditas.

Norte de África: Tunísia, Marrocos, Líbia e Egito

Bandar injetou milhares de milhões de dólares para reforçar os regimes pró-islâmicos de direita na Tunísia e em Marrocos, assegurando que os movimentos de massas pró-democracia seriam reprimidos, marginalizados e desmobilizados. Os extremistas islâmicos que receberam apoio financeiro saudita são encorajados a apoiar os islamitas "moderados" no governo, assassinando líderes seculares e líderes sindicalistas socialistas da oposição. As políticas de Bandar coincidem amplamente com as dos EUA e da França na Tunísia e em Marrocos, mas não na Líbia e no Egito.

O apoio financeiro saudita a terroristas islamitas e a afiliados da Al Qaeda contra o presidente líbio Kadhafi, estiveram em linha com a guerra aérea da OTAN. Mas surgiram divergências no pós-guerra: a OTAN apoiava um regime cliente feito de neoliberais e de expatriados contra os sauditas que apoiavam a Al Qaeda e grupos terroristas islamitas e pistoleiros e salteadores sortidos. Os extremistas islâmicos na Líbia financiados por Bandar foram financiados para alargar as suas operações militares à Síria, onde o regime saudita estava a organizar uma ampla operação militar para derrubar o regime de Assad. O conflito ruinoso entre a OTAN e os grupos sauditas armados na Líbia transbordou e levou ao assassínio islamita do embaixador dos EUA e de operacionais da CIA em Bengasi. Depois de derrubar Khadafi, Bandar abandonou praticamente o interesse no subsequente banho de sangue e caos provocado pelos seus homens armados. Estes, por sua vez, auto-financiaram-se – roubando bancos, surripiando petróleo e esvaziando tesourarias locais – relativamente "independentes" do controlo de Bandar.

No Egito, Bandar desenvolveu, em coordenação com Israel (mas por diferentes razões), uma estratégia para sabotar o regime da Irmandade Muçulmana, relativamente independente, democraticamente eleito, de Mohammed Morsi. Bandar e a ditadura saudita apoiaram financeiramente o golpe militar e a ditadura do general Sisi. A estratégia dos EUA de um acordo de partilha do poder entre a Irmandade Muçulmana e o regime militar, aliando a legitimidade eleitoral popular e as forças militares pró-Israel e pró-OTAN, foi sabotada. Com um pacote de assistência de 15 mil milhões de dólares e promessas de mais no futuro, Bandar proporcionou às forças militares egípcias sobrevivência e imunidade económica a quaisquer represálias financeiras internacionais. Não houve quaisquer consequências. Os militares esmagaram a Irmandade, prenderam e ameaçaram executar os seus líderes eleitos. Ilegalizaram sectores da oposição da esquerda liberal que tinham sido usados como carne para canhão para justificar a sua tomada do poder. Apoiando o golpe militar, Bandar eliminou um regime islâmico rival, democraticamente eleito, que contrastava com o despotismo saudita. Assegurou um regime ditatorial semelhante ao seu num país árabe fulcral, apesar de os dirigentes militares serem mais seculares, pró-ocidentais, pró-Israel e menos anti Assad que o regime da Irmandade. O êxito de Bandar em olear as rodas para o golpe egípcio assegurou um aliado político mas enfrenta um futuro incerto.

O renascimento de um novo movimento de massas anti ditatorial também atingirá a ligação saudita. Além disso, Bandar rompeu e enfraqueceu a unidade dos estados do Golfo: o Qatar financiou o regime Morsi e ficou sem 5 mil milhões de dólares que tinha disponibilizado ao regime anterior.

A rede terrorista de Bandar é sobretudo evidente no financiamento, armamento, treino e transporte de dezenas de milhares de "voluntários" terroristas islâmicos dos EUA, da Europa, do Médio Oriente, do Cáucaso, do Norte de África e doutros locais, uma operação numa escala de longo prazo. Os terroristas da Al Qaeda na Arábia Saudita tornaram-se "mártires do Islã" na Síria. Dezenas de grupos islâmicos armados na Síria competiram por causa de armas e fundos sauditas. Bases de treino com instrutores americanos e europeus e financiamento saudita instalaram-se na Jordânia, no Paquistão e na Turquia. Bandar financiou o importante grupo armado terrorista islâmico 'rebelde', o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, para operações fronteiriças.

Com o Hezbollah a apoiar Assad, Bandar canalizou dinheiro e armas para as Brigadas Abdullah Azzam no Líbano para bombardear o sul de Beirute, a embaixada iraniana e Trípoli. Bandar canalizou 3 mil milhões de dólares para os militares libaneses na intenção de fomentar uma nova guerra civil entre eles e o Hezbollah. Em coordenação com a França e os EUA, mas com muito maior financiamento e maior latitude para recrutar terroristas islâmicos, Bandar assumiu o papel de liderança e tornou-se o director de princípios duma ofensiva militar e diplomática em três frentes contra a Síria, o Hezbollah e o Irã. Para Bandar, a conquista islâmica na Síria levaria a uma invasão síria islâmica em apoio da Al Qaeda no Líbano para derrotar o Hezbollah na esperança de isolar o Irã. Teerã tornar-se-ia assim o alvo duma ofensiva saudita-Israel-EUA. A estratégia de Bandar é mais fantasia do que realidade.

