terça-feira, 13 de maio de 2014

13 de maio: viva 20 de novembro! | Revista Fórum Semanal


13 de maio: viva 20 de novembro!





13 de maio: viva 20 de novembro!
 



Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
começou-se a lembrar de um lutador exemplar contra o escravismo no
Brasil, Luiz Gama, que até recentemente era lembrado por poucos. Ele não
foi escravo por doze anos, foram “apenas” oito. Mas sua história é
exemplar

Por Mouzar Benedito

O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”
13 de maio é data boa para se lembrar de outra, 20 de novembro.

A primeira representa a história oficial, a libertação
dos escravos como se fosse uma simples canetada da Princesa Isabel, sem
mais nem menos.
A história oficial do Brasil é cheia dessas coisas. A independência aconteceu com um mero grito, e assim por diante.
Os lutadores preferem, no caso da libertação dos
escravos, ter como data símbolo dessa luta antiescravista, o dia do
assassinato de Zumbi, 20 de novembro. É justo.
Ignora-se as lutas que aconteceram para chegar a uma
determinada conquista. O Brasil ficou independente em 7 de setembro de
1822, e pronto. Felizmente, essas coisas estão sendo revistas. Na Bahia,
não é à toa que 2 de julho aparece com frequência e é comemorado como
dia da “Independência da Bahia”. É que nessa data, em 1823, quase um ano
depois da data oficial da independência, os portugueses que resistiam à
independência brasileira naquele estado, foram definitivamente
derrotados.
No Piauí, a derrota dos portugueses foi concluída em 13
de março de 1823, na Batalha do Jenipapo. O Pará “aderiu” ao Brasil
definitivamente em 15 de agosto de 1823. No Maranhão também, a
independência foi conquista nesse ano.
Mas voltando ao 13 de maio, a data comemorada durante
muito tempo como a da “Libertação dos Escravos” já não é bem aceita.
Para começar foi uma libertação não tão libertária assim. Até nos
Estados Unidos, país que não nos serve de exemplo para muitas coisas, a
libertação dos escravos foi mais correta: cada escravo libertado ganhava
uma mula e um pedaço de terra para tocar a vida. Aqui, foram
simplesmente jogados nas ruas.
Mesmo assim, muitos que lutavam pelo fim da escravidão, como José do Patrocínio, louvaram a Princesa Isabel por isso.
Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
que conta a história de um negro livre sequestrado e vendido como
escravo no sul dos Estados Unidos, começou-se a lembrar de um lutador
exemplar contra o escravismo no Brasil, Luiz Gama, que até recentemente
era lembrado por poucos. Ele não foi escravo por doze anos, foram
“apenas” oito. Mas sua história é exemplar.
Sua mãe, Luíza Mahin, era uma negra livre, retinta,
bonita, lutadora. Pouco se sabe dela, mas participou de todas as
revoltas negras das primeiras décadas do século XIX na Bahia. De origem
nagô, sabia ler e escrever em árabe, e era quituteira, vendia seus
quitutes por toda Salvador. Assim, servia de elo entre revoltosos. Teve
um envolvimento com um homem de família fidalga portuguesa e daí nasceu
Luiz Gama. Quando ocorreu a Sabinada, revolta liderada pelo médico
Francisco Sabino Vieira, em 1837, proclamando a “República Bahiense”,
ela teve papel importante. Com a derrota, muitos militantes foram presos
e mortos. Para não ser pega, deixou o pequeno Luiz, então com 7 anos de
idade, com o pai dele e fugiu para o Rio de Janeiro.
Vendido pelo pai
Até os 10 anos de idade, ele foi bem tratado pelo pai,
que aí se revelou um pulha: para pagar dívidas contraídas em jogos,
vendeu o filho como escravo, para um negociante paulista. Além de ser um
ato extremamente canalha, era totalmente ilegal: não era permitido
escravizar pessoas nascidas de pais livres, e além disso era proibido
levar escravos da Bahia para outros estados, por causa do espírito
revoltoso dos negros baianos. Temiam que eles “contaminassem” escravos
de outros estados.
Pois bem, primeiro em Campinas, depois em São Paulo, foi
escravo até completar 18 anos. Tinha aprendido a ler com um estudante
de Direito que foi morar na casa do seu “senhor” e ensinou os filhos do
