Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
domingo, 28 de março de 2010
De Eisenach a Gotha
Sergio Granja - Portal do PSOL |
August Bebel (1840-1913) era torneiro mecânico. Teve
destacada liderança no movimento operário alemão e internacional. Foi
muito próximo de Marx e Engels. Participou da I Internacional. Em
parceria com Liebknecht1, fundou o Partido Operário
Social-democrata da Alemanha, no congresso de Eisenach, em 1869. Esse
partido também ficou conhecido como o dos "eisenachianos". Foi eleito
várias vezes deputado ao Reichstag. Combateu o "revisionismo" nos anos
1890 e começo do século XX, mas nos últimos anos de sua vida política
tendeu para posições mais centristas.
Até o congresso de Gotha, em maio de 1875, que unificou
as duas principais correntes do movimento operário e socialista
alemão, os eisenachianos disputavam a hegemonia do movimento com os
lassallianos2, que constituiam a corrente majoritária3.
Marx e Engels viram com reservas esse processo e criticaram duramente
o projeto de programa apresentado para o congresso de unificação.
Dois anos antes do congresso de Gotha, em carta a Bebel,
Engels expõe critérios que demonstram suas restrições ao encaminhamento
dado à questão.
"Quando alguém se encontra,
como vocês, na posição, por assim dizer, de concorrente face a face à
Associação Geral dos Trabalhadores alemães, se é induzido muito
facilmente a levar em conta essa concorrência e a se acostumar a pensar
antes de tudo no seu rival. Mas, no momento, a Associação Geral dos
Trabalhadores alemães e o Partido Operário Social-democrata, juntos, não
constituem mais do que uma minoria muito pequena da classe operária
alemã. Para nós - e essa opinião é confirmada por uma longa prática - a
boa maneira de fazer propaganda não consiste em tirar do adversário
algumas pessoas ou alguns de seus membros, mas de agir sobre as grandes
massas ainda indiferentes. Uma única força nova que saia do nada vale
mais do que dez trânsfugas lassallianos, que trazem sempre para o
partido alguma coisa de suas concepções errôneas. Seria ainda razoável
se se pudesse ter as massas sem os seus chefes locais; mas
sempre é preciso aceitar todo um bando desses chefes, que estão marcados
por suas declarações públicas passadas, quando não por suas opiniões
professadas até aí, e que agora devem provar que não renegaram seus
princípios, mas que é sobretudo o Partido Operário Social-democrata que
prega o verdadeiro lassallianismo. Eis que o pior chega a
Eisenach e isso não será fácil de evitar nesta época; mas esses
elementos certamente já fizeram mal ao partido e eu não sei mais se o
partido sem eles seria atualmente tão forte. Se esses elementos
recebessem um reforço, eu certamente temeria o pior."4
Em seguida, Engels defende abertamente que, às vezes, é
preferível o isolamento ao êxito ocasional.
"Naturalmente, cada direção
do partido quer poder registrar sucessos, o que está bem. Mas há
momentos em que é preciso ter coragem para sacrificar um sucesso momentâneo
a coisas mais importantes. Sobretudo num partido como o nosso, cujo
sucesso final é tão absolutamente certo e que se desenvolveu, nos nossos
dias e sob os nossos olhos, de uma maneira tão formidável, não é
preciso obter sempre um sucesso momentâneo."5
E, sobre a questão da unidade, Engels diz o seguinte:
"Em todo caso, eu creio que
os elementos capazes dentre os lassallianos virão por si mesmos para
vocês, e que, por conseguinte, não seria sábio colher os frutos antes
deles amadurecerem, como querem fazer os partidários da unidade.
"O velho Hegel já dizia: 'Um
partido se afirma como um partido vitorioso, dividindo-se e podendo
suportar a divisão.' O movimento do proletariado percorre
necessariamente graus de desenvolvimento diferentes: a cada etapa, uma
parte das pessoas se detém e não continua mais a rota. Apenas isso
explica porque a 'solidariedade do proletariado' se realiza em toda a
parte, em grupamentos de partidos diferentes que se dão um combate de
vida ou morte, como as seitas cristãs no Império romano, durante as
piores perseguições."6
Nesta carta, há ainda uma passagem que vale à pena
registrar. É sobre a natureza do fanatismo.
