domingo, 4 de novembro de 2012

Filósofo Peter Singer: “Furacão Sandy não foi um evento ‘natural’.

 



Entrevista com Peter Singer, filósofo australiano, Professor de Bioética da Universidade Princeton, autor de diversos livros sobre ética, direitos dos animais, ecologia e sustentabilidade.
 
“Em primeiro lugar, deixe-me dizer que o furacão Sandy não foi um evento ‘natural’.” Com essas palavras, surpreendentes na boca de um filósofo da ciência, o australiano Peter Singer começa a entrevista que você lê a seguir. Professor de bioética da Universidade Princeton – pesquisador e ambientalista incansável na denúncia dos riscos do aquecimento global e na defesa dos direitos dos animais -, Singer espanta-se tanto diante dos que creem em um Deus onipotente e intervencionista a zelar pela vida dos homens quanto dos que relutam em acreditar nos dados científicos que atestam os efeitos nefastos da ação humana sobre o clima da Terra.
Com o número de mortos em decorrência do Sandy aproximando-se da centena na sexta-feira e a campanha presidencial virtualmente paralisada nos Estados Unidos diante da tragédia, pelo menos um sintomático efeito político se fez sentir: o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, um independente que já esteve afinado com os republicanos, declarou apoio à reeleição de Barack Obama. Alarmado com a magnitude da destruição na cidade, Bloomberg tomou partido na celeuma sobre o tema ambiental, que divide democratas, defensores do investimento em energias verdes, dos “negacionistas” republicanos, que refutam a ideia de que o aquecimento global seja causado pela ação do homem.
Para Peter Singer, chegamos ao ponto em que não basta intensificar preparativos para emergências de grandes proporções em nossas metrópoles. Será preciso tomar uma atitude radical em relação às emissões de gases do efeito estufa, nas formas de geração de energia e em nossos próprios padrões de consumo – antes que seja tarde demais. “Tempestades extremas como essa”, diz o professor, “evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que o conhecimento científico é suficiente para nos proteger delas.”
As imagens do furacão Sandy sobre Manhattan lembram muito os filmes de catástrofe em Hollywood, que atraem multidões aos cinemas. Qual é o efeito desses grandes eventos naturais sobre a autoestima e a imaginação do homem atual?
Em primeiro lugar, deixe-me dizer que não devemos admitir que o furacão Sandy foi um evento “natural”. Cientistas que pesquisam mudanças climáticas induzidas pela atividade humana já haviam previsto que eventos climáticos extremos iriam se tornar mais comuns. Por sua intensidade e força, é praticamente certo que o furacão esteja conectado aos danos que causamos ao meio ambiente. No que se refere ao clima, assim como às plantas, animais e tudo o que chamamos de “ambiente natural”, não existe mais “natureza” neste planeta: estamos vivendo numa era em que a atividade humana afeta tudo, em todas as partes do mundo. Dito isso, tempestades extremas como essa, e também terremotos e tsunamis, evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que nosso conhecimento científico é suficiente para nos proteger deles. Às vezes podemos prever esses eventos, o que evidentemente nos ajuda a salvar muitas vidas, mas ainda assim eles mostram quão pífios podem ser nossos melhores esforços para enfrentá-los.
Então eles abalam, além de cidades, as nossas crenças?
Exato. Esse é um fator curiosamente ignorado muitas vezes. Em 1755, após um terremoto e um tsunami devastarem Lisboa, matando dezenas de milhares de pessoas, filósofos iluministas questionaram como o mundo poderia ter sido criado por um ser onipotente, onisciente e benevolente. Este não pode ser o melhor dos mundos, disse Voltaire por meio de seu personagem Cândido. Concordo com ele e me intriga o fato de cristãos tradicionais testemunharem semelhantes calamidades – com milhares de mortos, incluindo crianças, com sofrimento generalizado – e continuarem a crer em um deus com semelhantes atributos.