próprio escravocrata. Aí, reivindicou a liberdade, mas o “senhor” não
concedeu. Conseguiu a liberdade, não se sabe como, já que em 1891, o
então ministro da Fazenda Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação
sobre a escravidão no Brasil, alegando que ela havia sido uma mancha na
história do Brasil. E foi mesmo. Mas o motivo era que ele queria evitar
que antigos donos de escravos reivindicassem indenização com base
nesses papéis que valiam como títulos de propriedade. Por isso, perdemos
registros históricos importantes.
Para não ser perseguido pelo ex-senhor, ele sentou praça
na polícia, mas seu espírito libertário não condizia com a profissão,
acabou expulso. Arrumou trabalho como amanuense (copista de documentos
oficiais – na época não havia outra forma de fazer cópias de
documentos), no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça, que tinha
uma vasta biblioteca jurídica. Luiz Gama leu tudo, passou a entender de
leis mais do que quase todos advogados, e se tornou rábula, quer dizer,
advogado não formado, o que na época era permitido.
E dedicou todo o seu conhecimento à libertação de
escravos, pela via jurídica. Conseguiu desta forma libertar mais de
quinhentas pessoas. E atuava também como jornalista e poeta, tornou-se
um republicano radical, mas descobriu que os republicanos não eram tão
republicanos assim: não aceitavam incluir em suas propostas o fim do
escravismo.
Era sempre ameaçado de morte, mas não vacilava. Ia para
certos locais defender escravos sabendo que podia ser morto, mas ia. Num
júri no interior paulista, defendendo um escravo que matou o senhor que
o maltratava, disse a sentença que provocou um grande rebuliço: “O
escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em
legítima defesa”.
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Radicalizando a luta
 Já perto do fim da vida, começou a reconhecer que sua
luta libertando escravos individualmente, enquanto o fim da escravatura
não vinha, precisava ser radicalizada. Com uma diabetes que se agravava e
limitava seus movimentos, em 1879 passou a achar que seriam necessárias
insurreições como as lideradas por Antônio Bento, outro injustiçado,
esquecido pela história oficial.
Antônio Bento de Souza e Castro era um negro de família
rica, filho de um farmacêutico português. Estudou direito, tornou-se
juiz em Atibaia e abandonou tudo para se dedicar à luta pela libertação
de escravos. Defendia métodos mais radicais do que os de Luiz Gama e
passou a ser chamado de “O fantasma da abolição”. Então, já doente, Luiz
Gama fundou o Centro Abolicionista, com a participação ativa de Antônio
Bento, e em 1882 lançou o jornal Ça Ira!, que tinha forte
participação do escritor Raul Pompeia, autor de um artigo que defendia
claramente o direito do escravo matar seu “senhor”.
Depois veio o Partido Abolicionista e o movimento
Caifazes, liderado por Antônio Bento. Seus militantes iam a fazendas e
estimulavam os escravos a fugirem, com apoio deles. Em alguns casos,
raptavam escravos que tinham medo de fugir e, com apoio de ferroviários
simpatizantes da causa, os levavam (assim como os que fugiam
espontaneamente) para o quilombo do Jabaquara, em Santos, arrumavam
documentação falsa para eles e os mandavam para outras regiões, como
negros livres.
O nome do movimento teve inspiração bíblica. Caifás, no
Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não
compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo
não pereça?”, antes de entregar Jesus a Pilatos.
Luiz Gama morreu em agosto de 1882, sem ver o fim do
escravismo. Seu enterro foi histórico, o maior ato público visto na
capital paulista até aquela época, com participação de negros libertos,
escravos, intelectuais, escritores, artistas, o povo todo. Até seus
inimigos.
Foi-se o “precursor do abolicionismo”, ficou o “fantasma
da abolição”, Antônio Bento, que continuou sua luta até ser
assassinado. Ah, se eu fosse historiador… Não vi nada até hoje, a não
ser referências vagas, sobre Antônio Bento e os Caifazes. Está aí uma
sugestão.
Foto de capa: retrato de Luiz Gama por Raul Pompéia (Domínio Público)