Bandar diverge de Washington: a ofensiva no Iraque e no Irão

A Arábia Saudita tem sido extremamente útil mas, por vezes, escapa ao controlo de cliente de Washington. É o que acontece especialmente desde que Bandar se assumiu como chefe dos serviços secretos: um ativo de longa data da CIA, por vezes também assumiu a liberdade de exigir "favores" em troca dos seus serviços, especialmente quando esses "favores" reforçavam a sua subida no seio da estrutura do poder saudita. Assim, por exemplo, a sua capacidade de garantir os AWAC [1] , apesar da oposição da AIPAC [2] , fizeram-lhe ganhar alguns pontos de mérito. Tal como aconteceu com a capacidade de Bandar para assegurar a saída de várias centenas de 'realezas' sauditas com ligação aos ataques de 11/Set, apesar do bloqueio nacional de segurança a alto nível na sequência desses ataques.

Embora tenha havido transgressões episódicas no passado, Bandar avançou para divergências mais graves em relação à política dos EUA. Seguiu em frente, construindo a sua rede terrorista, no intuito de maximizar a hegemonia saudita – mesmo quando entrava em conflito com os amigos, clientes e operacionais clandestinos americanos.

Enquanto os EUA estão empenhados em apoiar o regime de direita de Malicki no Iraque, Bandar está a fornecer apoio político, militar e financeiro ao "Estado Islâmico do Iraque e da Síria" terrorista sunita. Enquanto os EUA negociavam o "acordo provisório" com o Irã, Bandar exprimiu a sua oposição e "comprou" apoio. Os sauditas assinaram um acordo de armas de mil milhões de dólares durante a visita do presidente francês Hollande, em troca de maiores sanções contra o Irão. Bandar também expressou o seu apoio à utilização por Israel da configuração do poder sionista para influenciar o Congresso, a fim de sabotar as negociações dos EUA com o Irão.

Bandar afastou-se da sua submissão inicial aos treinadores dos serviços secretos americanos. As suas estreitas ligações com presidentes e políticos influentes dos EUA e da UE, passados e presentes, encorajaram-no a meter-se em "aventuras do Grande Poder". Encontrou-se com o presidente russo Putin para o convencer a abandonar o seu apoio à Síria, propondo-lhe uma cenoura ou um chicote: uma venda de armas de muitos milhares de milhões de dólares se acedesse, ou a ameaça de enviar terroristas chechenos para sabotar os Jogos Olímpicos em Sochi. Virou Erdogan de aliado incondicional da OTAN que apoiava os opositores armados 'moderados' a Bashar Assad, para abraçar o 'Estado Islâmico do Iraque e da Síria' apoiado pelos sauditas, um estado filiado na Al Qaeda terrorista. Bandar "ignorou" os esforços "oportunistas" de Erdogan para assinar acordos de petróleo com o Irã e o Iraque, os seus continuados acordos militares com a OTAN e o seu anterior apoio ao defunto regime de Morsi no Egito, a fim de assegurar o apoio de Erdogan para a passagem fácil de grande número de terroristas treinados na Arábia Saudita para a Síria e provavelmente para o Líbano.

Bandar reforçou laços com os talibãs armados no Afeganistão e no Paquistão, armando e financiando a sua resistência armada contra os EUA, assim como propondo aos EUA um local para uma 'retirada negociada'.

Bandar provavelmente está a apoiar e a armar terroristas muçulmanos uigures na China ocidental e terroristas islâmicos chechenos e caucasianos na Rússia, enquanto os sauditas alargam os seus acordos petrolíferos com a China e cooperam com a Gazprom da Rússia.

A única região em que os sauditas têm exercido uma intervenção militar directa é no mini-estado do Golfo, Bahrain, onde as tropas sauditas esmagaram o movimento pró-democracia que contestava o déspota local.

Bandar: Terrorismo global em duvidosos fundamentos internos

Bandar envolveu-se numa transformação extraordinária da política externa saudita e reforçou a sua influência global. Só que para pior. Tal como Israel, quando um governante reacionário chega ao poder e derruba a ordem democrática, entram em cena os sauditas com sacas de dólares para estimular o regime. Sempre que aparece uma rede terrorista islâmica para subverter um regime nacionalista, secular ou xiita, pode contar com fundos e armas sauditas. Aquilo que alguns escribas ocidentais descrevem eufemisticamente como um "ténue esforço para liberalizar e modernizar" o retrógrado regime saudita, é na verdade uma renovação militar da sua atividade terrorista no exterior. Bandar usa técnicas modernas de terrorismo para impor o modelo de governo reacionário saudita aos regimes vizinhos e distantes com populações muçulmanas.

