''A imensa maioria dos árabes pensa que a maior ameaça vem dos EUA-Israel''
Para sua segunda entrevista em menos de um ano com o professor Noam Chomsky (a primeira ocorreu em Cambridge, em setembro de 2010), Frank Barat pediu a renomados artistas e jornalistas que cada um lhe enviasse a pergunta que gostaria que fosse formulada a Noam.
Frank Barat: A prática política surpreende frequentemente pelo seu vocabulário político. Por exemplo, diz-se que a recente revolução no Oriente Médio se produz para exigir democracia. Podemos encontrar palavras mais adequadas? Não é, por acaso, a utilização das velhas e tão frequentemente traiçoeiras palavras uma maneira de absorver o impacto, no lugar de reuni-lo e seguir transmitindo? (Coordenador do Tribunal Russel sobre Palestina)
Noam Chomsky: Para começar, acredito que a palavra revolução é um pouco exagerada. Talvez possa converter-se em uma revolução, mas, no momento, é um apelo a uma reforma moderada. Há vários elementos, como o movimento de trabalhadores, que tentou seguir mais além, mas ainda está por se ver até onde chega. A questão é correta, mas também não é fácil de sair dela. Não ocorre somente com o termo democracia, mas também com cada palavra que tenha que ver com a discussão de assuntos políticos. Há dois significados. Um significado literal e um significado que se estabelece com respeito ao bem-estar político, à ideologia, à doutrina. Portanto, ou deixamos de falar ou tentamos utilizar as palavras de forma consciente. Como digo, isto não ocorre somente com a palavra democracia.
Tome uma palavra simples, como “pessoa”. Parece simples. Dê uma olhada. É muito interessante ver o que ocorre com essa palavra nos EUA. Os EUA garantem direitos pessoais que talvez cheguem mais longe que em qualquer outro país. Mas aprofunde-se neles. As emendas da constituição afirmam muito explicitamente que não se poderá privar nenhuma pessoa de seus direitos sem o devido processo legal. Isso volta a aparecer na 14° emenda, mas foi a 5° emenda que tratou de aplicar aos escravos libertos, sem êxito. Os tribunais vêm reduzindo e ampliando seu significado de forma crucial. Ampliaram o significado para incluir as corporações: entidades legais fictícias estabelecidas por um poder estatal. Portanto, concederam-lhes os direitos das pessoas, inclusive direitos que iam mais além dos das pessoas. Por outro lado, também reduziram seu alcance porque o lógico era pensar que o termo “pessoa” seria aplicado, igualmente, a essas criaturas que caminham em nossa volta fazendo os trabalhos sujos da sociedade e que não dispõem de documentação. Mas não foi assim, porque era necessário privar-lhes de seus direitos. Portanto, os tribunais, em sua infinita sabedoria, decidiram que não são pessoas. As únicas pessoas são aqueles que têm cidadania. Assim, as entidades corporativas não humanas, como o Barclays Bank, são pessoas, com direitos de grande alcance. Mas os seres humanos, a gente que varre as ruas, não são pessoas, não têm direitos e o mesmo ocorre com cada termo que seja examinado.
Tomemos agora a expressão “acordos de livre comércio”. Por exemplo: há um Acordo de Livre Comércio Norte-Americano: Canadá, Estados Unidos e México. O único termo exato que há aí é “norte-americano”. Não é realmente um “acordo”, se considera que os seres humanos formam parte de suas sociedades, porque a população dos três países estava contra o mesmo. Portanto, não é um acordo. Tampouco se trata de “livre comércio”, é protecionista em grau extremo, estabelece tremendas proteções aos direitos de monopólio nos preços das corporações farmacêuticas, etc. Uma grande parte de tudo isso não é um comércio em absoluto. Na realidade, o que chamamos “comércio” é uma espécie de piada.
Por exemplo, na antiga União Soviética, se certas peças eram fabricadas em Leningrado e eram enviadas à Varsóvia para que fossem montadas e depois fossem vendidas em Moscou, eu não chamaria a isto de comércio, ainda que cruzasse fronteiras nacionais. Eram interações dentro de uma economia de comando único. E ocorre exatamente o mesmo se a General Motors fabrica algumas peças na Índia, as envia ao México para que sejam empacotadas e as vende em Los Angeles. Isto seria comércio em ambos os sentidos. Na realidade, se busca a parte comercial, somente representa 50%. O que é bastante pouco. E grande parte do acordo tem a ver somente com direitos de investimento: garantir a General Motors, por exemplo, os direitos das companhias nacionais no México, coisa que os mexicanos não conseguem nos EUA. Tomem o termo que quiserem. Irão se deparar sempre com exatamente o mesmo. Portanto, sim, isso é um problema e temos que afrontá-lo tentando esclarecer de que modo utilizamos uma terminologia equivocada.