"Você não deve esquecer que,
se o Neuer Social-Demokrat tem mais assinantes do que o Volksstaat,
é porque qualquer seita é fanática e em razão desse fanatismo,
sobretudo quando a seita é nova (como, por exemplo, a Associação Geral
dos Trabalhadores alemães no Schleswig-Holstein), ela obtém sucessos
imediatos muito maiores do que o partido que representa simplesmente o
movimento real, sem caprichos sectários. Em revanche, o fanatismo é de
curta duração."7
Às vésperas do congresso de Gotha, em nova carta a
Bebel, Engels reclama porque Marx e ele não foram informados sobre as
negociações com os lassallianos e não poupa críticas ao projeto de
programa de unficação. Ele destaca cinco pontos do projeto. O primeiro
deles se refere à frase lassalliana de que todas as outras classes
constituiriam uma massa reacionária em face da classe operária. Engels
não concorda com isso.
"Em primeiro lugar, adota-se
a frase lassalliana pomposa mas historicamente falsa, como se, em
relação à classe operária, todas as outras classes fossem uma massa
reacionária. Esta tese não é justa a não ser em casos excepcionais, por
exemplo, durante a revolução proletária que foi a Comuna, ou bem num
país onde não somente a burguesia formou o Estado e a sociedade à sua
imagem, mas que, após ela, a pequena burguesia democrática haja levado
essa transformação às suas últimas consequências."8
O segundo ponto destacado diz respeito ao
internacionalismo.
"Em segundo lugar, o
princípio do internacionalismo do movimento operário é, de fato,
completamente rejeitado pelo presente, e rejeitado por aqueles que tão
brilhantemente o aplicaram durante cinco anos, nas circunstâncias mais
difíceis. Se os operários alemães estão na cabeça do movimento europeu,
eles devem isso sobretudo a seu comportamento verdadeiramente
internacionalista durante a guerra; nenhum outro proletariado pode agir
tão bem. E eis que se lhes propõe renegar esse princípio no momento em
que, por toda a parte no estrangeiro, os operários começam a sublinhá-lo
tanto mais quanto os governos se esforçam por reprimir toda tentativa
de realizá-lo no seio de qualquer organização!"9
O terceiro ponto versa sobre a suposta "lei de ferro dos
salários".
"Em terceiro lugar, os
nossos deixaram os lassallianos impor a 'lei de ferro dos salários',
fundada sobre uma ideia econômica absolutamente ultrapassada, segunda a
qual o operário receberia em média o minimum de salário,
precisamente porque , segundo a teoria malthusiana da população, sempre
haverá excesso de operários (era a argumentação de Lassalle). Ora, Marx
deixou bem demonstrado em seu Capital que as leis que regem os
salários são muito complexas, que tanto umas como outras prevalecem,
segundo as circunstâncias, que elas portanto não são de ferro mas, ao
contrário, muito elásticas, e que essa questão, geralmente, não se pode
resolver com duas ou três palavras, como imaginava Lassalle."10
O quarto ponto critica a ajuda do Estado como única
reivindicação social do programa.
"Em quarto lugar, o programa
coloca como única reivindicação social a ajuda do Estado lassalliano
sob a sua forma mais crua, sob aquela que Lassalle roubou de Buchez.
Isso, depois que a nulidade de Bracke ficou tão bem revelada, depois
que todos os oradores do nosso Partido, ou quase todos, foram obrigados,
na luta contra os lassallianos, a intervir contra essa "ajuda do
Estado"! Não se poderia infligir pior humilhação a nosso Partido. O
internacionalismo rebaixado no nivel de Amand Gögg, o socialismo ao do
republicano burguês Buchez, que colocara essa exigência contra os
socialistas, para combatê-los!"11
O quinto ponto diz respeito a um silêncio: não se fala
sobre a organização sindical dos trabalhadores.