O problema é que as operações externas "aventureiras" de grande escala de Bandar entram em conflito com o estilo de governo "introspectivo" de algumas pessoas da família real reinante. Querem que os deixem em paz para acrescentar centenas de milhares de milhões às rendas do petróleo cobradas, para investir em propriedades de alta qualidade em todo o mundo, e para apadrinhar discretamente raparigas acompanhantes de gama alta em Washington, Londres e Beirute – enquanto se apresentam como piedosos guardiões de Medina, de Meca e dos lugares santos. Até aqui Bandar não tem sido contestado, porque tem tido o cuidado de prestar homenagem ao monarca dirigente e ao seu círculo interno. Comprou e levou primeiros-ministros, presidentes e outras figuras notáveis ocidentais e orientais para Riad para assinar acordos e apresentar cumprimentos para deleite do déspota reinante. Mas o seu comportamento solícito para com as operações da Al Qaeda no estrangeiro, o seu encorajamento aos extremistas sauditas para irem para o estrangeiro e se envolverem em guerras terroristas, perturba os círculos monárquicos. Têm receio que terroristas sauditas treinados, armados e bem informados – conhecidos por "guerreiros sagrados" – possam regressar da Síria, da Rússia e do Iraque para bombardear os palácios do rei. Além disso, os regimes estrangeiros visados pela rede terrorista de Bandar podem exercer retaliação: a Rússia ou o Irã, os sírios, os egípcios, os paquistaneses, os iraquianos podem patrocinar os seus instrumentos de retaliação. Apesar das centenas de milhares de milhões gastos na compra de armas, o regime saudita é muito vulnerável a todos os níveis. Para além das legiões tribais, a elite multimilionária tem pouco apoio popular e ainda menos legitimidade. Depende do trabalho migrante externo, de "especialistas" estrangeiros e das forças militares dos EUA. A elite saudita também é desprezada pelos mais religiosos do clero waabi por permitir "infiéis" em terreno sagrado. Enquanto Bandar alarga o poder saudita no exterior, as bases internas do governo estão a estreitar. Enquanto ele desafia os políticos americanos na Síria, no Irã e no Afeganistão, o regime depende da Força Aérea e da Sétima Armada americanas para o proteger duma série crescente de regimes adversários.

Bandar, com o seu ego inchado, pode julgar que é um "Saladino" a construir um novo império islâmico mas, na realidade, só com o levantar de um dedo, o monarca seu patrono pode provocar a sua rápida demissão. Uns bombardeamentos civis demasiado provocadores dos seus beneficiários terroristas islâmicos podem levar a uma crise internacional que tornem a Arábia Saudita num alvo do opróbrio mundial.

Na realidade, Bandar bin Sultan é o protegido e o sucessor de Bin Laden: aprofundou e sistematizou o terrorismo global. A rede terrorista de Bandar tem assassinado muito mais vítimas inocentes do que Bin Laden. Claro que isso era de esperar; afinal, ele tem milhares de milhões de dólares do tesouro saudita, o treino da CIA e o aperto de mão de Netanyahu!

[1] AWAC: Airborne Warning and Control
[2] AIPAC: American Israeli Political Activity Committee

Ver também:
Behind the Saudi crack-up
Saudis, Israelis developing new ‘super Stuxnet’ against Iran nuclear program

O original encontra-se em petras.lahaine.org/?p=1969 . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

domingo, 5 de janeiro de 2014

István Mészáros: "O capitalismo hoje promove uma produção destrutiva"


050114 mszResistir - [Eleonora de Lucena] A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82. Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram.