13 de maio: viva 20 de novembro! | Revista Fórum Semanal


13 de maio: viva 20 de novembro!





13 de maio: viva 20 de novembro!
 



Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
começou-se a lembrar de um lutador exemplar contra o escravismo no
Brasil, Luiz Gama, que até recentemente era lembrado por poucos. Ele não
foi escravo por doze anos, foram “apenas” oito. Mas sua história é
exemplar

Por Mouzar Benedito

O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”
13 de maio é data boa para se lembrar de outra, 20 de novembro.

A primeira representa a história oficial, a libertação
dos escravos como se fosse uma simples canetada da Princesa Isabel, sem
mais nem menos.
A história oficial do Brasil é cheia dessas coisas. A independência aconteceu com um mero grito, e assim por diante.
Os lutadores preferem, no caso da libertação dos
escravos, ter como data símbolo dessa luta antiescravista, o dia do
assassinato de Zumbi, 20 de novembro. É justo.
Ignora-se as lutas que aconteceram para chegar a uma
determinada conquista. O Brasil ficou independente em 7 de setembro de
1822, e pronto. Felizmente, essas coisas estão sendo revistas. Na Bahia,
não é à toa que 2 de julho aparece com frequência e é comemorado como
dia da “Independência da Bahia”. É que nessa data, em 1823, quase um ano
depois da data oficial da independência, os portugueses que resistiam à
independência brasileira naquele estado, foram definitivamente
derrotados.
No Piauí, a derrota dos portugueses foi concluída em 13
de março de 1823, na Batalha do Jenipapo. O Pará “aderiu” ao Brasil
definitivamente em 15 de agosto de 1823. No Maranhão também, a
independência foi conquista nesse ano.
Mas voltando ao 13 de maio, a data comemorada durante
muito tempo como a da “Libertação dos Escravos” já não é bem aceita.
Para começar foi uma libertação não tão libertária assim. Até nos
Estados Unidos, país que não nos serve de exemplo para muitas coisas, a
libertação dos escravos foi mais correta: cada escravo libertado ganhava
uma mula e um pedaço de terra para tocar a vida. Aqui, foram
simplesmente jogados nas ruas.
Mesmo assim, muitos que lutavam pelo fim da escravidão, como José do Patrocínio, louvaram a Princesa Isabel por isso.
Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
que conta a história de um negro livre sequestrado e vendido como
escravo no sul dos Estados Unidos, começou-se a lembrar de um lutador
exemplar contra o escravismo no Brasil, Luiz Gama, que até recentemente
era lembrado por poucos. Ele não foi escravo por doze anos, foram
“apenas” oito. Mas sua história é exemplar.
Sua mãe, Luíza Mahin, era uma negra livre, retinta,
bonita, lutadora. Pouco se sabe dela, mas participou de todas as
revoltas negras das primeiras décadas do século XIX na Bahia. De origem
nagô, sabia ler e escrever em árabe, e era quituteira, vendia seus
quitutes por toda Salvador. Assim, servia de elo entre revoltosos. Teve
um envolvimento com um homem de família fidalga portuguesa e daí nasceu
Luiz Gama. Quando ocorreu a Sabinada, revolta liderada pelo médico
Francisco Sabino Vieira, em 1837, proclamando a “República Bahiense”,
ela teve papel importante. Com a derrota, muitos militantes foram presos
e mortos. Para não ser pega, deixou o pequeno Luiz, então com 7 anos de
idade, com o pai dele e fugiu para o Rio de Janeiro.
Vendido pelo pai
Até os 10 anos de idade, ele foi bem tratado pelo pai,
que aí se revelou um pulha: para pagar dívidas contraídas em jogos,
vendeu o filho como escravo, para um negociante paulista. Além de ser um
ato extremamente canalha, era totalmente ilegal: não era permitido
escravizar pessoas nascidas de pais livres, e além disso era proibido
levar escravos da Bahia para outros estados, por causa do espírito
revoltoso dos negros baianos. Temiam que eles “contaminassem” escravos
de outros estados.
Pois bem, primeiro em Campinas, depois em São Paulo, foi
escravo até completar 18 anos. Tinha aprendido a ler com um estudante
de Direito que foi morar na casa do seu “senhor” e ensinou os filhos do
