terça-feira, 21 de setembro de 2010

Por que a mídia e a oposição resolveram jogar sujo



Por Vinicius Wu
Revisitemos as declarações de Serra e de diversos articulistas da grande mídia simpáticos à sua candidatura ao longo de 2009 e início deste ano. Sem esforço, perceberemos que sua estratégia eleitoral baseava-se na tese do “contraste de biografias”. Inebriado por sua vaidade, Serra alimentou a certeza de que a comparação de sua trajetória política com a de Dilma seria a senha para a vitória. Ocorre que o povo brasileiro rejeitou a fulanização do debate. Optou por contrastar os projetos de Brasil disponíveis e sepultou as pretensões tucanas nestas eleições.
Mas o drama da oposição não termina aí. Afinal, estamos diante de um processo ainda mais complexo, que está na origem da impotência política da oposição hoje. Diante do atual cenário, tiveram de optar entre a resignação diante da derrota e o surto golpista que assistimos nos últimos dias. Compreender os motivos que desencadearam este processo é o que buscaremos nas próximas linhas.
Crise do neoliberalismo e mudança do léxico político brasileiro
As eleições de 2010 encerram a profunda alteração do léxico político brasileiro em curso desde o embate eleitoral de 2002. A crise do paradigma neoliberal possibilitou uma mudança radical dos termos e dos conceitos através dos quais se organiza a luta política no país. Se nas eleições de 1994 e 1998 o debate eleitoral orbitava em torno do tema da “estabilidade”, desde 2002 vivemos um profundo deslocamento do debate em direção aos temas do desenvolvimento, da inclusão social e distribuição de renda. Ou seja, a disputa política passou a se desenvolver a partir de temas estranhos ao receituário neoliberal. Esta foi a grande derrota política do bloco conservador proporcionada pela vitória de Lula em 2002.

Portanto, o debate político nacional nos últimos anos passou por uma verdadeira metamorfose que desencadeou: 1. Uma mudança de problemática: da manutenção da estabilidade econômica e do ajuste fiscal para a busca do desenvolvimento e da justiça social; 2. uma alteração da lógica argumentativa: a defesa das privatizações e do enxugamento do Estado cedeu lugar ao combate às desigualdades e ampliação do alcance das políticas públicas e; 3. uma mudança de conceitos: crescimento econômico, papel indutor do Estado, distribuição de renda, cidadania etc. passam a integrar, progressivamente, o discurso de todas as correntes políticas do país.
Este é o grande legado político da “Era Lula” e diante do qual as respostas da direita brasileira foram absolutamente insuficientes até aqui.
O novo protagonismo dos pobres
Paralelamente ao processo supramencionado, foi sendo desenvolvida uma nova consciência das camadas populares no país, que identificaram em Lula a expressão viva de seu novo protagonismo. O operário do ABC paulista alçado à condição de Presidente mais popular da história da República é a síntese perfeita da nova condição política dos “de baixo”. Ao afirmar recentemente que “nós” somos a opinião pública, o Presidente Lula não está cedendo a nenhuma tentação autoritária, como desejam alguns mal intencionados articulistas da grande mídia. O que está em jogo é o fim da tutela dos “formadores de opinião” sobre a formação da opinião nacional. Este é o motivo do desespero crescente da mídia monopolista do centro-sul do país.

Há uma revolução democrática em curso no Brasil e ela altera profundamente a forma como os pobres se relacionam com a política. O país vivencia uma inédita e profunda reestruturação de seu sistema de classes. As implicações deste processo para o futuro da nação ainda não são mensuráveis. A grande mídia e a oposição não compreenderam que o país entrou em um novo período histórico e, desta forma, correm o risco de ficarem falando sozinhas por um bom tempo.
As pessoas não estão votando em personalidades, como supunham os próceres da campanha Serra. Estão votando no futuro – no seu futuro e no futuro do país. A disputa eleitoral de 2010 não ficará marcada pelo “confronto de biografias”. Esta é a eleição da aposta no “Devir-Brasil” no mundo, como sugere Giuseppe Cocco. O país recompôs a esperança em seu futuro e deseja ser grande. Os brasileiros querem continuar mudando e, principalmente, melhorando suas vidas.
E o eleitor brasileiro não está “inebriado pelo consumo” como afirmou, revoltado, um dos mais preconceituosos articulistas da grande mídia. Os seres humanos fazem planos, sonham, imaginam uma vida melhor para si e para seus filhos. As pessoas estão sim – e é absolutamente legitimo que o façam – votando com a cabeça no seu próximo emprego; no seu próximo carro ou eletrodoméstico; no seu próximo empreendimento; na faculdade dos seus filhos; em seus filhos… É uma opção consciente. Não querem retroagir, preferem a continuidade da mudança conduzida por Lula, por mais que esperneiem os articulistas sempre bem pagos da grande mídia.
A “Conservação” da mudança
Talvez, nem o próprio Presidente Lula tenha se dado conta de uma outra – e também decisiva – derrota imposta ao bloco conservador. Trata-se da apropriação e ressignificação de um dos conceitos mais caros ao neoliberalismo. Lula tomou para si a primazia da estabilidade. A defesa da estabilidade (quem diria?!) passa ser tarefa da esquerda brasileira. Mas não a estabilidade neoliberal, e sim uma nova estabilidade; a da continuidade da mudança.