Mesmo com as previsões dos cientistas e com as precauções tomadas pelas autoridades americanas, a usina nuclear de New Jersey entrou em ‘estado de alerta’ devido à tempestade. Por mais que nos preparemos para tais eventos, chegaremos a estar seguros?
A energia nuclear é uma atividade inerentemente perigosa, e desastres como o tsunami que atingiu a planta nuclear de Fukushima deixaram isso bastante claro. Tanto que países como a Alemanha já acordaram para a necessidade de abandoná-la. Mesmo quando as probabilidades de algo dar errado são extremamente baixas, se isso acontece as consequências podem ser um desastre de proporções inéditas – e podem tornar uma extensa região inabitável por séculos. Claro que a energia nuclear não contribui para o aquecimento global e é, compreensivelmente, uma alternativa atraente aos olhos de muitos. Mas há outras opções mais seguras que o nuclear ou as termoelétricas a carvão, como a energia solar, eólica e hidrelétrica, com eficiência razoável e menor produção de lixo.
O sr. afirma que o Sandy não pode ser chamado de evento ‘natural’, mas alguns cientistas têm dito que, embora intenso, ele não foi tão diferente de outros furacões ou ciclones.
Sandy poderia ser chamado de “normal” no contexto de um fenômeno que ocorresse uma vez a cada cem anos. O problema é que esses “desastres naturais” têm tido frequência cada vez maior, de um a cada década. Seria difícil dizer, diante de um único furacão, que ele é resultado do aquecimento global. Mas no atual cenário de furacões, enchentes e secas cada vez mais frequentes no mundo, eu não chamaria o Sandy, de forma alguma, de “fenômeno natural”.
Ou seja, a partir de agora as pessoas terão que desenvolver uma certa ‘consciência de sobrevivência’ para enfrentar desastres cada vez mais comuns?
Prefiro dizer que as pessoas – e os governos – terão de levar realmente a sério as mudanças climáticas. Nós temos de reduzir as emissões de gases antes que a situação se torne ainda pior. Mas enquanto isso não acontece as pessoas podem se preparar para perdas e desastres cada vez mais frequentes nas grandes cidades.
Quanto os urbanistas de hoje estão preparados para enfrentar essa situação?
O planejamento urbano começa a centrar foco na antecipação de emergências, mas é muito difícil estar preparado para ocorrências de tão grandes proporções. Na construção do novo World Trade Center em Nova York, por exemplo, a polícia solicitou que a base do edifício fosse forte o bastante para resistir a uma grande explosão. Só que esse é apenas um tipo de emergência possível. Existe, como se pôde perceber agora na cidade, muito pouca proteção para barrar as inundações. Mesmo as instalações de energia elétrica nova-iorquinas não estão protegidas: enquanto falamos aqui, a parte baixa de Manhattan continua às escuras, e pode levar dias até que a energia seja religada.
A campanha presidencial americana parou por causa do furacão. Grandes tragédias, como o furacão Katrina em 2005, sempre afetaram a política, mas de início parece haver um acordo tácito para enfrentá-las. Por quê?
Num primeiro momento, há a sensação de que todos devem se unir e trabalhar juntos para reduzir os danos. Mas é um sentimento que não dura muito. O Katrina, no fim, foi devastador para a administração Bush, principalmente porque a Fema (Federal Emergency Management Authority, agência governamental responsável pela prevenção de catástrofes) fez um trabalho péssimo – e ficou revelado que Bush havia nomeado um amigo político sem experiência no assunto para a chefia da agência. Agora, tanto as agências meteorológicas quanto a Fema fizeram um trabalho muito melhor do que no caso Katrina.
Aparentemente, Obama e Romney têm visões distintas sobre a importância da Fema.