próprio escravocrata. Aí, reivindicou a liberdade, mas o “senhor” não
concedeu. Conseguiu a liberdade, não se sabe como, já que em 1891, o
então ministro da Fazenda Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação
sobre a escravidão no Brasil, alegando que ela havia sido uma mancha na
história do Brasil. E foi mesmo. Mas o motivo era que ele queria evitar
que antigos donos de escravos reivindicassem indenização com base
nesses papéis que valiam como títulos de propriedade. Por isso, perdemos
registros históricos importantes.
Para não ser perseguido pelo ex-senhor, ele sentou praça
na polícia, mas seu espírito libertário não condizia com a profissão,
acabou expulso. Arrumou trabalho como amanuense (copista de documentos
oficiais – na época não havia outra forma de fazer cópias de
documentos), no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça, que tinha
uma vasta biblioteca jurídica. Luiz Gama leu tudo, passou a entender de
leis mais do que quase todos advogados, e se tornou rábula, quer dizer,
advogado não formado, o que na época era permitido.
E dedicou todo o seu conhecimento à libertação de
escravos, pela via jurídica. Conseguiu desta forma libertar mais de
quinhentas pessoas. E atuava também como jornalista e poeta, tornou-se
um republicano radical, mas descobriu que os republicanos não eram tão
republicanos assim: não aceitavam incluir em suas propostas o fim do
escravismo.
Era sempre ameaçado de morte, mas não vacilava. Ia para
certos locais defender escravos sabendo que podia ser morto, mas ia. Num
júri no interior paulista, defendendo um escravo que matou o senhor que
o maltratava, disse a sentença que provocou um grande rebuliço: “O
escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em
legítima defesa”.
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Radicalizando a luta
 Já perto do fim da vida, começou a reconhecer que sua
luta libertando escravos individualmente, enquanto o fim da escravatura
não vinha, precisava ser radicalizada. Com uma diabetes que se agravava e
limitava seus movimentos, em 1879 passou a achar que seriam necessárias
insurreições como as lideradas por Antônio Bento, outro injustiçado,
esquecido pela história oficial.
Antônio Bento de Souza e Castro era um negro de família
rica, filho de um farmacêutico português. Estudou direito, tornou-se
juiz em Atibaia e abandonou tudo para se dedicar à luta pela libertação
de escravos. Defendia métodos mais radicais do que os de Luiz Gama e
passou a ser chamado de “O fantasma da abolição”. Então, já doente, Luiz
Gama fundou o Centro Abolicionista, com a participação ativa de Antônio
Bento, e em 1882 lançou o jornal Ça Ira!, que tinha forte
participação do escritor Raul Pompeia, autor de um artigo que defendia
claramente o direito do escravo matar seu “senhor”.
Depois veio o Partido Abolicionista e o movimento
Caifazes, liderado por Antônio Bento. Seus militantes iam a fazendas e
estimulavam os escravos a fugirem, com apoio deles. Em alguns casos,
raptavam escravos que tinham medo de fugir e, com apoio de ferroviários
simpatizantes da causa, os levavam (assim como os que fugiam
espontaneamente) para o quilombo do Jabaquara, em Santos, arrumavam
documentação falsa para eles e os mandavam para outras regiões, como
negros livres.
O nome do movimento teve inspiração bíblica. Caifás, no
Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não
compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo
não pereça?”, antes de entregar Jesus a Pilatos.
Luiz Gama morreu em agosto de 1882, sem ver o fim do
escravismo. Seu enterro foi histórico, o maior ato público visto na
capital paulista até aquela época, com participação de negros libertos,
escravos, intelectuais, escritores, artistas, o povo todo. Até seus
inimigos.
Foi-se o “precursor do abolicionismo”, ficou o “fantasma
da abolição”, Antônio Bento, que continuou sua luta até ser
assassinado. Ah, se eu fosse historiador… Não vi nada até hoje, a não
ser referências vagas, sobre Antônio Bento e os Caifazes. Está aí uma
sugestão.
Foto de capa: retrato de Luiz Gama por Raul Pompéia (Domínio Público)

