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sábado, 15 de março de 2014

Capitalismo: a maior ameaça à humanidade?


 
 
A teoria econômica ensina que os movimentos financeiros a preços e lucros livres garantem que o capitalismo produz o maior bem-estar para o maior número de pessoas. Perdas indicam atividade econômica em que os custos excedem o valor da produção, de modo que investimentos nestas áreas devem ser restritos. Lucros indicam atividades em que o valor de produção excede o custo, que fazem o investimento crescer. Os preços indicam a escassez relativa e o valor das entradas e saídas, servindo assim para organizar a produção mais eficientemente.
 
Essa teoria nao é o que funciona quando o governo dos EUA socializa custos e privatiza lucros, como vem sendo feito com o apoio do Banco Central aos bancos “grandes demais para quebrarem” e quando um punhado de instituições financeiras concentram tamanha atividade econômica. Bancos “privados” subsidiados não são diferentes das outrora publicamente subsidiadas indústrias da Grã Bretanha, França, Itália e dos países então países comunistas. Os bancos impuseram os custos de sua incompetência, ganância e corrupção sobre os contribuintes.
 
Na verdade, as empresas socializadas na Inglaterra e na França eram dirigidas mais eficientemente, e nunca ameaçavam as economias nacionais, menos ainda o mundo inteiro de ruína, como os bancos privados dos EUA, os “grande demais para quebrar” o fazem.  Os ingleses, franceses e os comunistas nunca tiveram 1 bilhão de dólares anuais, para salvar um punhado de empresas financeiras corruptas e incompetentes.
 
Isso só ocorre no “capitalismo de livre mercado”, em que capitalsitas, com a aprovação da corrupta Suprema Corte dos EUA, pode comprar o governo, que os representa, e não o eleitorado. Assim, a tributação e o poder de criação de dinheiro do governo são usados para bancar poucas instituições financeiras às custas do resto do país. É isso o que significa “mercados autorregulados”.
 
Há muitos anos, Ralhp Gomery alertou que os danos para os trabalhadores estadunidenses dos empregos no exterior seria superado pela robótica. Gomery me disse que a propriedade de patentes tecnológicas é altamente concentrada e que as inovações tornaram os robôs cada vez mais humanos em suas capacidades. Consequentemente, a perspectiva para o emprego humano é sombria.
 
As palavras de Gomory reverberam em mim quando leio o informe da RT, de 15 de fevereiro último, com especialistas de Harvard que construíram máquinas móveis programadas com com termos lógicos de auto-organização e capazes de executarem tarefas complexas sem direção central ou controle remoto.
 
 
A RT não entende as implicações. Em vez de levantar uma bandeira vermelha, a RT se entusiasma: “as possibilidades são vastas. As máquinas podem ser feitas para construir qualquer estrutura tri-dimensional por si sós, e com mínima instrução. Mas o que é realmente impressionante é a sua capacidade de adaptação ao seu ambiente de trabalho e a cada um deles; para calcular perdas, reorganizar esforços e fazer ajustes. Já está claro que o desenvolvimento fará maravilhas para a humanidade no espaço, e em lugares de difícil acesso e em outras situações difíceis”.
 
Do modo como o mundo está organizado, sob poucos e imensamente poderosos e gananciosos interesses privados, a tecnologia nada fará pela humanidade. A tecnologia significa que os humanos não serão mais requeridos na força de trabalho e que os exércitos de robôs sem emoção tomarão o lugar dos exércitos humanos e não há qualquer remorso quanto a destruir os humanos que os desenvolveram. O quadro que emerge é mais ameaçador que as previsões de Alex Jones. Diante da pequena demanda por trabalho humano, muito poucos pensadores preveem que os ricos pretendem aniquilar a raça humana e viver num ambiente dentre poucos, servidos por seus robôs. Se essa história ainda não foi escrita como ficção científica, alguém deveria se dedicar a fazê-lo, antes que se torne algo comum da realidade.
 
Os cientistas de Harvard estão orgulhosos de sua conquista, assim como sem dúvida estavam os participantes do Projeto Manhattan, em relação à conquista por terem produzido uma arma nuclear. Mas o sucesso dos cientistas do Projeto Manhattan não foi muito bom para os residentes de Hiroshima e Nagasaki, e a perspectiva de uma guerra nuclear continua a lançar uma nuvem negra sobre o mundo.
 