De fato. E espero que os apoiadores do presidente Obama deixem bem claro que Mitt Romney disse, no ano passado, que pretendia extinguir a Fema e atribuir suas funções aos Estados. Depois do furacão Sandy ele já mudou o discurso, não quer mais abolir a Fema… O que prova que diz qualquer coisa para ser eleito. Há uma clara diferença entre os dois candidatos nesse assunto. Depois de Bush ter diminuído o status da Fema, Obama felizmente o recuperou. Mas os republicanos insistem na ideologia de reduzir o poder do governo federal, mesmo quando é óbvio ser impossível para as autoridades individuais dos Estados lidarem com um problema como o do furacão Sandy, que afeta vários deles.
Segunda-feira, quando as estatísticas americanas registravam menos de uma dezena de mortos, 52 pessoas já haviam morrido por causa do Sandy no Haiti. Nessas grandes tragédias as vidas das populações mais pobres contam menos?
É fato que populações pobres, distantes dos centros internacionais de mídia, recebem muito menos atenção. É um problema que sempre vimos e estamos vendo de novo agora. E vale ainda notar que pessoas mortas em furacões, terremotos, tsunamis e ataques terroristas ganham muito mais atenção do que as que perdem a vida por razões relacionadas à pobreza, à falta de saneamento, água potável ou atendimento médico. De acordo com a Unicef, as mortes de 8 milhões de crianças a cada ano em decorrência de fatores como esses poderiam ser evitadas. Isso é mais do que 20 mil óbitos por dia – tragédia muito maior que a do furacão Sandy, seja no Haiti, seja nos EUA. Uma tragédia cotidiana, que não rende imagens cinematográficas na TV; simplesmente não é noticiada.
Essa semana, uma corte italiana condenou por homicídio culposo sete sismólogos que não previram um terremoto que matou 300 pessoas em 2009. O que achou do caso?
Um absurdo e uma ameaça à pesquisa científica. Como podemos incentivar que pesquisadores deixem as universidades para prestar serviço em áreas de significância pública se os ameaçamos de prisão quando algo dá errado? Não está claro sequer se esses cientistas cometeram algum engano nesse caso – eles podem ter agido com base nas evidências que eram disponíveis. Podiam ter feito melhor? Como saber? E, ainda que tivessem cometido um equívoco genuíno, jamais se justificaria condená-los por homicídio culposo!
O que já aprendemos sobre a prevenção de grandes tragédias naturais?
Que não se pode esperar proteção completa diante de terremotos ou eventos climáticos extremos. Mas certamente podemos construir edifícios mais sólidos, erguer barragens anti-inundação e proteger os equipamentos de infraestrutura essenciais ao funcionamento das cidades. Organizações como a Geohazards International, por exemplo, têm sido pioneiras no desenvolvimento de projetos como o de parques altos em cidades costeiras, sujeitas a tsunamis, que podem acolher a população tão logo ocorra um alerta de terremoto oceânico. O problema, obviamente, é que tudo isso custa dinheiro, e quando os riscos de que determinado evento ocorra são pequenos, tendemos a não querer gastar com isso.
Como lidar com o potencial de destruição da natureza quando precisamos desesperadamente preservá-la da destruição humana?
O melhor que podemos fazer a ambos, a natureza e nós, é reduzir as emissões de gases do efeito estufa. Nesse sentido, não podemos ignorar que um dos fatores de maior geração desses gases é a produção de carne – especialmente a bovina, pois as vacas produzem metano, que contribui 72 vezes mais para o aquecimento global que o dióxido de carbono. Sem uma mudança efetiva em nossos padrões de consumo, não vamos conseguir desacelerar a mudança climática que torna cada vez mais frequentes desastres como o furacão Sandy.
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Com informações do Jornal O Estado de São Paulo.

