segunda-feira, 15 de outubro de 2012

"Pode deixar que eu cuido disso": a infantilização do voto

A “despolitização” induz a maioria das pessoas a perceber as eleições como o único meio de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e no rádio. Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador, transforma tudo em entretenimento
por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida no LE MONDE BRASIL

Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.1
Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia,2 publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.
Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.
Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?
Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.
Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).
Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.
É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem.3 Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.
Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de dominação e exploração mais predatórios do planeta.
Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.
Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.
Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.
Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.”4 Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.
Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.
Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta.5 Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os povos.6
Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação popular na política.
Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
é professor do Departamento de Política da PUC-SP


Ilustração: Daniel Kondo


 
1  E. Hobsbawm, A era dos impérios, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.130.
2  J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.
3  Karl Marx, A questão judaica,Boitempo, São Paulo, 2010.
4  A sequência aparece no documentário Entreatos,de João Moreira Salles.
5  Samuel Huntington,A terceira onda: a democratização no final do século XX, Ática, São Paulo, 1994.
6  Slavoj Žižek, “Democracy versus the people. A new account of Haiti’s recent history shows how the genuinely radical politics of Lavalas and its”, New Statesman, 14 ago. 2008.

Mídia: "Lula e Dilma deixam a desejar"

 



Por Nilton Viana, no jornal Brasil de Fato:

A secretária nacional de Comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Rosane Bertotti, acredita que a comunicação é um direito humano, e que, portanto, cabe ao Estado adotar políticas públicas para assegurar esse direito. Segundo ela, os grandes conglomerados de mídia têm posição cativa ao lado do capital, atuando como correia de transmissão da ideologia mais reacionária, de privatização, desmonte do Estado, arrocho salarial, retirada de direitos sociais e trabalhistas.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Rosane Bertotti fala sobre a importância da mobilização “para garantir a diversidade e a pluralidade de vozes. “Se nós olharmos o tipo de enfrentamento que está sendo feito em alguns países ao nosso redor, infelizmente, é forçoso reconhecer que tanto o governo Lula quanto Dilma deixaram e deixam muito a desejar no quesito comunicacional.

Você participou, de 19 a 22 de setembro, em Quito, Equador, do Encontro Latino- Americano de Comunicação Popular e Bem Viver. Quais são avanços que na questão da comunicação que se podem destacar nos países da região?

Creio que o principal avanço é o da consciência sobre o papel da batalha de ideias e a crescente disposição política dos governos do campo democrático e popular, particularmente os da Argentina e do Equador, de fazer uma nova lei que aposte na democratização da comunicação para garantir a efetiva liberdade de expressão, sequestrada pela velha mídia. São passos muito significativos, como a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal, que não teriam sido possíveis sem a atuação de entidades como a Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica (Aler), que promoveu o encontro em Quito. Somando energia e experiência em torno de pontos comuns, com espírito amplo, de verdadeiras frentes, essas organizações populares conseguiram mobilizar a sociedade e respaldar ações mais ousadas de governos que não se submeteram às calúnias e chantagens dos grandes conglomerados.

No caso do Brasil, qual o embate a ser travado hoje pelos movimentos sociais nessa questão da comunicação?

Temos a convicção de que é preciso afirmar a necessidade de um regramento para o setor, enfrentando a disputa política e ideológica com a mídia comercial, que vê a comunicação como um negócio qualquer, que deve atender unicamente os donos do veículo e seus anunciantes. O mote da campanha do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) é “para expressar a liberdade, uma nova lei para um novo tempo”. Acreditamos que é necessário popularizar o tema, mostrando à população a necessidade de regulamentar os dispositivos da Constituição Cidadã, fundamentalmente o que combate a formação de monopólios e oligopólios, e o que garante a complementaridade dos sistemas. Sem isso não haverá sociedade democrática e uns poucos proprietários de concessões públicas continuarão ditando o que o povo deve ouvir, ver e ler. Para nós a comunicação é um direito humano e, portanto, cabe ao Estado adotar políticas públicas que o assegurem. Senão vira letra morta.