Chris Hedges: Julien Benda, em The Treason of Intellectuals defende que somente quando os intelectuais não perseguem objetivos práticos ou vantagens materiais é que podem servir como consciência e sanção. Você poderia abordar o tema da perda de filósofos, líderes religiosos, escritores, jornalistas, artistas e acadêmicos que em algum momento viveram suas vidas em oposição direta ao realismo das multidões e o que isto implicou para nossa vida moral e intelectual? (Jornalista estadunidense especializado na cobertura de conflitos)
Posso compreender os seus sentimentos e compartilhá-los, mas não sei que perda foi essa. Alguma vez isso foi certo? Que eu lembre não houve nenhuma época; o termo intelectual chegou a ser de uso comum em seu sentido moderno geral na época dos partidários de Dreyfus. Era uma pequena minoria. Uma minoria pequena e impopular. A massa de intelectuais apoiava o poder estatal. Durante a primeira guerra mundial e pouco depois, em cada um dos países, os intelectuais apoiavam apaixonadamente ao seu próprio estado e sua própria violência. Houve um punhado de exceções, como Bertrand Russel na Inglaterra ou Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na Alemanha ou Eugene Debs nos Estados Unidos, mas todos eles foram para a prisão. Eram marginalizados e jogados na prisão. No círculo de John Dewey, os intelectuais liberais dos EUA que eram fervorosos partidários da guerra, houve um de seus membros, Randolph Warren, que se manteve aparte. Não lhe colocaram na prisão, EUA é um país bastante livre, mas lhe tiraram das revistas, ficou intelectualmente exilado, etc. Assim é como sempre ocorreu.
Dê uma olhada cuidadosa nos anos sessenta, um período de grande ativismo: os intelectuais apoiavam muito a Martin Luther King e o movimento pelos direitos civis sempre e quando se limitasse a atacar alguém. Enquanto o movimento pelos direitos civis perseguia xerifes racistas no Alabama, era extraordinário. Todo mundo o exaltava. Quando se ocupou de questões de classe, ele foi marginalizado e suprimido. As pessoas costumam esquecer que Martin Luther King foi assassinado quando tomava parte em uma greve dos trabalhadores do setor sanitário e que ia a caminho de Washington para ajudar a organizar o movimento popular dos pobres. Bem, isso supunha cruzar um limite, isso fazia sentir que ia por nós. Ia contra os privilégios e o norte, etc. Por isso os intelectuais desapareceram.
Com relação à guerra do Vietnã, ocorre exatamente o mesmo. Quase não houve nada entre os intelectuais conhecidos – houve desde cedo pessoas à margem da sociedade, jovens e demais -, mas entre os intelectuais com prestígio, praticamente nada. Já no final, após a ofensiva de Tet em 1968, quando a comunidade empresarial se voltou contra a guerra, então tu poderias ver aparecer pessoas dizendo “Sim, sempre estive contra a guerra”... Mas não há nem o menor indício disso, nada em absoluto.
Na realidade, há que recorrer à história mais antiga. Vamos à Grécia Clássica, quem bebeu a cicuta? Ao indivíduo se lhe acusou de corromper os jovens de Atenas com falsos deuses. Tomem os registros bíblicos. Não aparece o termo “intelectual”; mas há um termo que significa o que eles entendiam por intelectual, o de “profeta”. É uma má tradução de uma obscura palavra hebréia. Havia os chamados profetas, intelectuais, que formulavam a crítica política, condenavam o rei por provocar desastres, condenavam os crimes do rei, pediam misericórdia para os viúvos e os órfãos, etc. Bem, estas pessoas nós poderíamos chamar de intelectuais. Como os tratavam? Eram denunciados como pessoas que odiavam Israel. Essa é a frase exata que se utilizava. Essa é a origem da frase “auto-ódio judio” no período moderno. E os aprisionavam, deixavam-lhes no deserto, etc. Mas bem, haviam intelectuais que eram elogiados: os aduladores da corte. Séculos depois, chamaram-se de “falsos profetas”. Mas não neste preciso momento. Desde então, ocorre quase sempre a mesma história.
Há umas quantas exceções. No período atual, a principal exceção que conheço é a Turquia. É o único país onde eu sei que importantes artistas, acadêmicos, jornalistas e editores – uma gama muito ampla de intelectuais – não somente condenam os crimes do Estado, mas também se envolvem em constantes desobediências civis contra ele. Enfrentando e suportando frequentemente castigos muito duros. Dá-me vontade de rir quando chego à Europa e escuto as pessoas queixarem-se de que os turcos não são o suficientemente civilizados para se incorporar à sua avançada sociedade. Poderiam aprender várias lições com a Turquia. E isso é bastante incomum. Na realidade, é tão incomum que apenas se conhece, não é possível nem sugeri-lo. Mas, à parte da palavra “perdida”, creio que os comentários de Chris Hedges são exatos, mas eu não consigo perceber nenhuma perda.
