Em entrevista, Davis analisa o período em que foi
presa e julgada nos Estados Unidos em um processo eminentemente
político que teve grande repercussão internacional
Luciano Monteagudo,
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Angela Davis, quando militava no Panteras Negras - Foto: Reprodução |
40
anos depois das graves acusações que a levaram a ser julgada e presa
nos Estados Unidos, em processo eminentemente político que teve grande
repercussão internacional, Angela Davis analisa nesta entrevista aquela
etapa difícil de sua vida. Ao referir-se à atual situação dos negros nos
EUA, Angela diz que “as coisas são piores, hoje, com um negro na Casa
Branca”.
“Acho que meus princípios não mudaram em
todos esses anos. Nem meu compromisso político.” É o que diz Angela
Davis, uma das mais famosas ativistas políticas dos anos 1960 e 1970,
figura icônica, não só pelo discurso fortemente revolucionário e pela
destacada militância nos “Panteras Negras”, mas também pelo penteado
‘afro’ que fez moda em todo o planeta entre as mulheres negras e
brancas.
Hoje, com 68 anos, intelectual e
professora universitária, formada na Universidade de Frankfurt onde
estudou sob orientação de Herbert Marcuse, Angela Davis participou do
Festival Internacional de Cinema de Toronto [Toronto International Film
Festival], no dia 15 de setembro, para apoiar o lançamento do
documentário Free Angela & All Political Prisoners [Liberdade para Angela & Todos os Prisioneiros Políticos].
Dirigida
por Shola Lynch, o filme narra os padecimentos de Davis há 42 anos,
quando foi envolvida pelo FBI no sequestro e morte do juiz Harold Haley,
do condado de Marin, na California. Angela acabou por ser absolvida,
apesar da pressão que fez contra ela o governador da California, Ronald
Reagan, o qual, em 1969, conseguira expulsá-la da Universidade da
California (UCLA) pela declarada militância de Davis no Partido
Comunista.
Foragida da Justiça, na qual
evidentemente não confiava, Angela Davis chegou a integrar, aos 24 anos,
a lista dos 10 foragidos mais procurados do FBI, até afinal ser
localizada e presa, em outubro de 1970. Cresceu então uma campanha
internacional por sua libertação, que contou com
a solidariedade até de John Lennon e Yoko Ono, que compuseram a canção
“Angela” para seu LP Some Time in New York City (1972) , e dos Rolling Stones, que gravaram um single, “Sweet Black Angel”, incluído em seguida no álbum Exile on Main Street (1972).
“Nunca
procurei esse grau de exposição pública e foi muito difícil de aceitar,
naquela época” – lembra Miss Davis em entrevista exclusiva ao jornal Página/12,
numa suíte do Soho Metrotel de Toronto. “Minha aproximação original foi
estritamente política, e nem nos meus sonhos mais loucos pensei que
seria empurrada nessa direção. Mas, ao mesmo tempo, fui consciente de
que era algo com que teria de aprender a conviver. Portanto, decidi
tratar de usar aquilo tudo, nem tanto em meu nome, mas em nome de tanta
gente que não tinha voz naquele momento.”
A senhora refere-se a seus companheiros de militância nos Panteras Negras?
Exatamente.
Porque a campanha nacional pela minha libertação começou sob a bandeira
de “Libertem Angela Davis”, mas decidi que teria de ser “Libertem
Angela Davis e todos os presos políticos” – a frase que Shola Lynch
escolheu para título do seu documentário.
No
filme, a senhora diz que a tripla pena de morte que os promotores
pediram, no seu caso, não se dirigia pessoalmente à senhora, mas a toda a
construção que a senhora encarnava. Pode falar um pouco mais sobre
isso?