Na sua opinião, houve avanços, nos quase 10 anos de Lula e Dilma, em relação à democratização da comunicação?

A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada no final do governo Lula, contribuiu para que o tema entrasse efetivamente na pauta, estimulando a formação dos Conselhos Estaduais de Comunicação, como conquistamos recentemente na Bahia e no Rio Grande do Sul. Infelizmente vários pontos apontados pela Confecom para a efetivação de mecanismos de controle social, participação popular e auditoria nos meios privados não andam devido a uma defensiva inexplicável do governo. Se nós olharmos o tipo de enfrentamento que está sendo feito em alguns países ao nosso redor, infelizmente, é forçoso reconhecer que tanto o governo Lula quanto Dilma deixaram e deixam muito a desejar no quesito comunicacional.

As verbas publicitárias ainda são investidas majoritariamente na mídia comercial. Qual é a avaliação do FNDC sobre a insistência nessa política?

É necessário mudar os critérios publicitários para que haja uma desconcentração que tem se demonstrado profundamente antidemocrática, ecoando a voz dos grandes conglomerados, os mesmos que atentam todos os dias contra a pluralidade e a diversidade. É preciso garantir principalidade dos recursos para a mídia pública e comunitária, para os blogueiros, para os jornais alternativos. Afinal, a mídia privada já conta com recursos abundantes das transnacionais, do sistema financeiro e das grandes empresas para defender seus interesses, para divulgar a pauta do capital. O governo precisa priorizar a sociedade, necessita democratizar a publicidade.

Qual é a avaliação do movimento pela democratização das comunicações em relação à Confecom, realizada em 2009; o que avançou de lá para cá?

A Confecom foi fruto da sociedade civil que garantiu a realização da conferência inclusive em condições adversas. Foi muito importante enquanto processo de mobilização, porém as propostas não saíram do papel. O então ministro Franklin Martins chegou a ensaiar um projeto, mas que ficou em alguma gaveta para o Paulo Bernardo, que resolveu deixar por lá. O que temos é a síntese dos 20 pontos dos movimento sociais. Na nossa opinião, respaldado pela Confecom, o governo deveria adotar medidas como a regulamentação dos artigos da Constituição Federal (220 a 224) que, entre outros avanços, impedem a propriedade cruzada dos meios e proíbem os monopólios; a garantia da inclusão digital com a aplicação dos recursos do Fundo para Universalização do Serviço de Telefonia (Fust) em programas de extensão da internet banda larga para todo o país, priorizando as regiões afastadas dos grandes centros e a população de baixa renda, a redução de 30% para 10% na participação do capital estrangeiro nas comunicações, a descriminalização das rádios comunitárias.

Como a CUT avalia o papel da mídia brasileira?

Os grandes conglomerados de mídia têm posição cativa ao lado do capital, atuando como correia de transmissão da ideologia mais reacionária, de privatização, desmonte do Estado, arrocho salarial, retirada de direitos sociais e trabalhistas. São emissoras de rádio e televisão, jornais, revistas e portais de internet que atuam de forma coordenada para distorcer os fatos, criminalizar e invisibilizar os movimentos populares, a luta dos trabalhadores, das mulheres, negros e indígenas. É uma conduta irresponsável e ditatorial.

O STF está julgando o chamado “mensalão”. Como você avalia a cobertura da mídia brasileira nesse caso?

Infelizmente os que se arvoram grandes defensores da liberdade de imprensa são hoje instrumentos que em vez de informar, divulgam as suas opiniões. São meios de manipulação e desinformação em massa. O fato é que a mídia não só divulgou interpretações dos fatos, mas já julgou e condenou. Onde está a imparcialidade tão propalada? Cadê a liberdade de expressão, o respeito à verdade dos fatos ou o direito ao contraditório?