Acredito que quase sempre aconteceu o mesmo. Desde cedo, o que varia é a forma com que se trata esses intelectuais. Digamos que pode ser que nos EUA sejam difamados ou algo assim, na antiga União Soviética, na Checoslováquia nos anos sessenta e nos setenta, podiam ser presos, como prenderam Havel. Se nessa época te encontravas nos domínios americanos, como El Salvador, o batalhão de elite treinado na escola especial de guerra dos EUA podia arrebentar-te a cabeça. Portanto, sim, dependendo do país, tratam-se as pessoas de forma diferente.
Amira Hass: Os levantes dos países árabes fizeram-lhe mudar ou revisar as suas antigas análises? Afetaram, e como, as suas ideias sobre, por exemplo, massas, esperança, Facebook, pobreza, intervenção ocidental, surpresa? (Jornalista israelense que vive na faixa de Gaza)
Amira e eu nos reunimos na Turquia há um par de meses, tivemos um par de horas para falar e nenhum de nós previu nada, talvez ela sim, mas se o previu não disse nada, certamente eu não previ nada, não estava sucedendo nada no mundo árabe, portanto, sim, mudei de opinião a esse respeito porque foi algo inesperado. Por outra parte, quando olhas para trás, não há diferença com o que ocorria antes, exceto que no passado os levantes eram violentamente reprimidos, e isso foi o que ocorreu em novembro, no início dos levantes, no Saara Ocidental que Marrocos invadiu há 25 anos, violando as resoluções das Nações Unidas e ocupando brutalmente.
Em novembro se produziu esse primeiro protesto não violento que as tropas marroquinas controlaram violentamente, que é algo que há 25 anos seguem fazendo; foi bastante grave como para que se apresentasse uma petição de investigação nas Nações Unidas, mas então a França foi e interveio. A França é o principal protetor de atrocidades e crimes na África Ocidental, são as velhas propriedades francesas, por isso bloquearam a investigação das Nações Unidas do que foi o primeiro protesto. O seguinte foi na Tunísia, de novo mais ou menos uma zona francesa, mas teve êxito, derrubaram o ditador. E depois veio o Egito, que é o mais importante devido a sua relevância no mundo árabe, que foi imensamente notável, uma imensa demonstração de valor, dedicação e compromisso. Tiveram êxito ao se desfazerem do ditador, ainda que o regime não tenha, todavia, mudado. Talvez mude, mas ainda segue aí, diferentes nomes, mas nada novo; esse levante, do 25 de janeiro, foi dirigido pelos jovens que se autodenominaram como o Movimento do 6 de abril.
Bem, o seis de abril se chama assim por uma razão, eles elegeram esse nome porque foi a data de uma ação importante de luta um par de anos antes, no complexo industrial têxtil de Mahalla, e que se acreditava que seria uma greve importante, levaram-se a cabo atividades de apoio e outras. Bem, foram reprimidos violentamente, isso foi em 6 de abril e essa foi uma da série de greves. Certo é que pouco depois da repressão do levante de 6 de abril, o presidente Obama foi ao Egito dar seu famoso discurso sobre a aproximação ao mundo muçulmano e os demais. Solicitou-se a ele em uma conferência de imprensa que dissesse algo sobre o governo autoritário do presidente Mubarak e disse que não, que Mubarak era um bom homem, que estava fazendo coisas boas mantendo a estabilidade e derrotando a greve de 6 de abril e que isso estava bem.
O mais chamativo é Barein. O que aí sucede está alarmando o Ocidente, em primeiro lugar porque Barein alberga a quinta frota americana, uma força militar importante na região. Segundo, porque é de maioria xiita e se chega até ali justamente através de uma estrada construída desde o leste de Arábia Saudita, que tem também uma população de maioria xiita, e sucede que é onde se encontra a maior parte do petróleo. Durante anos, os planejadores ocidentais se preocuparam pelos incidentes históricos e geográficos dali, porque a maior parte do petróleo mundial se encontra nas zonas xiitas, justamente ao redor desta parte do Golfo, Irã, sul do Iraque, leste da Arábia Saudita. Bem, se o levante de Bahrein se estende à Arábia Saudita, as potências ocidentais vão se ver realmente em dificuldades e de fato Obama modificou a retórica que utilizava oficialmente para falar dos levantes. Durante um tempo falou de mudança de regime, agora fala de alteração do regime. Não queremos que haja mudanças, é extraordinário poder contar com um ditador que nos faça o trabalho sujo.