O slogan da campanha Dilma não poderia ter sido mais adequado: “Para o Brasil seguir mudando”. Esta é a perfeita síntese da opinião popular no atual período; continuar mudando para que permaneçam abertas – e se ampliem – as possibilidades de mobilidade social, de emancipação e prosperidade econômica. A mensagem é simples e foi acolhida pela maioria do povo brasileiro: “conservar” a mudança e não retroagir.
A “venezuelização” do comportamento da grande mídia
Derrotados em seus próprios conceitos; perplexos diante de uma ampla maioria que lhes vira as costas (só 4% da população rejeitam Lula); impotentes diante de uma nova realidade, que se impõe diante de seus olhos, só lhes resta o golpe, que não tem força pra dar. E se não podem “restaurar a democracia” à força, resta-lhes, então, trabalhar para que a disputa política no próximo período se dê em outros termos. Como imaginam que estarão livres da força de Lula a partir de Janeiro de 2011, iniciam uma virulenta campanha de difamação, deslegitimação e questionamento da autoridade daquela que deverá ser a primeira Presidenta do país.

Desejam fazer do Brasil uma nova Venezuela, onde posições irreconciliáveis travam uma luta sem tréguas, instaurando um clima de instabilidade e insegurança generalizado. Querem que oposição e governo não dialoguem. Preferem a radicalização ao entendimento. Concluíram que esta é a única maneira de derrotar as forças populares no futuro. Precisam retirar de nossas mãos o primado da estabilidade. Querem, de fato, venezuelizar o Brasil.
Mal se deram conta de que quase ninguém sairá vencedor em Outubro confrontando-se com Lula. Em todas as regiões do país, candidatos oposicionistas bem sucedidos resolveram absorver Lula e o sucesso de seu governo. Raros serão os candidatos oposicionistas que vencerão com discurso de oposição. A “venezuelização” que pretendem esbarrará na força política que se assenta na emergência de um novo Brasil, que estamos a construir, e na fé de nosso povo em um futuro diferente daquele que imaginaram as oligarquias deste país.
Twitter: @vinicius_wu / Blog: www.leituraglobal.com