A esquerda brasileira, ao seu ver, está avançando nessa luta pela democratização da comunicação?

Creio que o amplo espectro da esquerda tem avançado no sentido de ter meios próprios, de construir e articular redes, como os blogueiros progressistas. A articulação dos vários movimentos com a luta do FNDC tem potencializado esta caminhada, mas há muito ainda por fazer. Do ponto de vista da CUT, por exemplo, temos ampliado os investimentos no nosso Portal do Mundo do Trabalho (www.cut.org.br), na estruturação de sites das nossas estaduais e Ramos, no aprimoramento da nossa rádio e tv web. Acredito que é um processo em que estamos amadurecendo conjuntamente, com uma consciência e um compromisso crescente de que necessitamos lutar para que todos tenham voz, para que não haja mais mordaças como as impostas pela velha mídia.

Quais são as principais lutas que o movimento pretende travar nos próximos meses?

Acho que precisamos mobilizar para retomar o projeto original do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), em que a Telebrás tem um papel chave como empresa pública de articular e incentivar a construção de uma sólida base material para a universalização dos serviços. Não será se submetendo aos interesses das grandes empresas de telecomunicação, despejando rios de recursos públicos e abrindo mão de impostos que vamos conseguir colocar o país num novo patamar neste setor estratégico para o desenvolvimento nacional, para o avanço da educação, da ciência, da tecnologia. O que temos hoje é uma internet lenta e cara, altamente excludente. É hora de virar esta página.

Porto Alegre 2012: A derrota política da esquerda e o novo consenso liberal

 


Por Paulo Marques no SUL21
 
O resultado eleitoral em Porto Alegre, com a reeleição do atual prefeito José Fortunati(PDT) no primeiro turno, com 65% dos votos, e a pífia votação do candidato petista com menos de 10% dos votos, representa bem mais do que as explicações simplistas de aprovação de um boa gestão e a derrocada inexorável do PT em particular e da esquerda em geral. O problema fundamental que não está sendo discutido é muito mais profundo, consiste no que eu denomino de “consenso liberal” que vem se consolidando na cidade.

