Nas estepes da Mongólia
Uma vitória transcendente do internacionalismo
“Na historiografia ocidental são raras as referências à batalha travada
junto ao rio Khalkhin-Gol entre Maio e Setembro de 1939. A severa
derrota ali infligida pelas tropas conjuntas da Mongólia Popular e da
União Soviética ao exército de Kwantung do Japão imperialista permanece
amplamente ignorada, tal como o significado da curta mas intensa guerra
de Khalkhin-Gol”.
Luís Carapinha* -
www.odiario.info
Na historiografia ocidental são raras as referências à batalha travada
junto ao rio Khalkhin-Gol entre Maio e Setembro de 1939. A severa
derrota ali infligida pelas tropas conjuntas da Mongólia Popular e da
União Soviética ao exército de Kwantung do Japão imperialista permanece
amplamente ignorada, tal como o significado da curta mas intensa guerra
de Khalkhin-Gol. Facto ainda mais sonante porque contrasta com a
vastíssima campanha ideológica de deturpação e revisão da história do
século XX, visando extirpá-la dos seus avanços revolucionários e
libertadores e denegrir e apagar o papel dos comunistas e da URSS, hoje
empreendida. Campanha de cariz anticomunista que ultrapassa todos os
limites imagináveis num passado recente, chegando ao ponto de pôr em
causa as próprias decisões do Tribunal de Nuremberga [1].
E, contudo, na véspera do início da II Guerra Mundial o desaire do
militarismo japonês naquela região remota da Mongólia oriental junto à
fronteira chinesa da Manchúria – que desde 1931 se encontrava sob a
ocupação do regime fascista nipónico – haveria de exercer uma
influência profunda no próprio curso da mais destrutiva guerra de
sempre na História.
Tóquio arquitectou a intervenção militar de 1939 na República Popular
da Mongólia [2] como uma «questão fronteiriça», socorrendo-se,
inclusive, de mapas topográficos falseados em que a linha da fronteira
mongol oriental aparecia deslocada mais de vinte quilómetros para
ocidente, alcançando o curso do rio Khalkhin-Gol. Um pretexto que
pretendia encobrir as reais motivações, de carácter expansionista, do
imperialismo japonês, nomeadamente os planos que apontavam em direcção
ao território da Sibéria e extremo oriente da URSS. Para o Japão, o
corredor mongol delimitado pelo rio Khalkhin-Gol, funcionando como
barreira natural, representava uma via privilegiada de acesso em
direcção à Transbaicália e ao coração da cobiçada Sibéria Oriental. E a
visão da tenaz que se fecharia sobre a URSS a partir de ocidente e
oriente era cara ao militarismo japonês e aos propósitos megalómanos
das potências fascistas do Eixo [3]. A argumentação urdida pelos
estrategas japoneses em Khalkhin-Gol seria totalmente desmascarada
depois do final da II Guerra Mundial no decurso do Tribunal Militar
Internacional para o Extremo Oriente que julgou os crimes de guerra do
imperialismo japonês.
Um ano antes, também invocando pretensões de carácter fronteiriço, o
Japão já tinha provocado um conflito militar com a URSS no extremo
oriente. A incursão de unidades japonesas, a partir do território
coreano, na zona da URSS da fronteira tripartida entre a URSS, China e
Coreia, desencadeada no final de Julho de 1938 e que ficou conhecida
como a batalha do Lago Khasan, acabou por ser repelida pelas forças
soviéticas comandadas pelo marechal Bliúkher ao fim de duas semanas de
combates encarniçados [4].
Quando, em Maio de 1939 as tropas japoneses cruzaram a fronteira da
Mongólia na zona de Khalkhin-Gol, o expansionismo japonês na Ásia
oriental era já uma realidade em pleno desenvolvimento. A Coreia fora
anexada ainda em 1910. Na Manchúria, depois da invasão do exército de
Kwantung (que integrava as mais numerosas e bem preparadas unidades do
Exército Imperial Japonês), o Japão orquestrou a criação, em 1932, do
estado títere de Manchukuo (designado Grande Império Manchukuo), à
frente do qual colocou como regente o último representante da decadente
dinastia chinesa Qing. A intervenção japonesa numa China há décadas
sujeita ao jugo e disputa das principais potências imperialistas
ampliou-se com a segunda guerra sino-japonesa, lançada sem declaração
prévia por Tóquio em 1937. Pequim e Nanquim – na altura a capital da
República da China – tombaram sob a ocupação japonesa, que ficou
marcada por monstruosas atrocidades. O Massacre de Nanquim constitui um
dos mais abomináveis crimes de guerra e genocídio do século XX.