O retrocesso no ensino superior

   

Por Assis Ribeiro
Do Le Monde Diplomatique
 
Incrível retrocesso na educação superior
 
O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época
por César Augusto Minto, Lalo Watanabe Minto
A educação brasileira está organizada em dois níveis: básica e superior. Por razões de espaço, destacamos aqui o segundo nível. O país adota formalmente um modelo de universidade que realiza ensino, pesquisa e extensão de forma indissociada. As universidades públicas produzem, quantitativa e qualitativamente, o que há de mais avançado em todas as áreas de conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país e para a promoção do bem-estar de seu povo.
Contudo, esse modelo convive com a existência de inúmeras instituições de ensino superior (IES) que não se caracterizam como universidades: particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas.1 Em geral, com exceção das IES públicas (sobretudo federais e estaduais, pois as municipais se assemelham às privadas), as demais não realizam pesquisas, grande parte delas oferece ensino de qualidade questionável e a quase totalidade visa exclusivamente ao lucro. De 1999 a 2009, as matrículas de graduação presencial públicas cresceram 62%; as particulares, 345%; e as privadas sem fins lucrativos diminuíram 2%; as matrículas em IES não universitárias passaram de 31,7% para 46,9% do total, sendo 80,9% nas particulares.2
O quadro esboçado é preocupante, mais ainda se considerarmos que, há muito, setores sociais conservadores têm defendido a “flexibilização” da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, sob duas alegações: 1) a diversidade do povo brasileiro, que supostamente demandaria a variedade de modelos; e 2) nem toda formação precisa da pesquisa, curiosamente a função que viabiliza a construção de conhecimento e a mais cara das três.3 A partir do governo Collor, essa visão ganhou statusde “oficial”, ao mesmo tempo que se interrompeu uma salutar tendência a avanços sociais iniciada com a Constituição Federal de 1988.
O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época. Desde então, fortaleceu-se uma concepção tecnicista de ensino superior que reforçou a separação entre ensino de elite (em parte das IES públicas e das privadas mais tradicionais) e ensino de massa, privado, para atendimento de demandas emergentes, sobretudo da classe média e de setores da classe trabalhadora.
Anos depois, a opção política pela resposta privatista às necessidades de expansão do ensino superior resultou no agravamento das desigualdades do setor. Tendo, de um lado, uma universidade pública de qualidade reconhecida, mas restrita a poucos, e, de outro, uma porção de IES privadas de qualidade duvidosa, esse ensino tornou-se sempre mais desigual, afetando em especial as áreas efetivamente menos valorizadas, entre as quais se destaca a da formação de professores.
Um novo impulso à privatização ocorreu a partir dos anos 1990, no bojo da reestruturação capitalista global, e materializou-se por meio da doutrina de reforma do Estado.4 Tendo a privatização, a terceirização e a publicização como meios e a administração pública gerencial como fim, a reforma do Estado realizou algumas inversões conceituais importantes, entre elas a substituição de direito por serviço. Essa doutrina aponta claramente para a mercantilização.
As diretrizes da reforma passaram a ser positivadas em leis a partir da Emenda Constitucional n. 19, de 1998, reforçando o caminho da mercantilização dos direitos sociais. Terceirização é a “execução indireta de serviços públicos, mediada por contratos submetidos a licitações supostamente isentas, do que deriva o ingresso de trabalhadores sub-remunerados em atribuições públicas sem o devido concurso”.5 Já a publicização implica a transferência dos serviços sociais e científicos então prestados pelo Estado para o setor público não estatal; vale dizer, promove a indistinção entre estatal e privado/mercantil à medida que desconsidera os meios e objetivos específicos do processo educativo, ressaltando apenas seus resultados quantitativos.6
Explicitamente assumida ou não, a reforma atinge corações e mentes outrora insuspeitos, e passa a orientar também as políticas para o ensino superior. Nesse caso, a empreitada foi energizada pela insuficiência crônica de recursos que resultou, por exemplo, em um grande desequilíbrio entre candidatos e vagas no setor público. Além da privatização propriamente dita, a legislação em vigor permite que IES ditas sem fins lucrativos recebam recursos estatais na forma de: a) subvenção social; b) auxílio; c) contribuição; d) convênio; e) termo de parceria; f) imunidade de impostos; g) imunidade de contribuições sociais; h) isenção; i) incentivo fiscal ao doador; j) voluntariado.7
A partir de meados da década de 2000, o governo federal passou a viabilizar duas formas principais de expansão do ensino superior:
a) estatal, via ampliação de vagas e criação de novas IES por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, 2007), que condiciona os recursos ao atendimento de metas nos cursos de graduação presenciais: dezoito estudantes por docente e taxa de conclusão média de 90%, entre outras. Ocorre que a relação 18/1 não se coaduna com o modelo da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, e não se tem notícia de que a taxa citada seja atingida, nem sequer nas melhores universidades mundo afora;