Na atualidade, um fato bastante surpreendente sobre tudo isto é que..., dê uma olhada nos vazamentos de WikiLeaks, é muito interessante. Os mais conhecidos no Ocidente, as grandes manchetes, os vazamentos dos embaixadores que diziam que o mundo árabe nos apoia contra Irã... Mas havia algo que faltava nessas reações nos jornais, nos colunistas e outros, a saber: a opinião pública árabe, o que queriam dizer com isso de que os ditadores árabes nos apoiam? O que se passava com a opinião pública árabe? Não havia nada, não se informava nada. Nos EUA: zero, creio que há um informe na Inglaterra, de Jonathan Steele, e provavelmente nada na França, não sei. Mas sabe-se bem, e muitas agências prestigiosas publicaram, que os árabes que pensam que Irã é uma ameaça representam 10%.
A maioria, a imensa maioria, pensa que a maior ameaça vem dos EUA e Israel. No Egito, 90% dizem que os EUA é a maior ameaça, na realidade a política dos EUA é tão dura que eu acredito que no Egito quase 80% pensam que o regime seria melhor se Irã tivesse armas nucleares. Por toda a região, a maioria pensa assim. Voltando a John Berger e ao termo democracia, a valorização dos intelectuais ocidentais da democracia é tão profunda e está tão profundamente arraigada que a ninguém ocorre perguntar o que pensam os árabes; quando nos sentimos eufóricos de que os árabes nos apoiem, a resposta é que não nos interessam, enquanto estejam quietos e submetidos e controlados, enquanto há isso que chamamos de estabilidade, não importa o que pensam. Os ditadores nos apoiam e ponto, sentimo-nos eufóricos perante este tipo de vínculos, junto a uma boa quantia de questões... Mas, voltando ao comentário de Amira Hass, o sucedido deveria nos levar a pensar no que esteve sucedendo não somente no mundo árabe, mas em mais lugares e que muito frequentemente está motivado por uma razão essencial: a de terem sido submetidos com violência e assim ocorreu ao longo de todo um século.
Quero dizer que os britânicos estiveram reprimindo o movimento democrático no Irã há mais de um século. No Iraque, houve um levante xiita e, tão logo como os britânicos improvisaram o país após a primeira guerra mundial, reprimiram violentamente os grandes levantes; um dos primeiros usos da aviação foi para atacar os civis. Lloyd George escreveu em seu diário que isso foi algo grandioso porque tínhamos que nos reservar o direito de bombardear os “negros”. Continuou em 1953 quando os EUA e a Grã Bretanha se uniram para derrotar no Irã o governo parlamentarista. De 1936 a 1939, houve um levante árabe na Palestina contra os britânicos que foi violentamente combatido.
A primeira Intifada foi de novo um levante popular muito importante. Não foi violento em absoluto, mas sim, um verdadeiro movimento popular, com grupos de mulheres protestando contra a estrutura feudal, tentando destruí-la. Foi combatida sem piedade. Tão logo sucediam coisas como essas, elas eram combatidas. O que é incomum nesta ocasião é que na maioria dos países são suficientemente fortes como para poder sustentar-se. Não sabemos o que sucederá no Barein e Arábia Saudita. Na realidade, não sabemos o que vai suceder no Egito. O exército, que conservou até agora ao menos o controle e o alto comando militar, está profundamente embutido no velho regime opressor. Haviam se apoderado de grande parte da economia, eram os beneficiários da ditadura de Mubarak, não vão ceder facilmente, por isso nos resta ver o que vai suceder ali.
Ken Loach: Como superar o sectarismo na esquerda? (Cineasta britânico)
Não acredito que consigamos algum dia. Há uma forma de sectarismo que é bem vinda, a saber: a discrepância. Há muitas coisas pouco claras, deveríamos discutir, buscar diferentes opções e, além disso, ver o que quer expressar Ken com sectarismo e o que significa em geral; são uma série de iniciativas que algumas vezes tentam, e frequentemente conseguem, dividir os movimentos populares. As pessoas individuais ou os grupos políticos que têm sua própria agenda e querem se construir com o controle se convertem em pequenos Lênin. Não acredito que algum dia esse tipo de sectarismo seja eliminado. Pode-se marginalizá-lo, como por exemplo, durante os levantes do mundo árabe, ou seja, Egito, a Praça de Tahrir, eles foram surpreendentemente muito pouco sectários e havia muitos pontos de vista diferentes, mas havia unidade e um objetivo comum. Lamentavelmente, isso está começando a alterar-se.