A tecnologia de Harvard provará que é inimiga da raça humana. Esse resultado não é necessário, mas os ideólogos do livre mercado pensam que qualquer planejamento ou antecipação é uma interferência no mercado, que sempre sabe melhor (daí a atual crise financeira e econômica). A ideologia do livre mercado alia-se ao controle social e serve a interesses de curto prazo de gananciosos grupos privados. Em vez de ser usada para a humanidade, a tecnologia será usada para o lucro de um punhado.
 
Essa é a intenção, mas qual é a realidade? Como pode haver uma economia de consumo se não há emprego? Não pode, que é o que estamos aprendendo gradativamente com a exportação de empregos pelas corporações globais, para o exterior. Por um período limitado uma economia pode continuar a funcionar na base de empregos de meio turno, rebaixamento de salários, cartões de benefícios sociais – de segurança alimentar e auxílio-desemprego.
 
Quando a poupança cai, no entanto, quando os políticos sem coração que demonizam os pobres cortam esses benefícios, a economia deixa de produzir mercado para consumir os bens importados que as corporações trazem para vender.
 
Aqui vemos o fracasso total da mão invisível de Adam Smith. Cada corporação em busca de vantagens gerenciais maiores, determinadas pelos lucros obtidos em parte pela produção da destruição do mercado consumidor dos EUA e da miséria maior de todos.
 
A economia smithiana aplica-se a economias nas quais os capitalistas têm algum sentido de vida comum com outros cidadãos do país, como o tinha Henry Ford.
 
Algum tipo de pertencimento a um país ou a uma cidade. A globalização destrói esse sentido. O capitalismo evoluiu ao ponto em que os interesses econômicos mais poderosos, os interesses que controlam o próprio governo, não têm sentido de obrigação com o país nos quais seus negócios estão registrados. Fora as armas nucleares, o capitalismo é a maior ameaça que a humanidade já teve diante de si.
 
O capitalismo internacional levou a ganância a um patamar de força determinante da história. O capitalismo desregulado e dirigido pela ganância está destruindo as perspectivas de emprego no mundo desenvolvido e no mundo em desenvolvimento, cujas agriculturas se tornaram monoculturas para exportação a serviço dos capitalistas globais, para alimentarem a si mesmos. Quando vier a quebradeira, os capitalistas deixarão “a outra” humanidade à míngua.
 
Enquanto isso, os capitalistas declaram, em seus encontros de cúpula, “que há muita gente no mundo”.
 
* Paul Craig Roberts, Diretor do Institute for Political Economy. Versão original do artigo aqui.
 
Tradução: Louise Antônia León

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Resposta de Tarso Genro a Demétrio Magnoli:

Os potes de ouro de Demétrio Magnoli

O professor- geógrafo-jornalista Demétrio Magnoli manifesta seguidamente espasmos "críticos" contra quem ele não concorda, sempre à esquerda,


Tarso Genro (*) no CARTA MAIORGustavo Gargioni

Como poucas pessoas sérias fora da direita conservadora - comprometidas com a democracia e com a república - dão importância para os seus artigos, o professor- geógrafo-jornalista Demétrio Magnoli manifesta seguidamente espasmos “críticos”  contra quem ele não concorda, sempre à esquerda, para assim  manter-se saliente como  “intelectual” ícone do mercado. Procede como quem diz: “oi pessoal, eu continuo o mesmo, não esqueçam de mim outra vez.”  Fui, mais uma vez, vítima da sua “argúcia” intelectual, em suposta crítica que faz ao meu artigo “Uma perspectiva de esquerda para o quinto lugar”. Respondo, com fundamentação, no mesmo tom que ele escreveu o seu  ataque, sem fundamentação.

No seu texto, “O Graal de Tarso Genro” (F.S.Paulo, 01.02), Demétrio teve apenas uma manifestação de honestidade intelectual. E esta foi quando disse que o meu texto estava escrito “numa língua estranha, longinquamente aparentada com o português”.  Acho que ele pensa isso mesmo. A sua dificuldade em entender o português simples e direto, usado por mim no texto, fica clara nas  conclusões estapafúrdias produzidas sobre o que eu escrevi.