É, como diria Gramsci, na disputa de uma “visão de mundo”, que se dá a luta central pela  “hegemonia política- cultural”. Segundo o marxista italiano  a relação de dominação se consolida  a partir de dois elementos a coerção e o consenso, sendo que na medida em que este último fator se fortalece  a coerção é utilizada somente em casos excepcionais. Ou seja, a maior vitória do dominante é conquistar o  “coração e mente”  do dominado. Nesse sentido, a hegemonia de um determinado pensamento no campo simbólico-cultural é fundamental  para a manutenção do poder.
Só a partir da reflexão sobre esta questão chave é possível analisar a dimensão real do resultado de domingo passado e os desafios que se impõe para a esquerda na cidade que outrora já foi referência para pensar um outro mundo possível.
José Fortunati e sua coligação formada pelo PDT, PMDB, PTB, DEM, PP e outros nanicos( também incluo o PRBS, partido da RBS, FARSUL e o grande capital)  representam claramente um campo liberal-conservador que havia  sofrido  um importante revés nos 16 anos de governos do PT em Porto Alegre, que chegou ao ápice com a vitória de Olívio Dutra no Estado(1999-2002).
Todavia, esse campo vêm retomando o espaço perdido ao construir, nos quase dez anos de gestão na prefeitura, uma nova “hegemonia cultural”, ou novo “consenso” no que tange ao papel do poder público e sua relação com o capital. Nessa perspectiva está presente os pressupostos da dinâmica liberal do prefeito e legislador limitado ao papel de “gestor” dos interesses do capital, e que  se consolida como a principal característica  dessa hegemonia/ consenso.
No caso de Porto Alegre, esse processo de construção de um “consenso liberal” se deu não só pela ação dos partidos e setores desse campo. Outro fator  que contribuiu fortemente para essa nova hegemonia foram as transformações que se deram no Partido dos Trabalhadores; primeiro em âmbito  nacional e depois local. Se,  no Rio Grande do Sul,  e em particular na cidade de Porto Alegre,  o PT se destacava pelo  caráter de esquerda, diferenciando-se  do partido nos  outros Estados, nos últimos anos isso mudou. Os setores mais à esquerda do partido sofreram sucessivas derrotas internas que  levou a inevitável perda de hegemonia no  partido para os setores mais alinhados com um ideário social democrata em consonância com o perfil da direção nacional.
A consequência desse processo foi que a  identidade  do partido como organização programática mais à esquerda, que levou o PT a manter-se por mais de uma década a frente da prefeitura, foi paulatinamente substituída pela lógica cada vez mais pragmática da  “ampliação do arco de alianças” com partidos liberais, que o governador Tarso Genro denomina de “centro democrático”. O paradigma dessa opção é a “base aliada” do governo federal onde cabem  os partidos liberais que compõe aliança vitoriosa de Fortunati (PMDB, PP, PTB) com exceção do DEM e PSDB(este  compôs o governo Fortunati até o ano passado).  Mas isso significa que o PT se transformou em um “partido liberal”?? Minha resposta é não, eu diria que o PT hoje se consolida como o representante da social-democracia no Brasil. O que significa claramente o afastamento de uma perspectiva anti-capitalista.
Mas onde estaria a contribuição do PT para o o novo “consenso” liberal? Vejo que está fundamentalmente no campo simbólico. Seja nas  políticas de Parceria Público Privada do governo Federal( aeroportos, ferrovias etc..) seja no discurso de “concertação” , de “não-conflito”, como se a sociedade capitalista não fosse, em essência uma sociedade de antagonismos. A total aceitação das regras do jogo liberal por parte do PT,  é o que nos permite compreender a ausência de posição sobre questões como a relação do Estado e dos partidos com o capital privado.
Não há, portanto, ao contrário do que alguns querem crer,  uma “falência da política”, o que temos é o predomínio  de uma determinada política, a clássica política liberal, que se transformou em  “consenso”.  E por outro lado,  uma derrota simbólica-cultural dos princípios da esquerda como o valor do que é público, coletivo, e deve ser socializado. Se até bem pouco tempo  era possível falar de uma  Porto Alegre da “radicalização da democracia”, da “cultura” democrática e participativa do Orçamento Participativo, o que vemos hoje é a incorporação desta experiência à lógica do sistema, baseada no clientelismo e na mercantilização da ação política. Uma lógica “gerencial” no qual as diferenças ideológicas, que existem, são tratadas como problema e os “consensos” são exaltados como virtude.
Outro elemento não menos significativo desse “consenso”, é o  vínculo direto da política com o mercado, onde as empresas privadas são a principal fonte financiadora das campanhas eleitorais. Essa é a outra face da mesma lógica liberal da política como “negócio”, como parte da estratégia que deve assegurar o bom funcionamento do mercado. Uma olhada rápida sobre quem foram os vereadores mais votados e quem os financiou é sintomático dessa realidade.