Justamente ontem houve uma manifestação de mulheres para exigir seus direitos. Foram reprimidas. É uma sociedade muito sexista e atacaram as mulheres. Ok, isso é sectarismo. Agora, há também um sectarismo religioso em desenvolvimento, quero dizer que quando um objetivo comum já não serve para unir as pessoas em luta, então te deparas com o sectarismo. Essa é a forma de unir as pessoas. Por exemplo, no movimento de trabalhadores nos EUA. A força trabalhadora foi extremamente racista e não necessariamente só contra os negros; por exemplo, no final do século XIX, tratavam-se igualmente os irlandeses e os negros. Quero dizer que podias passear por Boston e ver cartazes que diziam “Nem cachorros nem irlandeses”, etc.
Éramos chamados de hunos, isso significa alguém que vem da Europa Oriental, um amargo racismo contra os bárbaros, contra os italianos, estendia-se até onde alcançava a vista. Mas quando começam as ondas de greves nos fins do século XIX e vão adquirindo importância, houve lugares como os centros mineiros do carvão e do aço no oeste da Pensilvânia, nos quais as pessoas tomaram as cidades e as governaram. Neste ponto, o sectarismo desapareceu, o racismo desapareceu e se uniram para tratar de conseguir algo. O mesmo ocorreu com a organização CIO na década de 1930, superou o racismo contra os negros e trabalharam juntos. Essa é a única forma que eu conheço de conseguir as coisas. O mesmo aconteceu no movimento pelos direitos civis. Se tiveres um objetivo comum e podes coordenar-te para tentar alcançá-lo, então se deixam de lado os esforços sectários, não é que desapareçam, há pessoas que seguem manobrando na periferia e talvez se os motivos e os compromissos se suavizam, elas podem começar a tentar fazê-lo com o todo, como começamos a ver no Egito, mas não conheço outra forma de consegui-lo.
Paul Laverty: Provavelmente não houve nunca uma época na qual tenha ocorrido tanta concentração da riqueza e de poder em tantas poucas mãos. Os poderosos utilizam sistemas sofisticados para manter este estado de coisas, mas talvez nós, na esquerda, utilizamos isto também como desculpa para ocultar nossas deficiências. O que você pensa que falhou em nosso esforço imaginativo para construir uma campanha de massas internacional que democratize os recursos e desafie o poder corporativo? Você pode imaginar uma época na qual possamos organizar com êxito nossas vidas e economias sobre uma base de cooperação ao invés de uma base competitiva? (Advogado e cineasta escocês)
Claro que posso imaginar e, na realidade, houve diversos experimentos com êxito, alguns deles justamente agora. Nenhum deles utópico, nenhum deles do tipo que eu ou você ou outros aspirariam, mas não foram insignificantes. Tomemos, por exemplo, o sistema de Mondragón, na Espanha, gerenciado pelos trabalhadores. É uma forma de cooperativa que teve muito êxito, com um êxito muito amplo.
Se olha ao redor dos EUA, há provavelmente centenas de empresas autogerenciadas, não são imensas, ainda que algumas, sim, são bastante grandes, mas estão tendo êxito. Tomemos justamente agora o Egito, uma das coisas mais interessantes que estão sucedendo no Egito é que o movimento dos trabalhadores, que se manteve militante durante anos (como mencionei antes, este levante não saiu do nada), em alguns dos centros industriais, como o caso de Mahalla, ao que tudo indica os trabalhadores tomaram a empresa e a estão dirigindo. Bem, se isso é verdade, esse poderia ser o começo de uma revolução, para voltar às palavras de Berger. Portanto, sim, é perfeitamente factível.
O comentário sobre a desigualdade é muito real. Não conheço as estatísticas detalhadas de outros países, mas nos EUA a desigualdade está justamente agora no nível mais alto de sua história desde a década de 1920. Mas isso é enganoso, porque a desigualdade nos EUA está muito concentrada, no alto temos exatamente 1% da população. Observe a distribuição dos ingressos, vai de forma muito aguda até o extremo superior e é, literalmente, a décima parte do 1% da população. Aí se dá uma riqueza extraordinária. De fato isso está impulsionando a desigualdade, se tomas essa parte, vês que é desigual, mas não pode se ocultar totalmente. Quem são? São os gestores de fundos de cobertura, os diretores executivos, os banqueiros, etc. Bem, algo muito grave esteve acontecendo.
Desde os anos setenta, a economia mudou de forma significativa, “financiarizou-se”. Voltando aos setenta, as instituições financeiras, os bancos, as empresas de investimento representavam uma pequena percentagem dos benefícios corporativos. Agora, em 2007, por exemplo, alcançaram 40%. Não beneficiam à economia, na realidade provavelmente a prejudicam, não têm utilidade social, mas são poderosas. Com poder econômico se controla o poder político. Por razões bastante óbvias. Por isso conseguiram um extenso poder político, por exemplo, as instituições financeiras que colocaram Obama no poder, é delas que procede a maior parte de seu financiamento.