«Guerra não declarada em Khalhin-Gol». É assim que Jukov, o mais
destacado comandante militar da URSS, que em Khalkhin-Gol celebraria a
sua primeira grande vitória militar como comandante de tropas – que lhe
valeu a primeira das quatro estrelas douradas de Herói da União
Soviética com que foi agraciado – qualifica o confronto militar de 1939
na Mongólia com o Japão imperialista, ao qual dedica um capítulo das
suas memórias [5].
A direcção soviética avaliou o ataque surpresa, em Maio de 1939, das
forças manchus e japonesas contra as tropas fronteiriças da Mongólia e
o seu avanço até à margem esquerda (oriental) do Khalkhin-Gol, não
simplesmente como uma mera escaramuça numa terra inóspita e,
escassamente, povoada por nómadas, mas como uma «perigosa aventura
militar» que tinha como principal alvo a própria URSS.
No início de Junho, Gueorgui Jukov, talentoso tenente-general, perto de
completar 44 anos, e vice-comandante da Região Militar da Bielorrússia,
é chamado a Moscovo e imediatamente enviado para a Mongólia a fim de
inteirar-se da situação e, se necessário, assumir o comando das
operações do 57.º Corpo de Forças Especiais soviéticas em defesa da
integridade territorial da Mongólia [6]. A 5 de Junho Jukov já se
encontra em Tamsak-Bulak, o quartel-general das forças soviéticas
(deslocadas da Região Militar da Transbaicália) na Mongólia, situado a
cerca de 120 quilómetros da linha da frente.
Avaliada a situação no terreno, que confirmou a superioridade numérica
do 6.º Exército japonês e das forças fantoches manchus, Jukov solicitou
ao Estado-Maior em Moscovo, o reforço de unidades de infantaria, de
tanques pesados, aerotransportadas e da aviação. O plano aprovado pelas
forças conjuntas soviéticas e mongóis previa o sólido fortalecimento
das posições defensivas na margem direita do rio Khalkhin-Gol e a
preparação de um contra-ataque demolidor, para desbaratar e expulsar o
inimigo de território mongol.
Durante mais de dois meses, a acção das tropas soviéticas – em conjunto
com as unidades mongóis comandadas por Choibalsan – foi crucial para
travar e repelir o ímpeto das sucessivas vagas ofensivas japonesas.
Estas apenas uma vez lograram transpor a margem direita do
Khalkhin-Gol, sendo forçadas quase de imediato a recuar, sofrendo
pesadas baixas. Porém, o inimigo continuava entrincheirado em
território da Mongólia.
Nas batalhas daquelas semanas, sob o escaldante calor estival da estepe
quase desértica, participaram dezenas de milhares de homens e um
elevado número de aviões, tanques, blindados e peças de artilharia de
cada lado. O poeta e escritor soviético, Konstantin Simonov – para quem
Khalkhin-Gol constituiu a estreia na frente de batalha e que, como
correspondente de guerra do jornal Krasnaia Zvezda (Estrela Vermelha),
cobriu toda a II Guerra Mundial, acompanhando as tropas soviéticas até
Berlim –, lembraria mais tarde, em «Longe no Oriente [7], a intensidade
das batalhas naquele Verão de 1939, referindo, por exemplo, jamais ter
presenciado, ao longo da sua vasta experiência de guerra, uma tal
quantidade de aviões de combate no ar em simultâneo – «várias centenas
de cada lado» –, como em Khalkhin-Gol.
Com as linhas de abastecimento a 700 quilómetros da frente de batalha,
o Exército Vermelho montou uma extraordinária operação logística por
terra, determinante para o sucesso da operação.