Nesta entrevista, feita por e-mail, ele afirma que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que "há algo de profundamente errado no capitalismo", que hoje promove uma "produção destrutiva".
Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro O Conceito de Dialética em Lukács [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.
A mesma editora lança, de Lukács, Para uma Ontologia do Ser Social 2 [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume György Lukács e a Emancipação Humana [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].
Folha - O sr. vem ao Brasil para falar sobre György Lukács. Como profundo conhecedor do legado do filósofo, como avalia a importância das suas ideias hoje?
István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário politicamente consciente quase 70 anos antes. Com o passar do tempo, foi se movendo na direção dos temas filosóficos fundamentais. Seus três trabalhos principais nesse campo – "História e Consciência de Classe (1923), "O Jovem Hegel" (1948) e "A Destruição da Razão (1954) – sempre resistirão ao teste do tempo.
Seus estudos históricos e estéticos sobre granes figuras da literatura alemã, russa e húngara seguem sendo as mais influentes em muitas universidades. Além disso, ele é autor de uma monumental síntese estética, que, tenho certeza, virá à luz um dia também no Brasil. Felizmente, seus também monumentais volumes sobre problemas da ontologia do ser social estão sendo publicados agora no Brasil pela Boitempo. Eles tratam de algumas questões vitais da filosofia, que têm implicações de longo alcance também para a nossa vida cotidiana e para as lutas em curso.
O que é menos conhecido sobre a vida de Lukács é que ele esteve diretamente envolvido em altos níveis de organização política entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919, que surgiu a partir da grande crise da Primeira Guerra Mundial. No Partido ele pertencia ao "grupo Landler"; era o segundo no comando. Esse grupo recebeu o nome em homenagem a Jenö Landler (1875-1928), que foi um líder sindical antes de se tornar uma figura do alto escalão partidário. Ela buscava seguir uma linha estratégica mais ampla, com maior envolvimento das massas populares.
Lukács foi derrotado politicamente em 1929. No entanto, voltando a 1919, em um dos seus artigos (está no meu livro editado agora pela Boitempo), ele alertava que o movimento comunista poderia enfrentar um grande perigo quando "o proletariado transforma sua ditadura contra ele mesmo". Ele provou ser tragicamente profético nesse alerta.
De qualquer forma, em todos os seus desempenhos públicos, políticos e teóricos, se pode encontrar sempre evidências de sua grande estatura moral. Hoje em dia lemos muito sobre corrupção em política. Podemos ver a importância de Lukács também como um exemplo positivo, mostrando que moralidade e política não só devem (como advogava Kant) como podem andar juntas.
O sr. e Lukács têm vidas que unem teoria e prática. Qual é a diferença entre ser um militante marxista no século 20 e hoje?
A dolorosa e óbvia grande diferença é que os principais partidos da Terceira Internacional, que tiveram uma força organizacional significativa e até influência eleitoral durante algum tempo (como no caso dos partidos comunistas da França e da Itália), implodiu não só no Leste, mas também no Ocidente. Apenas alguns partidos comunistas bem pequenos permanecem fiéis aos princípios de outrora. Essa implosão ocorreu muito tempo após a morte de Lukács.
Naturalmente, como um militante intelectual por mais de 50 anos ele estaria hoje desolado com esses desdobramentos. Mas partidos são criações históricas que respondem, de maneira boa ou ruim, a necessidades de mudança. Marx foi bem ativo antes da constituição de um partido importante que pudesse, depois, se juntar à Terceira Internacional. Quanto ao futuro, alguns partidos radicalmente eficazes podem ser reconstituídos se as condições mudarem significativamente.
Mas o tema em si é muito mais amplo. A necessidade de combinar teoria e prática não está ligada a uma forma específica de organização. De fato, uma das tarefas mais cruciais para a combinação de teoria e prática é o exame da difícil questão sobre porque houve a implosão desses partidos, tanto no Ocidente quanto no Leste, e como seria possível remediar esse fracasso histórico no atual desenvolvimento da história.
O que significa ser um marxista hoje?
Praticamente o mesmo que Marx enxergou nos seus dias. Mas, é claro, é preciso ter em mente as mudanças históricas e as novas circunstâncias. Marx enfatizou corretamente desde o princípio que, ao contrário do passado, uma característica crucial da análise socialista dos problemas é a confrontação com a autocrítica. Ser crítico ao que nos opomos é relativamente fácil. Isso porque é sempre mais fácil dizer "não" do que encontrar uma forma positiva que possa ser utilizada para que as mudanças necessárias possam ser realizadas.
É preciso um verdadeiro senso de proporção: compreender tanto fatores negativos – incluindo a sua parte mais difícil da autocrítica –, como as potencialidades positivas sobre as quais o progresso pode ser feito. Ambos aspectos são relevantes. É essencial reexaminar com uma intransigente autocrítica até os acontecimentos históricos mais problemáticos do século passado, em conjunto com suas então expectativas. Isso se quisermos superar as contradições do nosso lado no futuro.
A pressão do tempo e os atuais conflitos das situações históricas de hoje tendem a nos desviar desse caminho de ação. Mas o princípio orientador de combinar crítica com genuína autocrítica será sempre um requisito essencial.
Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. Do seu ponto de vista, o marxismo está em expansão ou não?
Você está certa. É preciso ser cuidadoso sobre conclusões apressadas e definitivas em qualquer direção. Geralmente elas são geradas mais por desejos do que por evidências históricas. O colapso do governo Gorbachev não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. A fantasiosa tese sem sentido do "fim da história" de Fukuyama não faz a menor diferença.
Também não é possível descartar o neoliberalismo simplesmente pelo fato de que suas ideias e políticas, promovidas com agressivo triunfalismo, não são apenas perigosamente irracionais (haja visto sua atitude sobre a guerra), mas são absurdas as suas defesas do devaneio do imperialismo liberal. Sob certas condições, mesmo absurdos perigosos podem obter apoio massivo, como sabemos pela história.