Quando falo em “honestidade”, faço-o não para absolvê-lo das manipulações grosseiras que fez das idéias que transmito,  mas para reconhecer que o português que ele entende não está efetivamente  presente na linguagem  direta do meu  artigo. Ele só entende um português  mediado pelos verbos e adjetivos das agências de risco e pelas “mensagens” do mercado, com seus potes de ouro destinados aos seus mensageiros: uma linguagem só longinquamente aparentada com qualquer sistema discursivo democrático e humanista.

O centro do meu texto  - escrito sem qualquer desrespeito a quem pensa diferente - é um convite para pensar o Brasil, dentro da democracia e da república, com direitos humanos e sustentabilidade. Defendi no artigo, para que não cheguemos em  2023  num quinto lugar na economia mundial sem melhorar em muito os índices de desigualdade social  -principalmente nas áreas da saúde e educação- devemos buscar um caminho alternativo ao crescimento que se dá com aumento de concentração de renda. Isso está escrito no sétimo e no oitavo  parágrafo do meu texto, publicado aqui na Carta Maior.

Quando Demétrio diz que o meu artigo explica que  falta ao Brasil “um ente de poder capaz de reinventar a sociedade e guiar o povo até o futuro” (“o Partido-Estado”), aduzindo que esta é a minha posição sobre o assunto, já tinha gasto a sua cota de honestidade por artigo e passa a mentir desbragadamente. Ele alega que eu quero transferir para o Brasil, um modo de gestão política do Estado, que, no meu texto, apenas constato que foi o caminho escolhido pela direção chinesa.

O meu comentário sobre este assunto está no  décimo sexto parágrafo do artigo criticado e é uma referência clara ao que aconteceu na China. Não é nem recomenda que seja uma receita, direta ou indireta, para o Brasil. Está expresso claramente,  no início deste parágrafo o seguinte: “se quiséssemos enquadrar  nas categorias do marxismo tradicional o que ocorreu na China...” e passo a aludir ao “Partido-Estado, ” no processo desenvolvimento chinês. Não faço, repito, qualquer recomendação, direta ou indireta,  sobre a fórmula, que não poderia  ser  aceita em qualquer projeto democrático.

O resumo da fraude intelectual do articulista irado, porém,  está no “lead” do seu texto assim redigido: “Democracia é o regime no qual governantes não podem tudo – e aí está o problema do Brasil, na opinião dele...”, ou seja, na minha opinião.  Mentira. Essa não é a minha opinião. O que eu digo no artigo é exatamente o contrário: digo que a democracia exatamente “pode”, através de métodos democráticos, achar uma saída democrática para desamarrar o país de um sistema político falido. Digo, expressamente, no parágrafo 22 do meu texto: “o levantar de âncoras  poderá ser uma nova Assembléia Nacional Constituinte, no bojo de um amplo movimento político –por dentro e por fora do Parlamento-  (...) com os partidos à frente, sem aceitar as manipulações dos cronistas do neoliberalismo, abrigados na grande mídia.”

Creio, sinceramente,  que o professor-geógrafo-jornalista, sentiu-se ofendido com a última frase da transcrição acima  (“cronistas...abrigados na grande mídia”)  e, a partir do seu desconforto, resolveu escrever sua diatribe,  transferindo para mim determinadas posições sobre a questão “Partido-estado”, lidando com os  fantasmas do seu trotskysmo abandonado. Na verdade, eu não acho nenhuma desonra trabalhar em qualquer órgão de imprensa, seja tradicional ou não, seja de direita ou não, bem como defender por convicção quaisquer posições políticas aceitáveis dentro da democracia.  O que eu acho desonroso é deformar ou mentir sobre posições de adversários para tentar dar uma  nova lustrada no já velho senso comum do neoliberalismo.

Na verdade, o articulista continua fazendo esforços para se credenciar, cada vez mais,  com o que ele imagina ser um vasto público que odeia qualquer resquício do PT e da esquerda na política brasileira, oferecendo seus préstimos ao projeto demo-tucano.   Não sei, sinceramente, se ele vai continuar tendo sucesso, pois até os neoliberais um pouco  mais sensatos acham que vale a pena olhar todas as experiências modernas de desenvolvimento e que, para isso, não é preciso abrir mão da democracia política.