Nessa perspectiva liberal,  não há mais espaço para a defesa do “público”,  na medida em que a ampliação dos espaços públicos significam a diminuição da acumulação privada de capital ela está fora da “realidade”. Por isso é tão necessário para o “consenso liberal” a ampliação das  privatizações,  mesmo que revestidas de “parcerias” e da construção de discursos, na esfera ideológica e simbólica,  de que o privado é eficiente e o público é inviável. Está aí nesse constructo ideológico a aceitação, como “consenso”, de que a saúde, o transporte, a cultura, a educação, as praças, as escolas,a limpeza urbana,  para que funcionem bem,  devem estar sob controle privado.
A privatização dos espaços públicos em Porto Alegre (Auditório Araújo Viana, Largo Glênio Peres, Feiras Modelo, Parque da redenção sentre outros), as mudanças no Plano Diretor da Cidade para atender os interesses das grandes corporações imobiliárias,  políticas de “higienização do centro” são algumas das medidas que cumprem este objetivo de construir uma “visão de mundo” , um “consenso” sobre o lugar do  público e do privado na sociedade.
Quem combate o  “consenso liberal”? 
Quando as contradições inerentes ao sistema capitalista, como o aprofundamento da desigualdade social, da violência do deficit democrático do sistema representativo não encontram espaços para expressarem-se nos partidos,  ocorre um fenômeno que começa a ser comum nas chamadas “democracias consolidadas” que é a  auto-organização de setores da sociedade descontentes com a “naturalização” do sistema e aceitação geral do “consenso liberal” por quase todos os partidos.
A partir das  redes sociais, percebem que a mediação dos partidos se torna,  não só inútil (na medida que prevalece  o “consenso” sobre determinadas questões ) mas ultrapassada (com a comunicação imediata das redes sociais é possível discutir e debater qualquer tema sem a intermediação de um “representante eleito” ou do dirigente partidário). Dessa forma a crise dos partidos, principalmente da esquerda, é um reflexo destes dois contextos: a) a falência de um modelo de organização vertical e elitista, ultrapassado por novas formas de fazer/participar/atuar nas questões de interesse coletivo e b) a impossibilidade de realizar um debate e um enfrentamento anti-sistêmico para além da lógica do capital.
Assim temos uma  descrença e esvaziamento da militância jovem nos partidos e a ampliação de  iniciativas de auto-organização social que utilizam as redes sociais para articular e organizar ações e protestos. No último período podemos destacar a emergência do cicloativismo na cidade, com o movimento Massa Crítica, que luta por uma outra lógica de mobilidade urbana que supere o carrocentrismo, símbolo maior da cultura capitalista  e o movimento resistência cultural que protesta contra a política reprssiva e privatista da prefeitura para a área cultural. Uma das características marcantes da maioria dos integrantes destas mobilizações é a desvinculação de qualquer partido político. O que aparece como um problema para os partidos é, na verdade,  a consequência dessa  crise da atual forma de “fazer política”,  considerada por muitos como insuficiente.
A mais emblemática das últimas  manifestações deu-se no centro de Porto Alegre a dois dias das eleições. Organizada via facebook, por ativistas da cultura,  reuniram mais de 400 manifestantes em frente a prefeitura para protestar contra a privatização dos espaços públicos. Forçavam um debate que esteve ausente das campanhas eleitorais.
O protesto terminou de forma violenta com a repressão da Polícia Militar contra os manifestantes e a destruição do boneco gigante da Coca-Cola colocado no Largo Glênio Peres, atualmente este espaço público é gestionado pela empresa de refrigerantes.
Vale destacar ainda  que a  postura assumida por dois partidos identificados como representantes da  esquerda socialista( PSOL e PSTU) não conseguem, ainda,  ocupar o espaço de representantes desse ativismo anti-sistêmico. O discurso moralista, “anti-corrupção” que caracterizou a campanha do PSOL nessa eleição,  está muito aquém de uma perspectiva de novo projeto alternativo à altura dos desafios de enfrentamento à hegemonia liberal que nos referimos. Quanto ao PSTU sua retórica classista não consegue avançar para além de sua pequena base de funcionários públicos.
Dado este cenário, marcado de um lado pelas escolhas ideológicas do PT e de outro,  por uma esquerda socialista ainda presa a dogmas e ortodoxias do passado, ouso afirmar que a possibilidade de reconstruir uma hegemonia política-cultural de esquerda na cidade de Porto Alegre passa por uma  nova geração de ativistas anti-sistema,  que em suas mais diversas formas de organização política (associações, grupos, coletivos, etc.) enfrentarão, nas ruas, o “consenso” do capital.
Paulo Marques é doutor em Sociologia e professor universitário