A verdadeira questão principal é quais são as forças subjacentes e determinações que conduzem o povo a becos sem saída em diferentes direções. A mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, nas mesas de café da moda (não para estudo, mas para mostrar tema de conversa) não significa que as ideias marxistas estão agora avançando por todo o mundo. É inegável que o aprofundamento da crise que vivenciamos hoje está gerando protestos por todo o mundo.
Mas encontrar soluções sustentáveis para as causas que tendem a surgir em todos os lugares requer a elaboração de estratégias apropriadas e também correspondentes formas de organização que possam coincidir com a magnitude dos problemas em jogo.
E o que dizer sobre as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
Em certo sentido, elas estão inegavelmente ganhando mais adeptos, mesmo que não seja no terreno das ideias conservadoras sustentáveis. "Não mudar" é quase sempre muito mais fácil do que "mudar" uma forma estabelecida de comportamento. É a situação histórica real que induz as pessoas a irem numa direção em vez de outra. Mas a questão permanece: o curso adotado é sustentável? Há uma conhecida lei da física, no terreno da eletricidade, que diz que a corrente elétrica segue a linha da menor resistência.
Isso é verdadeiro também sobre a situação de muitos conflitos sociais que decidem, mesmo que temporariamente, em que direção um problema deve ser equacionado naquele momento dependendo da relação de forças (ou seja: a força de resistência à situação atual) e da capacidade de realização de alternativas adequadas. A viabilidade de longo prazo de um curso adotado em relação a outro não é de forma alguma garantia de melhor sucesso. Muitas vezes o oposto é o caso.
Na nossa situação histórica, as respostas viáveis de longo prazo podem requerer incomparáveis maiores esforços do que tentar seguir o "curso que deu certo no passado", em vez de encarar o desafio e o fardo de uma mudança estrutural radical. Mas os problemas são enormes, e a interação de forças na sociedade é sempre incomparavelmente mais complexa do que a direção da corrente elétrica. Por isso, é muito duvidoso que o que "deu certo" na linha conservadora da menor resistência possa funcionar no médio prazo, muito menos no longo prazo.
Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
Essa é a questão mais importante em nosso período histórico em que crises se manifestam em diferentes planos da nossa vida social. Se estamos preocupados em enfrentar uma solução historicamente sustentável para nossos graves problemas, entender a verdadeira natureza do debate das contradições é essencial. Conflitos e antagonismos históricos são passíveis somente a soluções do tempo histórico. É muito confuso falar de capitalismo como um sistema mundial.
O capitalismo abarca apenas um período do sistema do capital. Só ultimamente é que constitui um sistema mundial de fato, para além da sustentabilidade do próprio capitalismo. O capitalismo como um modo social de reprodução é caracterizado pela extração predominantemente econômica da mais valia do trabalho. Entretanto, há também outras formas de obter a acumulação do capital, como a já conhecida extração política do trabalho excedente, como foi feito na URSS e em outros lugares no passado.
Nesse sentido, é importante notar que a diferença fundamental entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado, pertencendo à normalidade do capitalismo, e a crise estrutural do sistema do capital como um todo - que é o que define o atual período histórico. Por isso tento sempre enfatizar que nossa crise estrutural (que pode ser datada do final dos anos 1960 e se aprofundando desde então) necessita de mudanças estruturais para uma solução duradoura possível. E isso certamente não pode ser atingido com uma "linha de menor resistência".
Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
Como sabemos, o século 21 é ainda muito jovem e muitas surpresas ainda estão por vir. Mas a figura política que teve o maior impacto na evolução histórica do século 21 – um impacto que deve perdurar e ser estendido – foi o presidente da Venezuela Hugo Chávez Frias, que morreu em março deste ano.
Claro, Fidel Castro também está muito ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu grande impacto histórico estão nos anos 1950. Do lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém se alinha à sua estatura histórica no lado conservador até agora neste século.
E qual o evento mais surpreendente do século 21?
É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana, alcançando agora o ponto em que ultrapassar os EUA como "motor do mundo" (como definem de forma complacente) é considerado factível em apenas alguns anos. Era previsível há muito tempo que isso iria acontecer tendo em vista o tamanho da população chinesa e a taxa de crescimento anual de sua economia. Mas muitos especialistas diziam que isso iria ocorrer daqui a muitas décadas no futuro.
No entanto, seria muito ingênuo imaginar que a China pode permanecer imune à crise estrutural do sistema do capital, simplesmente porque seu balanço financeiro é incomparavelmente mais saudável do que o norte-americano. Mesmo o superávit de milhões de milhões de dólares dos chineses pode evaporar-se de um dia para outro no meio de uma turbulência não muito distante no futuro. A crise estrutural, por sua própria natureza, obrigatoriamente afeta a humanidade como um todo. Nenhum país pode invocar imunidade a isso, nem mesmo a China.
As crises fazem parte do capitalismo. Qual sua avaliação sobre a que eclodiu há cinco anos. Quem ganhou e quem perdeu?
Parte do capitalismo? Sim e não! Sim, no sentido limitado de que a crise eclodiu com intensidade dramática nos países capitalistas mais poderosos do mundo, que se autodenominam "capitalistas avançados". Mas muito do seu "avanço" é construído não apenas sobre privilégios de exploração (no passado e no presente) das suas relações de poder (políticas e econômicas) em relação ao chamado "Terceiro Mundo", mas também sobre o catastrófico endividamento de sua realidade econômica.
Escrevi em 1987, num artigo publicado no Brasil em 1987, que o "verdadeiro problema da dívida" não era – como foi apontado na época – a dívida da América Latina, mas a dívida insolúvel dos EUA, que está fadada a acabar com uma colossal quebra, equivalente à magnitude de um terremoto econômico para o mundo todo. Há dois anos, quando dei minha última palestra no Brasil, apontei que a dívida dos EUA somava astronômicos 14,5 milhões de milhões de dólares, antecipando seu inexorável aumento. Hoje nos movemos para os 17 milhões de milhões de dólares, e mais e mais.