Com poder político tens a oportunidade de modificar o sistema legislativo e isso é o que estiveram fazendo. Portanto, sobretudo desde os anos oitenta, modificaram-se as políticas fiscais, as políticas tributárias, para assegurar uma muito alta concentração da riqueza. Modificaram-se as normas da governança corporativa. Permitem, por exemplo, que o diretor executivo de uma corporação selecione a junta que vai determinar o seu salário. Bem, tu podes imaginar quais são as conseqüências de tudo isso. Na atualidade, lemos todos os dias nos portais dos jornais, lemos sobre os imensos bônus que são dados aos encarregados da gestão, daí é de onde sai.
Toda a regulação veio abaixo, com efeitos muito destacados. Isto se generaliza pelo resto do mundo. Estou falando dos EUA porque é o que melhor exemplo que conheço. Realmente, a regulação do New Deal impediu até os anos oitenta que surgisse uma crise financeira. Desde a década de 1980, crise após crise, várias durante os anos de Reagan, bastante graves, de fato Reagan deixou o poder com a pior crise financeira desde a depressão. O escândalo de Sayings & Loans, depois chegou Clinton, depois esta crise da moradia, malditos oitocentos bilhões de dinheiro desapareceram, a economia devastada. Bem, tudo isso é fruto de decisões políticas.
Enquanto isso, o custo das campanhas eleitorais segue incrementando-se e isso obriga as partes a irem profundamente aos bolsos dos setores corporativos onde está o dinheiro. Espera-se que as próximas eleições, em 2012, custem ao redor de 2 bilhões de dólares. Dê uma olhada na administração Obama e se dará conta que esteve incorporando executivos ao seu governo. São os que têm acesso ao financiamento das corporações que vão comprar as eleições. As eleições estão convertendo-se em uma mera farsa dirigida pela indústria das relações públicas. É um esforço de marketing, estão dizendo abertamente. Na realidade, Obama ganhou o prêmio da indústria da publicidade pela melhor campanha de marketing em 2008, sabe-se exatamente do que se trata o assunto. Bem, tudo isso é uma espécie de círculo vicioso. Aumenta a concentração da riqueza, incrementa o poder político, que atua para aumentar ainda mais a riqueza.
Por que não há reação? Agora, sim, está havendo reação, pela primeira vez, o que está sucedendo em Wisconsin é uma reação muito importante. Há dezenas de milhares de pessoas nas ruas, dia após dia, com muito apoio popular, talvez lhes apoiem as duas terceiras partes da população. Estão tentando defender os direitos dos trabalhadores, o direito à negociação coletiva, que está sob ataque. Refiro-me ao fato de que o mundo dos negócios compreende muito bem que a única barreira perante a sua total tirania corporativa é o movimento organizado de trabalhadores. Por isso há que destruí-lo. A história do movimento dos trabalhadores nos EUA foi extremamente violenta, mais que na Europa e ali se fizeram esforços e mais esforços para acabar com os sindicatos, mas seguem renascendo. Agora há um esforço importante contra, mas está se resistindo. Os grandes movimentos populares resistem.
Mas onde está a esquerda? É interessante o que está sucedendo agora com a esquerda. Depois da década de 1960, na qual houve um grande renascimento, não houve grande ativismo na esquerda. Há agora muito jovens mais ativistas que nos anos sessenta. Mas os problemas mudaram. Algumas vezes são denominados como pós-materialistas. São temas importantes, não os deprecio. Os direitos dos homossexuais, os direitos ambientalistas, os direitos das mulheres, são todos importantes, mas não chegam a preocupar as pessoas que estão sofrendo um desemprego em níveis de época de depressão. Não chegam aos 20% da população que necessita de bônus de ajuda alimentícia. Não houve este tipo de difusão e organização. Por isso, quando começaram há umas duas semanas os protestos em Wisconsin, não houve praticamente nenhuma iniciativa da esquerda. Bom, um par de personalidades bem conhecidas chegou para dar uma palavra, mas nada mais, não estava organizado por grupos de esquerda que deveriam estar no mesmo coração de tudo. Mas estão por aí e é melhor que se apresentem ou vamos ter problemas.
Ainda que o ativismo de esquerda seja importante, muito importante, está bastante divorciado da luta diária pela sobrevivência e uma vida decente da maioria da população e essa é uma brecha que deve ser superada de algum modo.