O Legado que mantém Florestan Fernandes vivo


Florestan FernandesFlorestan Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e que contém contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância para as Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande sociólogo no Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das Ciências Sociais em nível internacional.
Há quinze anos, a morte tirou Florestan do nosso convívio. Já faz tanto tempo, e Florestan continua fazendo tanta falta, com sua lucidez, sua coragem, sua inteligência e sua integridade, buscando sempre encontrar a raiz dos grandes problemas postos no seu tempo, tentando problematizá-los de maneira mais consistente tanto teórica quanto politicamente, apontando assim novos caminhos para enfrentá-los, tendo sempre como norte as possibilidades da construção de uma sociedade nova, socialista. Florestan fala de “utopias igualitárias e libertárias, de fraternidade e felicidade entre os seres humanos”.
Guardamos dele sua lembrança e seu exemplo. Acima de tudo, porém, podemos mantê-lo presente (a nós e, principalmente, às nossas lutas) por meio do legado que nos deixou com os seus escritos. Aí suas idéias, suas formulações e seus embates – teóricos e políticos – continuam vivos, atuais, presentes, motivadores. Aí podemos continuar a falar de Florestan no tempo presente, e assim recolher seu ensinamento para enriquecer o pensamento e para clarificar o encaminhamento das lutas que o presente requer.
Florestan Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e que contém contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância para as Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande sociólogo no Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das Ciências Sociais em nível internacional.
Transformou em profundidade o padrão do trabalho científico da Sociologia no Brasil, configurando o que para ele constituía a Sociologia crítica. De acordo com Florestan, a produção desta Sociologia resulta da conjugação de dois esforços simultâneos. Por um lado, requer trabalho rigoroso e metódico de pesquisa balizada por padrões propriamente científicos. Por outro lado, ciente de que a neutralidade científica é um mito, requer que o próprio trabalho científico assuma compromisso ético e político com a transformação social em favor dos oprimidos e humilhados. Assim, para Florestan Fernandes, a Sociologia crítica é ciência que, no movimento mesmo de fazer-se como ciência, é engajada.
A obra de Florestan Fernandes é vasta e complexa. Há, porém, uma linha de investigação, que atravessa toda a sua produção madura, que confere conteúdo histórico, sociológico e político à ótica dos dominados e à perspectiva de transformação social, das quais Florestan jamais se afastou. É a investigação que o leva à formulação do seu conceito de capitalismo dependente como uma forma específica do desenvolvimento capitalista. Este conceito e sua teorização constituem uma contribuição teórica e metodológica importantíssima de Florestan Fernandes para a teoria do desenvolvimento capitalista. E abriga conseqüências políticas da maior relevância. Levá-las em consideração pode afetar significativamente o posicionamento quanto a políticas voltadas para a transformação social mais efetiva e mais profunda. Trata-se, portanto, de questões que permanecem importantes no cenário político.
O grande problema posto era o chamado “desenvolvimento”. Era apresentado como um problema econômico a demandar equacionamento político. Tal como estava posto, esse problema continha também um quadro supostamente teórico, a oferecer sentido às políticas supostamente necessárias para “resolver” o problema que desse modo era proposto: as chamadas “teorias” da modernização ou do desenvolvimento.
À época, essas “teorias” eram bastante discutidas e criticadas no âmbito acadêmico, mas Florestan foi dos primeiros a questioná-las mais a fundo, em pesquisa que o levou a teorizar o capitalismo dependente. Ao tempo em que Florestan finalizava a sua concepção do capitalismo dependente como um conceito, e logo depois que ele tornou pública a sua formulação, a chamada “escola da dependência” ensaiava seus primeiros passos, mas estancava a meio caminho entre as “teorias” do desenvolvimento/ modernização e a teorização de Florestan sobre o capitalismo dependente. Na verdade, os dependentistas se aproximavam de uma parte das descobertas/construções teóricas e metodológicas de Florestan, mas as despiam de alguns de seus atributos essenciais, exatamente aqueles que colocavam em questão o desenvolvimento desigual e combinado da expansão do capitalismo naquele momento.
Para teorizar o capitalismo dependente, Florestan se opõe às noções de desenvolvimento e de subdesenvolvimento oriundas das concepções evolucionistas e deterministas das chamadas “teorias” da modernização. Nega essas duas noções e, para analisar, compreender e ser capaz de explicar a condição da nossa sociedade (e das sociedades que Florestan identificava na sua teorização como sendo do mesmo tipo que a nossa), recorre às formulações sobre o imperialismo.
Ao entender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo da perspectiva dos povos e das regiões que a expansão capitalista mundial incorpora, Florestan consegue dar conta de que esse processo mesmo de incorporação implica necessariamente submeter esses povos e essas regiões, sob formas historicamente diferenciadas, aos desígnios e aos interesses maiores do capital que deste modo se realiza e se amplia.
A compreensão do capitalismo dependente como especificidade da expansão do capitalismo em sua fase monopolista permite entender que o “desenvolvimento” que essa expansão propõe para as regiões para as quais se dirige é desenvolvimento desse capitalismo monopolista e que significa incorporar essas regiões submetendo-as. Esta concepção do capitalismo dependente em Florestan Fernandes contém ainda dois desdobramentos muito importantes. Primeiro, que os setores dominantes locais das regiões tornadas capitalistas dependentes têm participação ativa e decisiva para a concretização da política que visa aquele “desenvolvimento”. Para Florestan, eles são parceiros, menores e subordinados, mas parceiros, do grande capital em expansão pelo mundo. São intermediários, mas enquanto intermediários são imprescindíveis, e contam com um retorno para si dos ganhos desse modo obtidos pelo capital em expansão. Esta lógica implica uma super-exploração dos trabalhadores e da massa da população das regiões capitalistas dependentes.