Qualquer um que imagine que isso é sustentável no futuro, ou que isso não vai afetar todo o mundo na Terra, quando o processo de crescimento inexorável do endividamento está fadado a levar a uma situação paralisante, deve viver num planeta diferente.
O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
As tradicionais crises cíclicas/conjunturais costumavam fortalecer o capitalismo no passado, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que Schumpeter idealmente chamou de "destruição criativa". Os problemas são muito mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta até dimensão mais fundamental do controle social metabólico da humanidade, incluindo a natureza de forma perigosa. Assim, falar de "destruição criativa" nas condições atuais é totalmente autocomplacente. É muito mais apropriado descrever o que está acontecendo como uma "produção destrutiva".
A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, mais para a esquerda, ou mais para a direita?
Até agora, mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos dos países capitalisticamente avançados – e não apenas eles – adotaram políticas que tentam resolver os problemas através da "austeridade", com cortes reais em salários, assim como nos padrões de vida já precários daqueles que são geralmente descritos como os "menos privilegiados".
E a linha de "menor resistência" ajuda na extensão, ou, ao menos, na tolerância das respostas institucionais conservadoras dominantes para a crise. Mas é muito duvidoso que essas políticas, que agora tendem a favorecer a direita, possam produzir soluções duradouras.
Como o sr. previu, a pobreza aumentou nos últimos anos, mesmo em países do coração do capitalismo. Nos EUA, a desigualdade aumentou. No Reino Unido, há um movimento para dar comida aos pobres, coisa que não ocorria desde a Segunda Guerra. O que está errado no capitalismo? É possível que o sistema não possa mais gerar crescimento suficiente para a humanidade?
Dar cesta básica para os muito pobres não é o único sinal visível desse aspecto da crise, nem essa situação está confinada os países capitalisticamente avançados, como o Reino Unido. Escrevi em "Para Além do Capital" (publicado em inglês em 1995) sobre a volta dos sopões. Nos últimos dois ou três anos podemos vê-los nas telas das TVs em escala maior no mais "avançado" (e privilegiado) país: os EUA. Certamente há algo de profundamente errado – e totalmente insustentável – na maneira pela qual o crescimento é perseguido sob o capitalismo.
Algumas formas, pela sua natureza cancerosa de crescimento, são proibitivas mesmo em termos de condições elementares de ecologia sustentável. Porque elas são manifestações flagrantes de "produção destrutiva". Ao mesmo tempo, tanta coisa é desperdiçada como "lixo rentável", enquanto incontáveis milhões, agora mesmo nos mais avançados países capitalisticamente, precisam suportar dificuldades extremas. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major estava reclamando que neste Inverno muitas pessoas no Reino Unido terão que escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando ainda era primeiro-ministro, ele disse com máxima autocomplacência: "O socialismo está morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Precisamos perguntar: o capitalismo funciona para quem e por quanto tempo?".
A escolha entre comer e se aquecer, que ele é agora forçado a reconhecer, não é exatamente a prova de quão bem o "capitalismo funciona". Na realidade, o único crescimento com significado é o que responde à necessidade humana. Crescimento destrutivo, incluindo o vasto complexo industrial militar – chame-o de "destruição criativa" – pode demonstrar apenas fracasso. O único crescimento historicamente sustentável para o futuro é aquele que fornece as mercadorias em resposta à necessidade humana e os recursos para aqueles que delas necessitam.
A crise ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar na Espanha, em Portugal, na França, na Inglaterra, na Grécia. Nos EUA, o Occupy Wall Street desapareceu. Qual deve ser o resultado desses movimentos? Há conexão entre eles? Os partidos de esquerda estão se beneficiando dessas ações ou não?
Em contraste com a idealização propagandística, o Estado do bem-estar social, na realidade, foi muito limitado a um punhado de países capitalistas. Mesmo lá foi construído sobre fundações frágeis. Não poderia ser nunca expandido ao restante do mundo, apesar da promoção acrítica das teorias do desenvolvimento da modernização, quase sempre estruturadas no quadro contraditório do sistema do capital. A verdadeira tendência de longo prazo apontava no sentido oposto ao do idealizado Estado do bem-estar.
A tendência objetivamente identificável foi caracterizada por mim já nos anos 1970 como a "equalização descendente da taxa de exploração diferencial". Isso inclui as diferenças marcantes nos níveis de ganhos por hora de trabalhadores para exatamente o mesmo trabalho na mesma corporação transnacional (por exemplo, nas linhas de montagem da Ford) na "metrópole" em relação aos países "periféricos".
Essa tendência continua a se aprofundar e ainda está longe da sua necessária amplitude. Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem se aprofundar no futuro. Eles surgem nesse arcabouço dessa tendência perversa de equalização de longo prazo. Compreensivelmente, os partidos que operam no enquadramento da política parlamentar não podem se beneficiar dos protestos. Isso porque eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos das consequências negativas decorrentes do Estado do bem-estar.
Lukács dizia que os sindicatos eram a organização social civil mais importante. Isso continua valendo?
A visão de Lukács sobre esse ponto era muito influenciada pelo seu camarada e amigo Jenö Lander, que foi um líder sindical antes de se tornar liderança do mesmo grupo partidário no qual Lukács também desempenhou um papel de liderança.
Lukács está certo sobre a contínua importância dos sindicatos, com um acréscimo importante. Não foi ressaltado suficientemente que a potencialidade dos sindicatos foi – e continua sendo – afetada de forma muito ruim pela divisão do movimento da classe trabalhadora organizada entre o chamado "braço industrial" (sindicatos) e o "braço político" (partidos) do trabalho.
A potencialidade positiva dos sindicatos não acontecerá até que essa divisão prejudicial, que produz danos para ambos, seja corrigida significativamente.
Qual sua avaliação sobre a chamada Primavera Árabe? Ela acabou? Há ligação entre os movimentos no mundo árabe e os da Europa? Alguns enxergam uma nova disputa na região. Isso faz sentido?