Alice Walker: Creio que é inevitável a solução de um único Estado ao impasse Palestina/Israel, e que é mais justa do que poderia ser a solução dos dois estados. Isto se deve ao fato de que não acredito que Israel deixe alguma vez de tentar ter sob seu controle os palestinos, sejam já cidadãos de Israel ou vivam nos territórios ocupados. Com a solução dos dois Estados haveria um estado israelita e um bantustão palestino. (Escritora estadunidense e autora do livro A Cor Púrpura)
Surpreendeu-me muito seu rechaço à ideia de um Estado como algo quase absurdo e gostaria de entender por que pensa assim. Não há nenhuma esperança de que israelitas e palestinos possam viver juntos como os brancos e negros após a caída do apartheid, na África do Sul?
É uma pergunta interessante. Ela é uma mulher maravilhosa, faz um bom trabalho, está realmente comprometida com a causa palestina, mas a pergunta diz algo sobre o recente movimento de solidariedade palestino. Quero dizer, se eu tivesse lhe feito a pergunta, digamos, por que pensa que é absurdo tentar defender direitos civis para os negros nos EUA? Ela teria se sentido desconcertada, dedicou grande parte de sua vida nisso. De fato, a única resposta possível seria: De que planeta você saiu? Isso é o que estive fazendo toda a minha vida.
É exatamente o mesmo aqui. Já faz setenta anos que estamos defendendo o que na recente ressurreição recebe o nome de um acordo para Um Estado. O acordo para Um Estado, que não é solução. Esse Acordo de Um Estado chama-se, frequentemente, de um acordo binacional e se se pensa nele, sim, terá de ser um acordo binacional. Isso foi o que eu estive fazendo quando era um jovem ativista nos anos quarenta, em oposição a um Estado judeu. E assim continuarei sempre. E é duro perder isso. Desde os últimos anos da década de 1960 escrevi toda uma série de livros, um número imenso de artigos, palestras constantemente, milhares delas, entrevistas, sempre ao redor do mesmo. Tentando trabalhar por um acordo binacional, em oposição a um Estado judeu.
Fiz toneladas de trabalhos sobre este tema, trabalho ativista, escrevendo, etc. Mas não é somente o slogan e acredito que é por isso que alguém como Alice Walker o desconhece. Não é somente um slogan, “vivamos juntos e felizes”. Trata-se de enfrentar seriamente o problema. Quando és sério sobre isso, pergunta-te “como podemos conseguir?” Bem, depende das circunstâncias, como todas as opções táticas. No período anterior a 1948, era simples, não queremos um Estado judeu, tenhamos um Estado binacional. De 1948 a 1967, dizias a ti mesmo que não era sensato eleger essa posição. Em 1967 abriu-se de novo a possibilidade. Houve uma oportunidade em 1967 de avançar para algum tipo de sistema federal para depois chegar a uma integração mais estreita, talvez um autêntico Estado laico binacional.
Em 1975, cristalizou o nacionalismo palestino e se introduziu na agenda, e a OLP ponderou um acordo de dois estados, com o imensamente doloroso consenso internacional dessa época para um acordo de dois estados na forma que todo o mundo conhece. De 1967 a 1975 era impossível defendê-lo diretamente e era um anátema, algo odiado, denunciado porque era ameaçador. Era ameaçador porque podia cumprir-se e isso prejudicaria a formação política. Portanto, enquanto se davam conta, denunciava-se e difamava-se. Desde 1975 podias ainda manter esta posição, mas tinhas de enfrentar a realidade, que teria que se alcançar por etapas. Há somente uma proposta que nunca escutei, a de que vivamos todos juntos em paz; a única proposta que conheço, começando com o consenso internacional, é a do acordo de dois Estados. Reduzirá o nível de violência, o ciclo de violência, abrirá possibilidades para uma interação mais estreita que já se produz em algum nível, inclusive nas circunstâncias atuais, comercial, cultural e outras formas de interação. Isso poderia levar a desgastar as fronteiras. Isso poderia levar a uma maior interação e talvez a algo como o velho conceito de Estado binacional.