Finalizo refutando a mais idiota e irresponsável das suas conclusões, ou seja, que eu seria um pretendente a Duce, sonhando com uma “marcha sobre Brasília”: sou um homem de esquerda, não aceito nem tenho talentos para ser um “putschista” fascistóide. Jamais serei um pretendente a isso, mas acho que  Demétrio já é um pequeno Mussolini, que, antes de ser Duce, já era um grande manipulador e caluniador dos seus adversários.  

Demétrio Magnoli notabilizou-se fora da paulicéia, quando fui Ministro de Educação, pela empáfia com que escrevia contra o Prouni, contra as políticas de cotas para as comunidades indígenas e afrodescendentes,  contra todas políticas educacionais que iniciaram no Governo Lula e proporcionaram um amplo acesso dos pobres às Universidades e Escolas Técnicas do país. Ou seja, sempre militou contra os projetos democráticos de Governo, que abriram  novas perspectivas de vida para os “de baixo”, sempre jogando luz no lado clandestino da alma da direita: aquele que, tendo vergonha de defender as posições elitistas e reacionárias que estão na base do seu pensamento, faz da deformação do pensamento alheio a trilha  aos potes de ouro oferecidos pelo mercado.
(*) Governador do Rio Grande do Sul

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"A vaquinha dos petistas"!!


O que a “vaquinha” por Genoíno e Delúbio ensina? O que o PT esqueceu…

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Os jornais não disfarçam seu espanto com as doações públicas para que José Genoíno, primeiro, e agora Delúbio Soares paguem as multas que receberam do Supremo Tribunal Federal.
Claro que pode até haver alguma mutreta de algum depósito feito por gente “muy amiga” para desmoralizar a arrecadação de fundos, e é bom que se verifique isso.
Mas nenhuma eventual “armadilha” nesta “vaquinha” esconde o seu principal ensinamento.
Se o protagonismo de José Genoíno nas lutas contra a ditadura, seu drama pessoal de saúde e a comovente solidariedade de sua família – sua filha Miruna tornou-se um símbolo de integridade e amor filial – o que poderia explicar o apoio público de Delúbio Soares, um colaborador de segundo escalão do PT e o que mais foi vilanizado em toda essa história do chamado “mensalão”.
A lição preciosa deste episódio é algo que, ao longo do tempo, boa parte da direção do PT parece ter se esquecido.
A de que existe uma militância política que não precisa ser paga – e que até paga, ela própria, do jeito que pode – para apoiar um partido, porque apóia as ideias e o significado destas ideias sobre a vida dos brasileiros.
A de que existe, fora da mídia e do mercado, gente que tem opinião e valores, que entende que existe uma luta de afirmação deste país e que está aí, pronta e ansiosa por quem a mobilize por uma causa, mesmo que a espinhosa causa de apoiar quem foi condenado num processo que, embora político até a medula, foi sentenciado num tribunal.
A “vaquinha” não foi contra a justiça nem por piedade humana.
Foi um gesto político, mostrando que há milhares de pessoas prontas a deixar seu conforto, seus interesses pessoais e a se expor, corajosamente, por uma causa que não é a figura de Delúbio ou mesmo a de José Genoíno, com todo o brilho e respeito que ela merece.
A causa é o processo de transformação do Brasil.
Pela qual, meu deus, parece que muitos dirigentes políticos, acham inútil levantar orgulhosamente a bandeira.
Reduzem a política a acordos, posições, verbas, favores, influência e – sejamos sinceros – recursos para candidaturas.
É claro que na prevalência dantesca  que o dinheiro assumiu na vida política brasileira, só um tolo teria a ilusão de que uma campanha – sobretudo as majoritárias – pudesse funcionar apenas com “vaquinhas”.
Os grandes doadores, com a impureza de intenções com que doam, continuarão a ser fonte essencial de financiamento de campanhas, enquanto não se adotar o financiamento público que a direita tanto combate.
As pequenas doações desta “vaquinha”, porém, revelam algo além de seu valor monetário e que não deve ser comemorado, mas ser, sim, objeto de reflexão.
Há quanto tempo o PT e o governo que, sob sua legenda, o povo brasileiro elegeu e reelegeu, não faz uma “vaquinha cívica” pelas causas que o levaram até lá?
Há quanto tempo não se dirigem à opinião pública para dizer que precisam da pequena mobilização que cada um pode dar para criar um caudal de vontade que sustente as mudanças?
Onde está a polêmica, a contestação ao que o coro da mídia diz – como disse dos acusados no “mensalão” – de que tudo está errado e o status quo é perverso, mau e contrário aos direitos do povo brasileiro?
Não é preciso ser radical ou furioso, mas é preciso ser firme e claro.
Os líderes políticos – e os governos que sob sua liderança se erigem – têm um papel didático e mobilizador a desempenhar para com o povo brasileiro.
Sem bandeiras, ele não se une, mas está pronto a unir-se quando estas se levantam, mesmo que absolutamente “contra a maré”, como ocorreu nestes casos.
Precisamos, urgentemente, de uma “vaquinha cívica” pelo Brasil.
Pelo projeto de afirmação que se expressa no desenvolvimento, onde o Estado – e apenas ele – é o fio condutor de políticas eficazes e justas, porque o “santo mercado” é, historicamente, incapaz e mesquinho para tudo o que não seja dinheiro rápido e cego para qualquer visão estratégica de Nação.
Assistimos o Estado brasileiro e suas ferramentas de progresso econômico – a Petrobras, o BNDES, a Caixa, a Eletrobras, o Banco Central – serem diariamente massacradas nos jornais e nas tevês e não vemos, quase nunca fora das campanhas eleitorais, buscar-se a solidariedade da população.
Uma solidariedade que existe e que vive adormecida pela incapacidade – ou opção errônea – de não ser anunciada aos quatro ventos, em lugar de serem gaguejadas explicações e “desculpas” aos senhores do poder real: o poder econômico.
Uma solidariedade que precisa ser despertada, sob pena de que também os nossos sonhos venham a ser condenados.

