segunda-feira, 13 de maio de 2013

A armadilha fenícia




Heródoto, ao relembrar suas conversas com os anciões de Tiro, uma das capitais da antiga fenícia, assegurou a seu público que os comerciantes que ocupavam a atual costa libanesa haviam chegado naquela parte do mundo 28 séculos antes de Cristo. Teriam migrado das praias do mar vermelho, na península arábica, em direção ao Mediterrâneo, assim como fizeram diversas tribos árabes. Conhecido pelos livros escolares como o Pai da Historia, o autor grego é visto no Líbano de forma um pouco mais peculiar. Aqui ele é tido por muitos como um desonesto disseminador de boatos, inimigo do estado e da sociedade. Não são poucos os libaneses que odeiam serem associados aos árabes que os cercam.
Apesar do desgosto, mais uma vez o destino do Líbano parece estar sendo decidido na cidade orgulhosamente árabe de Damasco. Os recentes bombardeios de Israel à capital síria reforçam tal fato. Tentando desassociar seu país da guerra civil ao norte, Tel Aviv foi categórico no comentário: Nosso ataque não tem nada a ver com as tentativas de derrubar o ditador Bashar Al-Assad, estávamos apenas atacando armas iranianas de última geração que se dirigiam ao Líbano.
A ofensiva aérea israelense, que pode muito bem jogar Líbano, Síria e Israel em mais uma guerra, parece possuir uma complexidade maior do que apenas um bombardeio a mercadorias importadas do Hezbollah, grupo amado Libanês que a décadas disputa a hegemonia do sul de seu país com o estado sionista. Israel anuncia a tempos que pretende impedir qualquer forma os envios de armas da Síria ao grupo fundamentalista xiita, porem a dinâmica dos ataques não se encaixam muito bem nesta narrativa. Se os alvos eram misseis do Hezbollah, porque foram atacadas também bases da Guarda Republicana Síria? Alem do mais, é crível que o governo do Baath, em meio a uma guerra de vida ou morte contra seus oponentes armados, enviaria o supra sumo de seu arsenal para o vizinho?
Enquanto tais perguntas seguem sem respostas, os milicianos do Hezbollah parecem estar se engajando cada vez mais na defesa incondicional do governo de Bashar. Adepto de um dos expoentes da religião xiita (o Alawismo) e aliado prioritário do Irã, que por acaso também é patrono do grupo libanês, a possível queda do regime da família Assad tem sido tratado pelo Hezbollah como uma derrota inaceitável. Já são centenas os mártires do grupo nas batalhas das cidades Sírias próximas ao Líbano, onde o governo de Damasco parece ter terceirizado a seus aliados libaneses a luta contra os insurgentes. A guerra prioritária do Hezbollah parece ser a guerra pela sobrevivência de Assad, o que, pela lógica, faria a guerra central de Israel ser a guerra pela derrubada do regime sírio.
Tal raciocínio teria todo sentido se Israel não estivesse mobilizando seus diplomatas pelo mundo em uma campanha contra o armamento dos rebeldes na Síria. Segundo a perspectiva israelense, apesar dos amigos inconvenientes no Líbano, o regime Assad é um companheiro de respeito quando o tema é garantir paz e tranquilidade nas colinas de Golan, território sírio ocupado por Israel a mais de quatro décadas. Dizem as mas línguas que os revolucionários da Síria, baderneiros pela própria natureza, não dariam tranquilidade ao estado sionista uma vez que houvessem derrubado o governo de Damasco.
Zona livre
Segundo o Major-General Yair Golan, chefe do Comando Norte de Israel, a resposta para tal ameaça é simples, cabe a Tel Aviv “criar uma zona militar no lado de lá da fronteira”; invadir o sul da Síria para impedir qualquer rebelde intruso de chegar perto aos territórios que o General chefia. Para o mesmo, o modelo seria a zona tampão criada por Israel entre 1985 e 2000 no sul do Líbano. Curiosamente, foi a partir da luta contra aquela mesma zona que o Hezbollah tornou-se uma potencia regional.
Os bombardeios de Israel a Damasco podem ter tido como objetivo abrir o terreno para uma futura ocupação militar voltada a conter a insurreição. Mais o oposto também pode ser verdadeiro, sendo o ataque uma ajuda a luta dos rebeldes contra o regime de Bashar, ou ainda, apenas um bombardeio ao Hezbollah, sem relação alguma com o levante sírio. Talvez o mais correto seja uma equação que envolva as três hipóteses ao mesmo tempo. A única certeza é que um envolvimento maior de Israel na guerra, segundo o próprio Hezbollah, levaria a milícia libanesa a assumir uma política ainda mais intervencionista no país vizinho.
Pelo menos foi assim que anunciou Hassan Nassarallah, dirigente máximo do grupo libanês, no seu canal de televisão. Segundo Nasserallah, talvez o único dirigente da região conhecido por cumprir suas ameaças publicas, o Hezbollah é um “amigo de verdade” do povo sírio, e por os ter como tanta estima, não os deixarão sair de seu rumo atual.
Persona non grata
As declarações de carinho do Hezbollah aos sírios, porem, parecem ter pouco eco nas cidades e bairros dirigidos pelo grupo no Líbano. São cada vez mais frequentes os ataques a refugiados do país vizinho nos territórios controlados pela milícia. Entre os ativistas exilados que continuam tentando apoiar a revolução que ocorre em seu país natal, as áreas do Hezbollah tornaram-se praticamente zonas proibidas.