"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy" — CartaCapital






"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy"

A agressão verbal contra a auxiliar Fernanda Uliana
prova que o futebol é o penúltimo reduto da misoginia. O último é o
jornalismo boleiro. Por Matheus Pichonelli

bandeirinha.jpg
"Reportagem" do jornal Extra sobre a bandeirinha Fernanda Uliana
 
O futebol é o penúltimo reduto
da misoginia. O último é o jornalismo boleiro. Misoginia, para quem não
sabe, é a palavra designada pelos gregos para classificar o “horror e a
aversão” a tudo o que é ligado ao feminino e às mulheres.
Essa aversão ganhou ares de alarme após a vitória do Atlético Mineiro
sobre o Cruzeiro no domingo 11. Desde então, nenhum assunto foi mais
comentado no mundo futebolístico do que a existência da bandeirinha
Fernanda Colombo Uliana. Nem mesmo os erros cometidos por ela durante a
partida e referendados por um homem, o árbitro Heber Roberto Lopes,
entre eles um pênalti não marcado e um impedimento inexistente para a
equipe azul celeste. O assunto era outro: a sua simples presença da
bandeirinha em um local sagrado para os homens.


Basta uma simples busca no Google (“bandeirinha gata é clicada em
pose indiscreta”, “conheça a linda e polêmica bandeirinha”) e as
deferências dos ogros do esporte sobre o corpo estranho em um grutão
construído por homens, entre homens e para os homens. “Se ela é
bonitinha, que vá posar na Playboy. No futebol tem que ser boa de
serviço”, chegou a dizer o diretor de futebol do Cruzeiro, Alexandre
Mattos, após o clássico mineiro.


Em sua demonstração pública de misoginia, Mattos se esqueceu de
lembrar que os erros da bandeirinha foram referendados pelo chefe da
arbitragem. Um homem, portanto. Mas, ao fim do jogo, nem Mattos nem
ninguém mandou que Heber Roberto Lopes fosse posar na Playboy. Ou que
fosse consertar motor de carro. Ou plantar


laranja. Faz sentido: quando o árbitro erra, ele é poupado até no
xingamento. A ofensa é direcionada à aleivosia da sua mãe ou à
fidelidade da sua esposa. Nunca a ele (a não ser, claro, que seja
negro).


Pela repercussão, os erros da bandeirinha não colocaram a arbitragem
em xeque, mas sim a capacidade feminina de se instalar em um campo de
domínio masculino. Uma coisa é mulher jogar futebol. Quando isso
acontece, ninguém se comove: os estádios não lotam, a imprensa esportiva
dá de ombros, os patrocinadores fazem pouco caso. Mas uma mulher
arbitrando no quintal masculino é mais que uma concessão: é uma ofensa.
Porque tudo no mundo futebolístico é masculino. Nesse domínio, a regra é
clara: a única seleção capacitada a representar o País é composta por
11 jogadores homens, um treinador homem, auxiliares técnicos homens e
dirigentes homens. Se tiverem sorte, as mulheres poderão atuar como
nutricionistas ou psicólogas.


Na minha vida profissional, tive pelo menos dez mulheres como
superiores diretas. Se para qualquer uma eu respondesse, a cada decisão
contrariada, que ela deveria posar na Playboy, ganharia uma bifa na
cara, uma carta de demissão e um processo na Justiça. No futebol a
relação inexiste porque o esporte quase nunca é pensado para outro
público se não o tiozão sentado no sofá, ou na arquibancada, com uma
lata de cerveja na mão. Porque é construído e transmitido por tiozões.
Basta notar os comentários ao fim dos jogos. Basta reparar nas piadas
dos comentaristas ao lado das apresentadoras-alvo-de-piadas. Basta ver o
esforço das câmeras para pinçar um decote no meio da torcida (se houver
um celular entre o decote, melhor). E basta ver ao fim do jogo as
galerias de “belas da torcida”. Ou a galeria de poses insinuantes à
beira do campo da nova “musa” do esporte.


Em conversas e rodas informais, costumo dizer que o futebol é um
microcosmos da vida comum, e não apenas por assimilar em campo as
práticas que consideramos moralmente valiosas, como a generosidade do
passe, a doação pelo companheiro contundido, o fôlego extra por um
objetivo, a fidelidade dos propósitos e a frieza na hora de tomar uma
decisão (o pênalti, nesse sentido, é a situação-limite que todos os
cineastas buscam levar à tela). Mas é também um microcosmo do nosso
primitivismo. O desembaraço do achincalhe sobre a bandeirinha Fernanda
Uliana é o mesmo que permite agredir mulheres nas ruas e culpar a sua
saia. Segundo essa concepção, Uliana e as mulheres não entram em campo
para trabalhar, mas para aparecer. E as agressões são apenas as reações
naturalizadas de uma mesma ousadia – e não de uma incapacidade ancestral
de conter o verbo ou a agressão.


Ao fundo da fala do dirigente do Cruzeiro é possível visualizar uma
velha cortina: “quem mandou provocar”, “se estivesse em casa não teria
acontecido nada disso”. “Se errou, é porque é mulher”. “Se acertou, é
apesar de ser mulher”. A galeria de poses sensuais de Fernanda em seu
ambiente de trabalho (só para lembrar: os juízes também usam shorts e
deixam parte das coxas à mostra) é o combustível aditivado para a
construção desse discurso.


E é com base nesse discurso que, em nome honra (hombridade?) da sua
torcida e de seu país, o futebol trancafia durante dias os marmanjos
para se preparar para as partidas decisivas. Na concentração é proibido
chegar perto de mulher. E é proibido receber ou promover visitas
íntimas. Maldita maçã envenenada esta de Eva. Não só expulsou os donos
das costelas do paraíso como quer envenenar o último bastião de sua
pureza, essa grande confraria masculina chamada futebol.