domingo, 1 de dezembro de 2013

100 documentários para inspirar o jornalismo


100 documentários para inspirar o jornalismo

Por Leonardo Sakamoto em 26/11/2013 na edição 774
Reproduzido do blog do autor, 17/11/2013
 
Antes de mais nada, uma justificativa: essa ideia de ficar fazendo lista não surgiu da falta do que fazer. Pelo contrário, dá trabalho. Até porque este que vos escreve não seria capaz sozinho de tais empreitadas, dependendo de amigas e amigos jornalistas para alcançar essa graça.
Respondendo a uma leitora receosa em cursar jornalismo, escrevi que poderia recomendar uma lista de livros de reportagens, literatura e reflexões sobre o mundo e a profissão para acompanhá-la na caminhada – seja ela qual fosse. Como já expliquei aqui, confesso, o comentário foi puramente retórico. Mas isso não impediu mais de uma centenas de mensagens exigindo a tal lista. Para evitar refilmagens de Fahrenheit 451, com a turba enfurecida na minha humilde choupana, atendi aos pedidos.
O post que reuniu 100 livros para inspirar o Jornalismo foi um sucesso de público. Daí, por sugestão do documentarista Caio Cavechini, este blog traz uma relação com 100 documentários para inspirar o Jornalismo. Eu sei, listar é hierarquizar, o que pode soar arrogante (mas vocês querem o quê vindo de um jornalista?)
Muita coisa vai faltar em qualquer seleção feita, portanto considere-a como uma provocação. E levando em conta que boa parte desses docs estão na rede a um Google de distância, sugiro que escolham, pelo menos, um dia por semana para pular a novela e se afundar num bom doc. O mundo não acabará e Félix e César vão continuar brigando. Depois você lê o resuminho.
Obrigado a Caio Cavechini, Carlos Juliano Barros, Cristina Charão, Fernanda Sucupira, José Chrispiniano, Julián Fuks, Igor Ojeda, Ivan Paganotti, Lúcia Ramos Monteiro, Maurício Monteiro Filho, Paula Chrispiniano, Ricardo Mendonça, Rodrigo Ratier e Spensy Pimentel pelas contribuições.
E vale lembrar de novo: isso é para ajudar a inspirar. Da mesma forma que Jornalismo não se aprende nos livros, ele é muito grande para passar apenas pelo vídeo. Deve incluir necessariamente a vivência diária, conhecendo o outro, o diferente. É legal ter conteúdo na bagagem, mas eles não substituem bagagem de vida. Que, por mais crucial que seja para um bom jornalismo, é o que mais falta na profissão. Seja por falta de oportunidade ou de vontade.
Boa pipoca com muita manteiga e pouco sal.
1. 24 City, de Jia Zhang-ke
2. 500 Almas, de Joel Pizzini
3. A Caverna dos Sonhos Esquecidos, de Werner Herzog
4. A Cidade, de Liliana Sulzbach
5. A Opinião Pública, de Arnaldo Jabor
6. A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, de Martin Scorsese e Michael Henry Wilson
7. A Pessoa é para o que Nasce, de Roberto Berliner
8. A queda da Dinastia Romanov, de Esfir Shub
9. A revolução não será televisionada, de Kim Bartley e Donnacha O’Briain
10. ABC da Greve, de Leon Hirszman
11. All Watched Over By Machines Of Loving Grace, de Adam Curtis
12. American Pimp, de Albert Hughes e Allen Hughes
13. Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen
14. Balseros, de Carles Bosch e Josep Maria Domènech
15. Bicicletas de Nhanderu, de Ariel Ortega e Patricia Ferreira
16. Borom Sarret, de Ousmane Semène
17. Buena Vista Social Club, de Win Wenders
18. Burma VJ, de Anders Østergaard
19. Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho
20. Camp 14, Total Control Zone, de Marc Wiese
21. Caramujo Flor, de Joel Pizzini
22. Carne, Osso, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros
23. Ciclón, de Santiago Alvarez
24. Cidadão Boilensen, de Chaim Litewski
25. Cinco Câmeras Quebradas, de Emad Burnat e Guy Davidi
26. Corações e Mentes, de Peter Davis
27. Corumbiara, de Vincent Carelli
28. Criança – a Alma do Negócio, de Estela Renner
29. Crônica de um verão, de Jean Rouch e Edgard Morin
30. Dark Side of the Moon, de William Karel
31. Diário de uma Busca, de Flavia Castro
32. Dirty Wars, Rick Rowly
33. Doméstica, de Gabriel Mascaro
34. Elena, de Petra Costa
35. Entreatos, de João Moreira Salles
36. Equilibrista, James Marsh
37. Estamira, de Marcos Prado
38. Harlan County USA, de Barbara Kopple
39. Hearts of Darkness – O Apocalypse de um Cineasta, de Fax Bahr e George Hickenlooper
40. História(s) do cinema, de Jean-Luc Godard
41. Homem-Urso, de Werner Herzog
42. Hospital, de Frederick Wiseman
43. Ilha das Flores, de Jorge Furtado
44. Imagens do mundo e inscrições da guerra, de Harun Farocki
45. Inside Job, de Charles Ferguson
46. Into the Abyss, de Werner Herzog
47. Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho
48. Jesus no Mundo Maravilha, do Newton Cannito
49. Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho
50. Justiça, de Maria Augusta Ramos
51. La Vida Loca, Christian Poveda
52. Loki – Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle
53. Man with a Movie Camera, de Dziga Vertov
54. Maranhão 66, Glauber Rocha
55. Memória do Saque, de Fernando Solanas
56. Moi, un noir, de Jean Rouch
57. Muito Além do Cidadão Kane, de Simon Hartog
58. Na Captura dos Friedmans, de Andrew Jarecki
59. Nós que aqui estamos, por vós esperamos, de Marcelo Masagão
60. Nostalgia da luz, de Patricio Guzmán
61. Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles
62. Once Brothers, de Michael Tolajian
63. Ônibus 174, de José Padrilha e Felipe Lacerda
64. Os catadores e eu, de Àgnes Varda
65. Os dias com ele, de Maria Clara Escobar
66. Posição entre as Estrelas, de Leonard Retel Helmrich
67. Powaqqatsi, de Godfrey Reggio
68. Prisioneiro da grade de ferro, de Paulo Sacramento
69. Procedimento Operacional Padrão, de Errol Morris
70. Quadra Fechada, de José Roberto Novaes
71. Que viva Mexico!, de Sergei Eisenstein
72. Quebrando o Tabu, de Fernando Grostein Andrade
73. Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho
74. Retrato de Classe, de Gregório Bacic
75. Roger e Eu, de Michael Moore
76. Salesmen, de Albert Maysles, David Maysles e Charlotte Zwerin
77. Santiago, de João Moreira Salles
78. Searching for Sugarman, de Malik Bendjelloul
79. Sem sol, de Chris Marker
80. Serras da Desordem, de Andrea Tonacci
81. Super Size Me, de Morgan Spurlock
82. Surplus – Terrorized Into Being Consumers, de Erick Gandini
83. Tarnation, de Jonathan Caouette
84. Terra para Rose, de Tetê Morais
85. The Act of Killing, Joshua Oppenheimer
86. The Century of the Self, do Adam Curtis
87. The Corporation, Jennifer Abbott e Mark Achbar
88. The Cove, de Louie Psihoyos
89. The King of Kong – a Fistful of Quarters, de Seth Gordon
90. The thin blue line, de Errol Morris
91. The two Escobars, Jeff Zimbalist e Michael Zimbalist
92. Tiros em Columbine, de Michael Moore
93. Titicut Follies, de Frederick Wiseman
94. Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl
95. Uma história severina, de Debora Diniz e Eliane Brum
96. Valsa para Bashir, Ari Folman
97. Ventre Livre, de Ana Luiza Azevedo
98. Videogramas de uma revolução, de Harun Farocki e Andrei Ujica
99. Welfare, de Frederick Wiseman
100. Workingman’s Death, de Michael Glawogger
***
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