Chamo agora de acordo porque não acredito que este seja o final do caminho. Não vejo razão particular alguma para render culto às fronteiras imperialistas. Assim que quando minha esposa e eu nos voltamos para quando éramos estudantes e íamos com a mochila pelo norte de Israel, e sucedia que cruzavas o Líbano, porque não há uma fronteira marcada, já se sabe, aparecia alguém nos gritando e nos dizendo para voltar. Por que deveria fazer uma fronteira ali? Foi imposto mediante a violência francesa e britânica. Tínhamos que avançar até uma maior integração de toda a região, não se fazia um acordo de um Estado se é que falamos da palavra. De qualquer forma, há uma série de coisas equivocadas com respeito aos Estados, por que deveríamos prestar culto às estruturas estatais? Teríamos de miná-las. Mas bem, em uma série de passos. Se alguém pode pensar em outra via para chegar até aí, então deveria nos contar. Podemos lhe escutar e falar sobre isso. Mas não sei de outra via. Portanto, tudo o que estive escrevendo e falando é demasiado complexo para colocá-lo em uma mensagem de twitter. Nesta época, isso significa que não existe. Tens de apoiar tanto o acordo para dois Estados como o acordo para um Estado. Tens de apoiar ambas as coisas, porque uma delas é o caminho para conseguir a outra. Se não fazes o primeiro movimento, não vai a lugar algum. Agora Alice Walker diz que Israel não aceitará um acordo de dois Estados. Tem razão. Tampouco vai aceitar o acordo de um Estado. Portanto, se esse argumento tem alguma força, sua proposta está fora de lugar, a minha também.
Por esse mesmo argumento, poder-se-ia tratar de demonstrar que o apartheid nunca teria fim. Que os nacionalistas brancos nunca aceitariam por fim ao apartheid, o que é verdade, então, Ok, renunciamos a luta contra o apartheid. Indonésia nunca renunciaria a Timor Leste, os generais diziam alto: “é uma província nossa e vamos mantê-la”. Isso tinha sido verdade se as ações tivessem se produzido no vazio. Mas não havia tal vazio, havia outros fatores implicados. Um dos fatores, que é importante, e de fato nestes casos é decisivo, é a política norte-americana. Bem, isso não está gravado em pedra. Quando a política dos EUA mudou sobre a Indonésia e Timor Leste, tomou-se literalmente uma frase do presidente Clinton para conseguir que os generais indonésios se fossem. Em um determinado momento ele disse: “Acabou-se”. E se retiraram.
No caso do apartheid, foi um pouco mais complicado. Cuba desempenhou um grande papel. Por exemplo, Cuba expulsou os sul-africanos de Namíbia e protegeu Angola. Isso teve um grande impacto. Mas foi quando mudou a política dos EUA, até 1990, quando esse movimento, o apartheid, veio abaixo. Agora, no caso de Israel, EUA é decisivo. Israel não pode fazer nada sem contar com o apoio dos EUA. Proporciona-lhe apoio democrático, militar, econômico e ideológico. Quando esse apoio se retira, fazem o que os EUA dizem. E assim sucedeu realmente uma e outra vez.
Portanto, se fosse verdade que se estivesse atuando em um vazio, nunca teriam aceitado algo que não fosse o que estão fazendo agora. Apoderando-se da prisão que é a Gaza, apoderando-se de todo o território que lhes dá vontade, já se sabe, e assim seguirão. Mas não estão atuando em um vazio. Há coisas que podemos fazer, como em outros casos, para mudar isso. E neste caos, penso que pode se considerar e, inclusive, traçar-se um plano para poder avançar em direção ao acordo de um Estado como um passo até algo inclusive melhor; há que seguir. Pelo que se pode ver, o único caminho para conseguir isso é apoiando o consenso internacional como primeiro passo. Um passo, um prelúdio para mais passos. Isso significa ações muito concretas. Não temos de organizar um seminário para discutir as possibilidades abstratas. Há passos muito concretos que podemos dar.
Por exemplo, retirar o exército israelense da Cisjordânia. Essa é uma proposta concreta e há toda uma série de medidas a adotar para levá-la a cabo. Por exemplo, a Anistia Internacional, que não é precisamente uma organização revolucionária, pediu um embargo de armas sobre Israel. Bem, se os EUA, Grã Bretanha, França e outros, se os povos podem pressionar os seus governos para que aceitem essa proposta e dizer que haverá um embargo de armas ao menos que retires o teu exército da Cisjordânia, isso teria efeito. Há outras ações que poderiam ser feitas. Se o exército sai da Cisjordânia, os colonos irão também com eles. Subirão nos caminhões que lhes facilitem e se transladarão desde suas casas subvencionadas na Cisjordânia para as suas casas subvencionadas em Israel. Da mesma forma como fizeram em Gaza, quando lhes foi dada a ordem. É provável que alguns fiquem, mas isso não importa, se querem seguir em um Estado palestino, isso é assunto seu. Portanto, há coisas muito concretas que podem ser feitas. Sei que não é questão de estalar os dedos e já está, mas não é pedir muito mais que o tipo de coisas que sucederam em outras partes quando a política das grandes potências mudou, sobretudo a dos EUA.
Frank Barat é coordenador do Tribunal Russel sobre Palestina e acaba de editar o livro de Noam Chomsky e Ilan Pappé Gaza in Crisis: Reflections on Israel’s War Against the Palestinians.
Traduzido do inglês para Rebelión por Sinfo Fernández