b)privada, via criação do Programa Universidade para Todos (ProUni, 2004-2005), que utiliza recursos públicos para comprar vagas “ociosas” de IES privadas, incluindo as com fins lucrativos. Ademais, registre-se o uso indiscriminado do ensino a distância, sobretudo na formação inicial e de docentes.
Projetos desse tipo fragilizam ainda mais as condições de funcionamento das instituições. Por um lado, corroboram a tendência de separação entre IES de ensino e IES de pesquisa, assim como acirram as divisões entre as áreas de conhecimento, sobretudo pela disputa por recursos. Por outro lado, distanciam o país da construção de um efetivo sistema nacional de educação (menos desigual e mais orgânico e adequado às necessidades regionais). Também pioram as condições de trabalho dos servidores e de estudo dos alunos, ao passo que se reduzem os espaços para contestação institucional, uma vez que boa parte das IES públicas mantém estruturas oligárquicas e anacrônicas, algumas com eleição indireta de dirigentes (reitores e diretores) e composição de órgãos colegiados sem ampla representação dos envolvidos (a USP, por exemplo). Nas particulares, a situação é dramática: em 2009, 53% dos docentes eram horistas, enquanto 25,5% atuavam em tempo parcial.
Soma-se a isso o recrudescimento do autoritarismo. Em nome de garantir um ambiente propício à perenização de muitas funções privadas às quais as universidades públicas foram sendo submetidas (fundações, convênios com empresas, contratos de terceirização, cursos pagos etc.), a onda repressiva se espalha e, de certo modo, se naturaliza. As formas de controle de movimentos organizados, vozes dissonantes e contestadoras, ocultam os fundamentos reais dos problemas educacionais, buscando “resolvê-los” com medidas duras. Não raro, conflitos políticos tornam-se casos de criminalização judicial, para não dizer do reavivamento de práticas ditatoriais: espionagem, incursões policiais e crescente militarização do espaço físico dos campi (cancelas, catracas, câmeras de vigilância),8 criando uma tendência torpe de as universidades se parecerem cada vez mais com presídios do que com locais de produção e disseminação de conhecimento.
Diante da atual tendência de mercantilização – agravada pela entrada das IES particulares nas Bolsas de Valores e por práticas como os fundos privados de captação de recursos (endowments) nas IES públicas – e de sufocamento dos conflitos nas universidades, o ensino superior que está sendo construído corresponde aos anseios da sociedade?
Para que cumpram um papel emancipador, é preciso propiciar condições às IES: recursos adequados, pessoal bem formado, autonomia. Indivíduos com formação crítica podem tornar-se protagonistas de sua própria história, individual e coletiva. A pesquisa precisa ser patrocinada e não pode ser submetida a retornos rápidos, encurtamento dos prazos de formação na pós-graduação, enxugamento curricular, interesses próprios do mercado e do tempoda lucratividade das empresas.
Numa era em que o saber se torna cada vez mais fluido e fragmentário em todas as áreas, formar profissionais capazes de formular perguntas e respostas originais, antes de ser uma demanda do mundo em que se vive, é uma necessidade da sociedade que se almeja construir. Conhecimentos apenas adaptados a ritmos e forças do mundo atual não bastam. É preciso abrir portas para o futuro.
A recente greve dos servidores federais na área da educação pode ser tomada como exemplo: 1) de descaso governamental, que permite a situação chegar a limites intoleráveis (sua proposta desestrutura a carreira, descaracteriza o regime de trabalho de dedicação exclusiva, fere a autonomia universitária e sinaliza a retirada de direitos expressos em legislação anterior);9 e 2) de resistência dos trabalhadores organizados em contraposição a situações adversas, o que demonstra a possibilidade de construir as alternativas necessárias.
É urgente reverter o retrocesso na educação superior! 
César Augusto Minto
Professor da Faculdade de Educação da USP e vice-presidente da Associação dos Docentes da USP
Lalo Watanabe Minto
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília. 
Ilustração: Daniel Kondo
1 Ver Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), art. 20, incisos I a IV.
2 A Sinopse estatística da educação superior 2010 (Inep) não traz dados que permitam diferenciar as IES privadas.
3 Atende-se, assim, aos “critérios do mercado”, em duplo sentido: a flexibilização da formação resulta em mão de obra precarizada e com custo rebaixado, da mesma forma que permite a operação mais lucrativa das próprias IES privadas, as grandes responsáveis por esse tipo de formação.
4 Consulte os dezessete volumes dos Cadernos Mare da Reforma do Estado, Brasília, 1997-1998.
5 Rudi Cassel, “Terceirização no serviço público”, Valor Econômico, 18 jul. 2012, p.E2.
6 “Em síntese, a estratégia de publicização visa a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor” (Cadernos Mare n.2, Brasília, 1998, p.12).
7 Sugerimos ver a “justificação” do Projeto de Lei n. 7.639, de 2010, da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e outros. Trata das Instituições Comunitárias
de Educação Superior (Ices).
8 A maior parte também decorre de contratos (terceirizações) com a iniciativa privada.
9 Decreto n. 94.664, de 23 de julho de 1987 (PUCRCE). Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987.