A maioria destes jovens, por motivos de segurança, tem buscado refúgio nos bairros cristãos controlados pelas milícias da Falange, um dos principais grupos fascistas que controlam pedaços de Beirute. Inspirada na juventude nazista após a viagem de seu fundador às Olimpíadas de 1936 em Munich, a Falange é mundialmente conhecida por ter executado, em conjunto com Israel, os massacres aos refugiados palestinos dos campos de Shabra e Chatila. Arautos do caráter fenício de seu povo e adversários históricos do governo “árabe” da Síria, os falangistas têm sediado (mesmo que com pouco entusiasmo) os ativistas sírios em suas zonas. Apesar dos esforços, até os mais isolacionistas dos libaneses não conseguem se desmembrar dos acontecimentos no país vizinho.
Já nos bairros controlados pelo Partido Nacionalista Socialista Sírio, cuja bandeira carrega uma versão estilizada da suástica em seu centro, os sírios que não gostam de Bashar são classificados como persona non grata. Defensores de teses heterodoxas, entre as quais a ilha de Chipre integraria uma suposta “Grande Síria” histórica que eles próprios sonham em dirigir, os Nacionalistas Socialistas conseguem ser mais barulhentos que o Hezbollah na defesa do governo de Damasco. No mosaico político de Beirute, onde diferentes milícias disputam milímetro por milímetro as ruas da capital, a sensação de uma guerra iminente a tempos não latejava com tanta força.
Mais uma vez, os refugiados
Talvez o que mais reforça esta ideia é a onda de refugiados sírios que tem-se abrigado no país durante os últimos dois anos. Segundo dados oficiais do Alto Comissariado da ONU, são mais de 450 mil refugiados cadastrados. Os números extra-oficiais falam em mais de um milhão.
Não são poucos os libaneses que tem alertado aos paralelos entre a onda de refugiados palestinos ao país, que supostamente empurrou-o a guerra civil entre 1975 a 1990, e a atual maré Síria. Em um país fraturado de apenas 4 milhões de habitantes, o influxo massivo dos sírios está desequilibrando a correlação de forças interna entre as facções do país. A solução apresentada a tal problema pelo governo libanês foi bastante simples. Está proibido no Líbano a construção de campos para os que fogem às barbáries da guerra. A ideia é deixar claro aos refugiados que eles não são bem-vindos.
A forma encontrada pelo governo para expressar tal sentimento, porém, tem somente empurrado os sírios para debaixo do tapete. A falta de tendas da ONU apenas os espreme nas cidades, onde grupos de famílias inteiras alugam poucos metros quadrados dos cômodos disponíveis. Há casos de famílias de refugiados que foram morar em prisões abandonadas, estábulos ou qualquer coisa que os possa proteger do frio e da chuva.
Para além do descaso governamental, estes refugiados lidam não só com o ambiente hostil da sociedade libanesa, pouco simpática a seus vizinhos, como também aos ataques físicos dos agrupamentos políticos que precisam assassinar sírios para se reafirmarem socialmente.
Um país inviável
Ataques a civis da Síria no Líbano, verdade seja dita, esta longe de ser uma nova realidade. No período anterior à revolução, o espancamento ou assassinato de grupos de trabalhadores migrantes, até então restritos as zonas cristãs, eram notícia comum. A novidade agora é sua democratização entre as diferentes seitas do país.
Devido a falta de mão de obra barata, o Líbano é historicamente um polo de atração de trabalhadores sírios. Não que os libaneses estejam vivendo o sonho do pleno emprego, a ausência de mão de obra se da menos pela grandeza da demanda que o fato de boa parte da juventude libanesa, em busca de trabalho descentes, foge assim que puder de seu próprio país.
Durante o século 19, quando o capitalismo foi introduzido na região que viria ser o Líbano, a economia passou a se basear essencialmente na exportação de seda à Europa e a importação de todo e qualquer outro bem. Os entornos do porto de Beirute tornaram-se o centro de onde esta capital se acumulou, deixando o resto da região na miséria.
A cidade portuária ganhou estados de porta de entrada e saída para o interior da Síria, e a partir dali, o resto do Oriente. Após a quebra da indústria da seda no início do século 20 e a danosa separação econômica entre Líbano e Síria, a economia do país reduziu-se ao setor de serviços, principalmente financeiros, importando praticamente tudo que podia. Em um país pequeno em que nada se produz, o desemprego tornou-se uma doença crônica, sendo o único verdadeiro patrimônio nacional as redes familiares pre-estabelecidas pelo mundo, que facilitam a imigração.
Numa tentativa de justificar a desastrosa estrutura socioeconómico do país, que na prática, expulsa seus jovens, desenvolveu-se a ideia de um gene especificamente atribuído ao povo fenício, que os transforma em grandes exploradores do mundo, e não imigrantes empobrecidos. Esqueceram-se também que o Monte Líbano, região onde o gene fenício é supostamente mais latente, nunca foi colonizado por tal povo, que se restringia a costa do mediterrâneo. Em meio a uma sociedade voltada quase inteiramente a negação de seu entorno, é compreensível a má fama de Heródoto.
(Uma versão resumida deste artigo foi publicada em O Estado de S. Paulo, 13 mai. 2013.)