O impacto da Primavera Árabe tendeu a ser muito exagerado na época em que testemunhamos os primeiros dramáticos acontecimentos. E, depois, sem razão, foram minimizados quando as manifestações de massa no Norte da África arrefeceram.
Até agora, nenhum dos problemas fundamentais foi resolvido em nenhum país em questão. Assim, os protestos vão continuar no futuro, focando também em algumas das graves contradições econômicas (que resultaram em protestos por comida no passado, relutantemente reconhecidos até por proeminentes publicações do "establishment," como a Economist, de Londres), e não apenas na sua dimensão militar e política.
Os levantes vão continuar, ganhando na mídia o nome da estação ligado a eles. Também não pode ser esquecido que alguns países europeus tiveram importantes interesses coloniais no Norte da África e no Oriente Médio. E há tentativas de reavivá-los, o que é bem visível hoje. Ninguém deve imaginar que o imperialismo está confinado no passado.
O Brasil também está passando por uma fase de muitos protestos. Como o sr. avalia esse processo? Há conexão com o que ocorre no mundo?
É impossível encontrar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo sérios protestos sociais. Eles parecem estar focados em diferentes temas, criando a impressão superficial de não existe correlação entre eles. Mas isso é também um auto-engano. Muitas vezes, no passado, muitos desses protestos costumavam ser desconsiderados, tidos como movimentos de um tema específico, sem implicações na estabilidade geral da ordem social estabelecida. Nada pode ser mais distante da verdade.
É verdade que a grande variedade de protestos que testemunhamos hoje em diferentes partes do mundo não se enquadra nos canais e nos modos de ação da política tradicional. Mas seria tolice ter isso como prova de sua irrelevância. Ao contrário, eles apontam para razões muito mais profundas para os problemas e as contradições que se acumularam.
No momento, não é visível nenhuma estratégia de coalescência. Sua característica geral parece ser a de que estão testando os limites e procurando maneiras mais efetivas de articulação de suas preocupações. Estamos testemunhando um processo que ainda está em desdobramento e cujo significado deve ter grandes consequências no futuro.
Há quem enxergue a ação dos EUA nas manifestações pelo mundo, com o objetivo de desestabilizar governos. Isso faz algum sentido?
Isso é uma enorme e excessiva simplificação. Os EUA indubitavelmente estão na linha de frente de conflitos e conflagrações internacionais, por conta do seu impressionante poder dominante no hegemônico imperialismo global. Mas as causas são muito mais profundas do que o que possa ser resolvido por "desestabilização de governos".
Em alguns casos limitados isso pode acontecer, e, de fato, pode ser buscado com êxito pelas forças mais extremistas de organismos da administração norte-americana. Mas, há limite para tudo, até para o neoliberal mais radical e para o aventureirismo neoconservador.
Como a internet muda a luta política hoje?
Certamente a internet ajuda na comunicação e na coesão dos movimentos de protesto, como ficou evidenciado recentemente. Mas não deve ser esquecido que ela também dá os recursos para as forças do outro lado do confronto – dando assistência direta a vários Estados capitalistas.
De qualquer forma, para os dois lados a internet pode apenas fornecer ajuda subsidiária, não importando quão forte ela seja. Os problemas só podem ser resolvidos no próprio terreno em que surgiram. E isso diz respeito às determinações estruturais fundamentais de nossa ordem social.
Como o sr. analisa a relação entre capitalismo e democracia? São compatíveis?
Capitalismo e democracia não são incompatíveis, salvo em situações de crises extremas que trazem à tona os Hitlers e os Pinochets onde quer que tais crises eclodam – mesmo no Brasil no passado recente. A normalidade da produção capitalista é sustentada de forma melhor na ordem das regras formais democráticas de controle e regulação.
É por isso que regimes ditatoriais são insustentáveis no longo prazo e tendem a ser revertidos (mesmo a "miltonfreedmenização" do Chile de Pinochet) para modos políticos mais maleáveis de regulação formal democrática, dentro da moldura geral das trocas capitalistas.
Nos EUA, a direita radical colocou o país à beira do abismo por conta de uma tímida reforma no sistema de saúde. Isso trouxe riscos para os grandes negócios e as finanças. Como o sr. explica isso?
O sistema de saúde nos EUA é apenas uma parte da crise que testemunhamos. Fundamentalmente é inseparável da dívida astronômica de 17 milhões de milhões de dólares que já mencionei. Por enquanto, foi feita uma acomodação parcial entre democratas e republicanos, de forma que a nova data para o problema trilionário irresolvido ficou para o final de 2013, mas não deve trazer novamente um suspense internacional.
Mas podemos estar certos de que essa questão voltará com crescente severidade. 17 milhões de milhões de dólares significa tanto que não é possível encontrar um tapete de tamanho suficiente sob o qual se possa varrer e esconder essa quantia. Como costumeiramente é feito como forma de adiar a solução de problemas.
É possível dizer que o partido democrata foi mais para a direita e falhou em isolar a direita radical do partido republicano?
É difícil dizer qual dos dois partidos é mais à direita do que o outro. Mas ambos estão igualmente errados ao estarem tão à direita para serem capazes de enfrentar os graves problemas da sociedade norte-americana.
Como o sr. analisa a administração Obama e o estado da democracia nos EUA?
Obama prometeu muita coisa que nunca se materializou sob sua Presidência. Basta pensar em Guantánamo. Mas isso não é questão de um presidente em particular. Estruturas de poder não podem ser entendidas em termos personalizados.
Devemos lembrar a entrevista à televisão que o presidente democrata Jimmy Carter deu. Ele chorou, com lágrimas nos olhos, ao dizer que "o presidente não tem poder". De fato, ele conseguiu fazer mais desde que deixou a Presidência do que pode quando estava no comando. Até agora não vimos o presidente Obama chorar na televisão. Mas "há uma primeira vez para tudo", diz o ditado.
Os EUA espionam o mundo inteiro. Recentemente foi revelado um esquema de espionagem norte-americana no Brasil envolvendo interesses em petróleo e mineração. O que o Brasil deveria fazer para defender sua soberania?
Esse tema beira a insanidade. Espionam todos como potenciais inimigos, mesmo chefes de Estado de governos amigos. Há quem possa rir e achar que o problema não é tão sério. Mas precisamos lembrar que a defesa da soberania não pode estar confinada no domínio das leis e da política internacionais.