Logo percebi que todo aquela fúria
contra mim excedia minha pessoa e a minha situação pessoal. Em primeiro
lugar, porque não conseguiriam me executar três vezes. Percebi também
do que se tratava ali. Estavam decididos a matar um inimigo imaginário
que estava sendo construído. E eu era a encarnação perfeita do inimigo
que eles começavam a construir: negra, mulher e comunista. Quando o FBI
começou a me perseguir, aproveitaram prender centenas de mulheres negras
e jovens como eu. Aproveitaram a situação para tentar espalhar o medo
em toda a comunidade negra nos EUA.
Desde então, o que mudou?
Acho
que muitas coisas mudaram. E penso que mudaram, em grande medida, por
causa da luta que fizemos. Quando cheguei à universidade, eram
raríssimas as negras em cursos superiores nos EUA. Hoje, são milhões,
embora ainda haja enorme desproporção entre negros e brancos nos cursos
superiores. Hoje o que me angustia muito é que, naquele tempo, quando
lutávamos pela libertação de todos os presos políticos em especial e
contra a instituição carceral em geral, surpreendeu-nos muito a
quantidade de gente presa nos EUA. Mas hoje, esse número é muitas vezes
maior. Hoje, em meu país, há 2,5 milhões de pessoas encarceradas. Um, de
cada 37 adultos vive no sistema penitenciário. É porcentagem altíssima.
Os EUA somos o país de maior população encarcerada no mundo.
E a que a senhora atribui isso?
Há
a miséria, sem dúvida. A maioria dos homens negros jovens nos EUA estão
hoje desempregados. Há aí o problema político, mas há também o racismo.
É verdade que os livros escolares já não manifestam abertamente o
racismo, como antes, e que já não há segregação racial oficial, mas em
muitos sentidos a situação é hoje pior que antes, há meio século.
Angela Davis, atualmente - Foto: Reprodução |
Apesar do presidente afroamericano, Barack Obama?
Sim,
é triste dizer, mas as coisas são piores com um presidente
afroamericano na Casa Branca. Essa é a ironia. Porque há meio século era
impensável que um negro chegasse, algum dia à presidência dos EUA.
Hoje, é possível. Mas também é preciso dizer que ninguém, na Casa
Branca, hoje, está preocupado com o fato de que há um milhão de negros
nas prisões norte-americanas. E isso tem relação direta com o
desmantelamento completo do sistema de bem-estar social e com a
desindustrialização pela qual os EUA estão passando, e a consequente
perda de postos de trabalho. Antes, a população negra tinha onde
trabalhar, na indústria siderúrgica, na indústria automobilística, em
tantas outras indústrias que já deixaram os EUA e mudaram-se para outros
países onde a mão de obra é muito mais barata. Eu nasci e fui criada em
Birmingham, Alabama, e ali a indústria siderúrgica era era a principal
fonte de trabalho. Ainda é, mas com muito menos postos de trabalho que
antes. E se se soma a isso a falta de assistência social, a falta de
educação, a falta de sistema eficiente de assistência pública à saúde,
as prisões viram uma espécie de solução ao avesso, para todos os
problemas sociais que não recebem qualquer atenção política.
Já que falamos de prisões... Por que, na sua avaliação, Obama não cumpriu a promessa de fechar a prisão de Guantánamo?
Deveria
tê-la fechado no primeiro momento. Deveria ter sido seu primeiro ato
oficial. Em vários sentidos, a chamada “guerra ao terrorismo” atropelou
Obama. Mas também é verdade que a principal razão pela qual Obama não
fechou Guantánamo foi que não saímos às ruas para exigir que fechasse.
Em várias instâncias, os eleitores que elegeram Obama não se mantiveram
mobilizados e em alerta. Teria sido preciso criar um movimento para
fechar Guantánamo, um movimento que pressionasse, até Guantánamo ser
fechada. Também para criar melhor sistema de saúde pública, de educação
etc. São coisas que ainda temos de fazer.
Para as próximas eleições?
Claro.
Já. Imediatamente. Temos de sair e ocupar os espaços, construir para
nós uma dimensão do que é necessário e possível fazer.