O impasse em Khalkhin-Gol foi quebrado a 20 de Agosto: antecipando-se
aos planos de um novo ataque japonês, as tropas comandadas por Jukov
lançaram uma manobra fulminante de larga escala, surpreendendo as
tropas ocupantes. Em três dias de intensos combates as forças japonesas
foram cercadas. A batalha prosseguiu até dia 31 quando as últimas
posições japonesas em território da Mongólia foram completamente
derrotadas. O 6º Exército Imperial do Japão acabara de sofrer uma
derrota humilhante em Khalkhin-Gol na véspera do início da II Guerra
Mundial. Com a ajuda da União Soviética, a soberania e integridade
territorial da Mongólia tinham sido defendidas. A 15 de Setembro,
Tóquio assinava o acordo de cessar-fogo e dois anos depois [8]
reconhecia o traçado da fronteira da Mongólia.
A dura lição recebida na Mongólia aplacou definitivamente a veleidade
agressiva do Japão em relação à URSS. A derrota categórica do Japão foi
um dos factores determinantes que impediu que a URSS fosse obrigada a
combater em duas frentes na guerra de 1941-45. A confirmação de que o
Japão não tencionava atacar a URSS, transmitida de Tóquio por Richard
Sorge (que avisara a direcção soviética para o início da operação
Barbarossa pela Alemanha nazi, desencadeada a 22 de Junho de 1941)
permitiu, nos dias especialmente críticos do Outono de 1941, a
transferência para os arredores da capital soviética de importantes
reforços militares provenientes do extremo oriente – entre os quais
algumas das unidades que tinham combatido em Khalkhin-Gol.
A derrota nazi na batalha de Moscovo, comandada por Jukov – impedindo a
queda da capital e contendo a progressão alemã –, marcaria o início da
contra-ofensiva da URSS e da reviravolta na II Guerra cujo destino
seria decidido em Stalingrado.
No caminho da imortal vitória do povo soviético sobre o nazi-fascismo,
que configurou o mundo e a ordem internacional que chegaram aos nossos
dias, Khalkhin-Gol constituiu, como recorda Jukov [9], uma valiosa
escola de internacionalismo e experiência de combate.
O seu exemplo não foi em vão e não será esquecido.
Notas:
[1] Veja-se os exemplos da vergonhosa resolução anticomunista do
Conselho da Europa (2006) e da recente moção aprovada pela Assembleia
Parlamentar da OSCE que coloca em plano de igualdade a Alemanha nazi e
a União Soviética. O processo de grotesca mistificação da história e
branqueamento dos crimes do fascismo revela-se também – assumindo
contornos ainda mais inquietantes – na reabilitação oficial ou
semi-oficial das legiões nazis e forças fascistas e nacionalistas que
colaboraram com o ocupante nazi que se verifica – contando com a
conivência silenciosa de Bruxelas – em diversos países da UE, com
especial destaque para as três repúblicas bálticas e também na Ucrânia.
[2] Depois da segunda e definitiva declaração da independência e a
vitória da revolução, em 1921, sob a influência e com o apoio da gesta
revolucionária russa e da URSS, constituída no final de 1922, a
República Popular da Mongólia foi proclamada em 1924.
[3] Em 1936, o Japão assinou com a Alemanha nazi o Pacto Anti-Comintern
dirigido contra a URSS e o movimento comunista internacional.
[4] Cabe aqui igualmente recordar que depois da revolução de Outubro,
em 1918, as tropas japonesas desembarcaram em Vladivostok e
participaram na ocupação da região de Primórie no extremo oriente da
Rússia, que terminou apenas após a vitória do poder soviético na guerra
civil russa.
[5] A versão electrónica da 12.ª e mais recente edição das memórias de
Jukov – Jukov G. K., Vospominania i Razmychlenia (Memórias e
reflexões), em dois tomos, Moscovo, Olma-Press, 2002 – está disponível
em http://militera.lib.ru/memo/russian/zhukov1/index.html
[6] O tratado de amizade e aliança entre Moscovo e Ulan-Bator, renovado
em 1936, previa a ajuda militar da URSS à Mongólia em caso de agressão
externa.
[7] Konstantin Simonov, Sobranie Sochinenia (Colectânea de Obras), tomo 10, Moscovo, Khudojestvennaia Literatura, 1984.
[8] Em Abril de 1941 a URSS e o Japão assinaram um tratado de não-agressão.
[9] Diferentemente da guerra de 1939-1940 na Finlândia.
Este texto foi publicado em Avante nº 1.875 de 5 de Novembro de 2009
* Analista de política internacional