"Em quinto lugar, nada é
dito sobre a organização da classe operária enquanto classe, graças aos
sindicatos. Ora, é um ponto muito importante, porque é a verdadeira
organização de classe do proletariado, no seio da qual ele sustenta sua
luta cotidiana contra o capital, que é uma escola para ele e que a mais
feroz reação (como a que reina atualmente em Paris) não saberia mais
esmagar. Haja vista a importância que essa organização toma na
Alemanha, seria certamente bom, segundo entendemos, de mencioná-la no
programa e de lhe reservar um certo papel na organização do Partido."12
Engels acrescenta ainda uma crítica relativa à concepção
sobre o Estado no programa.
"O Estado popular livre
tornou-se um Estado livre. De acordo com o sentido gramatical desses
termos, um Estado livre é um Estado que está livre em relação a seus
cidadãos, quer dizer, um Estado de governo despótico. Convém abandonar
essa bobagem sobre o Estado, sobretudo após a Comuna, que não era mais
um Estado no sentido próprio do termo. [...] Também proporíamos de pôr
em toda a parte, no lugar da palavra 'Estado', a palavra 'Gemeinwesen'
[comunidade], excelente velha palavra alemã, correspondendo muito bem à
palavra francesa 'commune'."13
Engels concede que um programa vale menos do que a
prática política de um partido, mas faz uma advertência.
"Geralmente, o programa
oficial de um partido é menos importante do que o que o partido faz.
Mas um novo programa é sempre uma bandeira desfraldada
publicamente, de acordo com a qual o mundo julga o partido. Jamais deve
ser um passo atrás como esse é em relação ao de Eisenach."14
Quando, em maio de 1875, se dá a fusão entre
eisenachianos e lassallianos no congresso de Gotha, Marx está doente e
sobrecarregado de trabalho com a edição francesa de O Capital.
Em carta a Bracke15, comunica sua desaprovação aos
dirigentes eisenachianos.
"O fato é que após o
congresso de coalizão, Engels e eu publicaremos uma curta declaração
para dizer que não participamos de maneira nenhuma desse programa de
princípios e não temos nada a fazer com ele.
"É indispensável, pois se
espalha no estrangeiro uma versão absolutamente falsa mas cuidadosamente
elaborada pelos inimigos do Partido, segundo a qual nós dirigimos
secretamente daqui o movimento do partido dito de Eisenach. Em seu livro
aparecido ultimamente em russo [O Estado e o anarquismo],
Bakounine me atribui, por exemplo, não apenas todos os programas, etc.,
do partido em questão, mas também o menor ato de Liebknecht, desde que
ele colabora com o Partido Popular.
"À parte disso, meu dever me
interdita de reconhecer, ainda que fosse por um silêncio diplomático,
um programa que, tenho a convicção, não vale absolutamente nada e
desmoraliza o Partido."16
Não obstante, Marx reconhece que um passo adiante do
movimento real vale mais do que uma dúzia de programas.
"Cada passo de um movimento
verdadeiro é mais importante do que uma dozena de programas. É por isso
que, se era impossível - em razão das circunstâncias - de ir além do
programa de Eisenach, dever-se-ia simplesmente concluir um acordo para
combater o inimigo comum. Entanto que, estabelecendo programas de
princípios (em vez de remeter a coisa para o momento em que ela teria
sido preparada por uma cooperação mais longa), coloca-se sob a vista de
todo o mundo os elos segundo os quais julga-se o nível do movimento do
Partido. Os chefes dos lassallianos vieram até nós forçados pelas
circunstâncias. Se lhes houvéssemos declarado desde o início que não
consentiríamos nenhum comércio de princípios, eles seriam obrigados a se
contentar com um programa de ação ou com um plano de organização para
agir em comum. Em vez disso, se lhes permite apresentar-se munidos de
mandatos e se reconhece a validade deles, uma maneira de se colocar à
mercê daqueles que precisam de socorro. O cúmulo é que eles reúnam um
congresso ainda antes do congresso de compromisso, enquanto que
o partido propriamente dito só reúna o seu congresso post-festum.