sábado, 24 de agosto de 2013

O analfabeto politico e o midiático: coisas em comum

O pior analfabeto é o analfabeto midiático


Bancada do Jornal Nacional (Divulgação)

Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21

Celso Vicenzi, no Outras Palavras / Pragmatismo Político

“Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.

Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.

Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.

O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com umaimagem). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.

O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”

O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.

Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.



O analfabeto político

O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.

Bertold Brecht

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Frutos da jornada


ESCRITO POR FREI BETTO   



Em pleno inverno, a presença do papa Francisco no Brasil, para participar da Jornada Mundial da Juventude, foi uma calorosa primavera. Ele trouxe alegria, esbanjou sorrisos, beijou crianças, apertou as mãos do povo.

Os frutos dessa inesquecível visita podem ser resumidos em 15 pontos:

1.        Francisco quer uma Igreja “pra fora”, desenclausurada, missionária, engajada na periferia e servidora dos pobres;

2.        Na favela de Varginha, ele delineou seu perfil de Igreja: “advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas que clamam ao céu”;

3.        Nossa atuação pastoral deve dedicar especial atenção às crianças, aos jovens e aos idosos. Os primeiros, por encarnarem o futuro; os segundos, por guardarem sabedoria;

4.        Há que combater a corrupção e, ao mesmo tempo, alentar a esperança em “um mundo mais justo e solidário”;

5.        A solidariedade – “quase um palavrão”, disse o papa – deve ser o eixo de nossa pastoral, disposta a “colocar mais água no feijão”;

6.        Devemos combater a “cultura do descartável”, que ignora o valor das pessoas e estimula o consumismo e o hedonismo;

7.        Precisamos saber “perder tempo” com os pobres, saber escutá-los;

8.        A Igreja deve espelhar a simplicidade de Jesus, como Francisco de Assis e o papa Francisco, que dispensou a capa de arminho, os sapatos vermelhos, o anel e a cruz de ouro, os títulos de Sumo Pontífice e Sua Santidade, por preferir ser chamado apenas de papa, bispo de Roma, servo dos servos de Deus;

9.        A segurança dos cristãos deve estar na confiança em Deus, e não no excessivo conforto que nos afastam dos pobres e do povo;

10.   É preciso recuperar a confiança dos jovens nas instituições políticas, alentá-los na esperança; e “reabilitar a política, uma das formas mais altas de caridade”;

11.   A política deve “evitar o elitismo e erradicar a pobreza”, condenando os opressores, como fez o profeta Amós ao denunciar que “vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias”;

12.   Precisamos promover a “cultura do encontro”, favorecendo o diálogo sem preconceitos, combatendo os fundamentalismos e as segregações;

13.   A sociedade futura, “mais justa, não é um sonho fantasioso”, mas algo que podemos alcançar;

14.   Os jovens devem ser os “protagonistas da história”, construtores do futuro, de um mundo melhor.

15.   As manifestações dos jovens nas ruas merecem o nosso apoio, pois eles “saíram nas ruas do mundo para expressar o desejo de uma civilização mais justa e fraterna”.