A legislação internacional é pateticamente fraca a esse respeito, sem mencionar as instituições que tratam globalmente disso. Vale lembrar o título de um livro de um proeminente advogado liberal, Philippe Sands. É "Lawless World: America and the Making and Breaking of Global Rules".
Essas questões são decididas pelas relações reais de poder. E, é claro, as forças preponderantes do capital global ficam com a parte do leão nesse processo de tomada de decisão. A soberania não pode ser protegida sem se atentar para esse lado crítico do problema, inseparável do poder preponderante das corporações gigantes do capital transnacional.
O poder dos EUA está em ascensão ou em queda?
Seria mais apropriado dizer que ele está estacionado, mas ainda é o mais dominante. As condições que explicam essa dominância estão presentes e são bem visíveis: vão do complexo industrial-militar, ao Banco Mundial, ao fato de o dólar ser a moeda de troca mundial. Nenhum outro país poderia sonhar em impor ao mundo uma dívida de 17 milhões de milhões de dólares. Mas uma dominância que repousa sobre esse tipo de fundações só pode ser instável.
Qual é a sua visão da China? Lá a pobreza diminuiu. Há socialismo?
As realizações da China no campo da produção incluindo o declínio da pobreza que você menciona têm sido monumentais. Mas há várias grandes perguntas para o futuro. Acima de tudo: por quanto tempo poderão ser mantidas as realizações na área produtiva sem que elas causem danos irreparáveis nos recursos gigantescos no domínio da ecologia?
Mais ainda: por quanto tempo poderão ser aceitas as impressionantes desigualdades entre os níveis mínimos de ganhos da população trabalhadora e a riqueza dos altamente privilegiados? O socialismo é inconcebível sem uma substantiva igualdade – também na China.
No passado, as disputas no interior do capitalismo provocaram guerras mundiais. Essa hipótese está no horizonte?
A opção pela Guerra foi usada no passado como parte da tentativa de resolver problemas entre partes em conflito sob as regras do capital. Foram duas guerras mundiais no século 20. Com as armas de destruição em massa, ficou impossível prever a compatibilidade dessa solução com as condições elementares da racionalidade. Mas há representantes da direita radical que não hesitariam em jogar com fogo e até abertamente advogam a plena legitimidade de jogar com fogo.
Muitos deles estão presentes em elevados postos da hierarquia política. Assim, o presidente [Bill] Clinton, por exemplo, declarou que "há apenas uma nação necessária, os EUA". Na mesma época, Robert Cooper (guru do primeiro-ministro britânico Tony Blair e conselheiro internacional de Xavier Solana) cantava louvores para o agressivo imperialismo liberal em seus escritos.
Da mesma forma, Richard Haass, diretor de planejamento político no departamento de Estado na gestão George W.Bush, insiste na necessidade de uma estratégia imperialista mais agressiva, escrevendo que a defensiva, não o imperialismo agressivo, é o maior perigo do interesse em reafirmar a hegemonia global dos EUA. Esta precisa ser defendida por quaisquer meios, mesmo com a guerra explícita.
A racionalidade é, obviamente, a grande dificuldade para implantar essas estratégias. Mas ninguém pode dizer que a possibilidade de até mesmo uma conflagração mundial possa agora ser excluída do horizonte histórico.
É possível dizer que a influência dos EUA na América Latina declinou na última década?
Sim. Falarei dos países relevantes nesse aspecto em seguida. E outros poderão se agregar a eles no futuro.
Como o sr. analisa as experiências de países como Venezuela (que fala em socialismo do século 21), Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina?
Eles trilham por uma estrada muito difícil, na qual, indubitavelmente, muitos obstáculos serão erguidos no futuro pelo poder imperial dominante. Os EUA declararam abertamente que a América Latina era o seu quintal, reivindicando legitimidade para a sua dominação na região.
Como o sr. avalia os dez anos de PT no governo do Brasil?
Visitei o escritório do futuro presidente Lula em 1983. Tirei então uma foto do escritório onde se podia ler uma palavra iluminada: "Tiradentes". Eu fiquei pensando e continuo pensando hoje quanto tempo mais levará para que seja possível dizer que o escritório nacional de "Tiradentes" teve êxito em extrair os dentes infeccionados que causam tanta dor, mesmo num país com tantos recursos, em todos os sentidos, como o Brasil.
Qual é a sua visão sobre a relevância das ideias socialistas hoje?
Mencionei anteriormente que nossos problemas só podem encontrar soluções sustentáveis na sua época. Outras formas de enfrentá-los podem ser revertidas, como ocorreu no passado.
As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas imediatos de onde elas devem partir sejam muito dolorosos.
Em outras palavras, elas requerem não apenas os serviços urgentes de "Tiradentes", mas também prevenção para as doloridas infecções no longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que jamais foram.
Que países ou partidos representam o socialismo hoje?
Apenas alguns partidos muito pequenos proclamam sua fidelidade às ideias socialistas. E não há país que possa chamar a si mesmo como socialista.
No passado o sr. usou a expressão socialismo Mickey mouse para tratar de partidos que apenas brincavam com as ideias socialistas. Isso continua a ocorrer?
Não exatamente. O socialismo Mickey Mouse ficou mais fraco. O Partido Comunista Italiano que foi o partido de [Antonio] Gramsci e da Terceira Internacional primeiro se autoconverteu no que se chamam de democratas da esquerda.
Depois achou até a palavra esquerda muito comprometedora. Então se rebatizaram de partido dos democratas. Não há mais Mickey Mouse. É mais como um Popeye que perdeu o seu espinafre.
Quais são suas expectativas sobre o socialismo ou o comunismo no futuro? É um objetivo inatingível? E sobre o risco de barbárie? Existe?
Escrevi num livro também publicado no Brasil [ O século XXI: Socialismo ou barbárie ] que se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo – "socialismo ou barbárie" – acrescentaria: "Barbárie se tivermos sorte". Porque a exterminação da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver nossos grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo vai permanecer no nosso horizonte.
Onde deve estar um militante marxista hoje?
Contribuindo em tudo que ele ou ela possam fazer para buscar solução duradoura para esses grandes problemas.
Qual o seu plano para o futuro?
Continuar trabalhando em projetos de longo prazo que dizem respeito a todos nós.
17/Novembro/2013
[*] Repórter especial da Folha de S. Paulo.