Manifestamente, se quis escamotear qualquer crítica e não dar ao
partido propriamente dito o tempo para refletir. É sabido que o simples
fato da coalizão já satisfaz os operários; mas se enganam aqueles que
pensam que não se pagou muito caro por esse sucesso instantâneo.
"De resto, o programa não
vale nada, mesmo omitindo-se que ele santifica os artigos de fé
lassallianos."17
Inicialmente, fora dito que o congresso de unificação de
Gotha seria de 23 a 25 de maio, que o dos lassallianos o precederia e
que o dos eisenachianos seria de 25 a 27 do mesmo mês. Por isso, Marx
desabafara: "O cúmulo é que eles reúnam um congresso ainda antes do
congresso de compromisso, enquanto que o partido propriamente dito
só reúna seu congresso post-festum." Mas, na realidade, o
congresso de Gotha foi de 22 a 27 de maio de 1875, e o congresso dos
eisenachianos e o dos lassallianos ocorreram simultaneamente ao da
unificação.
Em sua carta de 5 de maio de 1875 a Bracke, Marx
encaminha em anexo as suas Glosas marginais ao programa do Partido
operário alemão, a famosa Critica do programa de Gotha, na
qual ele analisa o projeto de programa do futuro Partido Operário
Socialista da Alemanha, publicado em 7 de março de 1875 nos jornais Volksstaat
e Neuer Social-Demokrat. Trata-se de um clássico do marxismo.
Notas:
1 Wilhelm Liebknecht (1826-1900) foi um
importante dirigente do movimento operário alemão e internacional.
Participou da revolução de 1848-1849. Foi membro da Liga dos
Comunistas e dirigente da social democracia alemã. Era muito próximo
de Marx e Engels, mas omitiu deles as tratativas com os lassallianos
para o congresso de unificação.
2 Ferdinand Lassalle (1825-1864) era um
advogado alemão que fundou em 1863 a Associação Geral dos Trabalhadores
alemães, tornando-se uma importante liderança do movimento operário e
socialista alemão. Marx e Engels submeteram a uma crítica severa as
ideias teóricas e políticas dos chamados lassallianos.
3 A Associação Geral dos Trabalhadores
alemães foi organizada no congresso das sociedades operárias de 23 de
maio de 1863, em Leipzig. Desde sua fundação, sempre esteve sobre forte
influência de Lassalle. A Associação limitava seus objetivos à luta
pelo sufrágio universal, à atividade parlamentar e aos movimentos
pacíficos e legais. Em 1875, no congresso de Gotha, a associação Geral
dos Trabalhadores, de Lasalle, se unficou com o Partido Operário
Social-democrata, de Bebel e Liebknecht, formando o Partido Operário
Socialista da Alemanha.
4 Carta de Engels a A. Bebel, 28 de junho de
1873 (Correspondence, p. 290-291)
5 Carta de Engels a A. Bebel, 28 de junho de
1873 (Correspondence, p. 291)
6 Carta de Engels a A. Bebel, 28 de junho de
1873 (Correspondence, p. 292-293)
6 Carta de Engels a A. Bebel, 28 de junho de
1873 (Correspondence, p. 293)
7 Carta de Engels a A. Bebel, 28 de junho de
1873 (Correspondence, p. 293)
8 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 298)
9 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 298)
10 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 299)
11 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 299-300)
12 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 300)
13 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 300-301)
14 Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março
de 1875 (Correspondance, p. 302)
15 Wilhelm Bracke (1842-1880) foi um dos
fundadores e dirigentes do Partido Operário Social-democrata alemão
(eisenachiano). Muito próximo de marx e Engels, combateu os
lassallienos e, até certo ponto, os oportunistas no seio do partido
eisenachiano
16 Carta de Marx a W.Bracke, 5 de maio de
1875 (Correspondence, p. 303-304)
17 Carta de Marx a W. Bracke, 5 de maio de
1875 (Correspondence, p. 304)
Bibliografia:
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Correspondance (1844-1895),
Moscou: Editions du Progrès, 1971.
* Citações traduzidas livremente do francês.
Sergio Granja é pesquisador da Fundação
Lauro Campos
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