Segundo, que a democracia possível sob o capitalismo dependente é sempre uma democracia restrita, a tal ponto que é mais correto designá-la como uma autocracia, na qual a grande maioria do povo fica excluída dos direitos, direitos que supostamente uma democracia deveria estender a todos os cidadãos. Desse modo, a super-exploração implica também como conseqüência uma super-dominação do conjunto dos setores subalternizados da população nessas regiões.
Algumas vezes se tenta separar o Florestan Fernandes cientista e o Florestan Fernandes político. É preciso considerar, porém, que a descoberta da verdade da dominação, da submissão, da subalternização ou da exploração, é, como tal, profundamente questionadora da realidade social estruturada sobre esses processos de dominação, de submissão, de subalternização ou de exploração. De tal modo que a exposição desses processos é em si mesma profundamente política, e tanto mais eficaz na crítica que contém quanto mais clara e sistematicamente fundamentada.
Estas são análises estruturais, nas quais, no entanto, é possível encontrar a profundidade das raízes das tendências e dos comportamentos políticos das classes dominantes das regiões capitalistas dependentes. Florestan, no entanto, está sempre atento também às conjunturas e sabe perfeitamente que para ser concreta uma análise precisa conjugar os determinantes estruturais com os condicionantes conjunturais. Era desse modo que ele procurava trabalhar.
Esse tipo de pesquisa científica, abrangente e crítica, bem como o magistério que o acompanhava de perto, onde mais poderiam ser realizados a não ser na universidade pública? Em 25 de abril de 1969, com base no Ato Institucional nº 5, a ditadura imposta no Brasil pelo golpe civil-militar de 1964 excluiu Florestan Fernandes do serviço público em todo o território nacional. Cortava assim irremediavelmente a continuidade de pesquisa científica importante, conduzida por ele e por seus assistentes e colaboradores mais próximos, pesquisa que era resultado de trabalho longamente acumulado em instituição acadêmica superior que, enquanto instituição pública de ensino superior, se supunha resguardada em sua autonomia pedagógica, didática e de pesquisa. Mas tal suposição o arbítrio da ditadura revelou ser equivocada.
Com essa exclusão, Florestan perdeu o locus próprio para exercer o seu ofício como cientista. Precisou redimensionar suas atividades. Continuou suas pesquisas, mas desde então sem a interlocução permanente e sistemática de seus colegas e colaboradores e de seus estudantes, e sem apoio institucional, portanto de forma mais dispersa e descontinuada. Mesmo assim, retomou o seu trabalho individualmente, seguiu pesquisando e publicando os resultados de seus estudos, produzindo análises sempre lúcidas, perspicazes e iluminadoras.
Um dos traços marcantes da vida e da trajetória de Florestan foi sempre a defesa da educação pública, gratuita, laica, de qualidade, para todos. Na primeira Campanha em Defesa da Escola Pública, Florestan foi muito atuante e combativo e sua liderança foi reconhecida como fator importante da ampliação e da consistência da Campanha. Mas não apenas em momentos de grande mobilização como aquele, Florestan Fernandes esteve sempre presente com seu apoio claro, público e firme a todas as reivindicações e lutas dos movimentos dos professores, dos educadores e dos estudantes, de todos os níveis, em defesa da educação pública e gratuita, da elevação da sua qualidade e da sua democratização.
Como Deputado Federal Constituinte, Florestan foi o interlocutor privilegiado que o Forum Nacional em Defesa do Ensino Público e Gratuito na Constituinte teve na Subcomissão e na Comissão de Educação do Congresso Constituinte. Sua atuação para a melhor acolhida às propostas do Fórum foi importantíssima. Mas Florestan dialogava diretamente com o Forum e com os movimentos que o constituíam e chegava mesmo a ajudar, com sua análise sempre atenta e perspicaz, a nossa gestão das dificuldades criadas pelos inevitáveis atritos iniciais e conflitos eventuais entre os encaminhamentos de tantos movimentos de setores diferenciados no interior do Forum. Sem o Deputado Federal Constituinte Florestan Fernandes as lutas pela defesa da educação pública na Constituinte certamente teriam sido ainda muito mais difíceis do que foram.
A educação foi sempre um tema muito caro a Florestan, tema sobre o qual ele elaborou uma extensa e fecunda produção. Se há um fundo comum a essa produção, ele se forma em torno da educação pública gratuita de alta qualidade e altamente democratizada. Afinal, a escola pública e as bibliotecas públicas foram fundamentais para a vida de Florestan, aquele jovem de origem lumpen que se viu obrigado pelas necessidades de sobrevivência a trabalhar desde os seis anos de idade e que vislumbrou na educação a perspectiva de, por meio de seu próprio esforço, determinação e disciplina, poder transformar a sua condição social para, como ele dizia, “tornar-se gente” e ser reconhecido “como gente”. Leitor voraz, com sua inteligência e sua aplicação permanente à busca de saber, Florestan perseguiu, com determinação obstinada os seus objetivos através da educação e a partir do campo da educação tornou-se Florestan Fernandes, reconhecido nacional e internacionalmente como grande cientista, como grande professor e como destacado intelectual defensor das grandes causas dos dominados e subalternizados, dos oprimidos e humilhados.

* Mirim Limoeiro Cardoso é professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.