Francisco iniciou a reforma da Igreja pelo papado, como quem está convencido de que, para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a si mesmo. Agora, há algo de novo na barca de Pedro, cujas velas são tocadas pelo sopro do Espírito Santo.


Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
Twitter:@freibetto.

domingo, 28 de julho de 2013

A Copa do Mundo, a Crise do Modelo Urbano e a Retomada das Cidades


"Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida". O comentário é de Paulo Roberto Rodrigues Soares, professor do Departamento de Geografia – UFRGS e membro do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre em artigo publicado no sítio copa em discu$$ão
Eis o artigo.
 
Praça Tahrir, Wall Street, Plaza Mayor, Praça Montevideo (Porto Alegre) e depois São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil! As manifestações das últimas semanas nas principais cidades brasileiras ecoam os movimentos de massa que nos últimos anos – especialmente após a eclosão da crise financeira internacional em 2008 – tem (re)tomado praças e ruas das principais metrópoles mundiais em todos os continentes.
 
Se na escala mundial a motivação é a ausência de democracia e a crise do sistema financeiro que afeta a “economia real”, bem como as políticas de austeridade impostas pela Troika, no Brasil a reivindicação inicial dos movimentos populares foi a redução (ou eliminação) da tarifa do transporte coletivo que onera fortemente estudantes, trabalhadores e trabalhadoras que dependem de um serviço público desorganizado e precário. Diariamente milhões de pessoas são aprisionados na nossa (i)mobilidade urbana que estende a jornada de trabalho e subtrai horas de cultura, formação, qualificação, lazer e ócio (afinal, também temos “o direito à preguiça”).
 
Outras questões se agregaram aos protestos brasileiros: a mobilização contra as isenções fiscais e os gastos públicos para a Copa do Mundo de 2014 frente às imensas carências de serviços de saúde, educação e segurança.
 
A visibilidade do país por conta da Copa das Confederações foi aproveitada de modo inteligente e eficaz pelos movimentos de contestação que utilizaram os momentos prévios aos jogos para reunir milhares de pessoas com suas diferentes bandeiras. Não abordaremos aqui os desdobramentos políticos posteriores ao movimento de contestação nas ruas brasileiras. Nos limites deste artigo preferimos apontar três pontos referentes ao modelo urbano que está se implantando no país no último decênio, o qual ainda não conseguiu conciliar (é o projeto?)  crescimento econômico e ligeira redistribuição da renda com bem-estar e qualidade de vida nas cidades.
 
Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida. Bem ao contrário do que poderíamos esperar de um efetivo programa de reforma social.
 
A crise de mobilidade é resultante da debilidade das políticas de planejamento e investimento no transporte público e de uma opção de crescimento econômico baseado no consumo de massas, na construção civil e na indústria automobilística (um quarto pilar é a exportação de commodities, que transcende os limites deste artigo). A política de financiamento e isenção de impostos para a aquisição de automóveis, sem os devidos investimentos em infraestrutura urbana, levou ao congestionamento das vias de circulação nas grandes e médias cidades. É o problema das políticas corporativas. Incentiva-se apenas um setor industrial visando que este seja o “motor” da economia. As consequências são sentidas no médio prazo. Ao primeiro sinal de fadiga do setor, a economia como um todo trava. Vão-se os benefícios da política. Ficam os prejuízos (congestionamentos, poluição, acidentes de trânsito).
 
Quanto ao transporte público novamente são propostas medidas pouco eficazes no longo prazo. Combate-se os resultados e não a raiz da questão. A política de desoneração para as empresas do setor não irá solucionar os problemas. Os mesmos empresários rentistas que lucram com a desorganização das linhas e com a extensão urbana continuarão a gerir o sistema. É preciso promover uma ampla discussão de uma política nacional de mobilidade urbana, que incentive o transporte público, promova a diversidade de modais de deslocamento nas cidades, desde os individuais (bicicletas, por exemplo) até os mais modernos e que exigem grandes investimentos (VLTs, trens, metrô).
 
Mas é preciso entender a mobilidade na sociedade contemporânea. Nossas cidades, cujo planejamento é herdado do período fordista, necessitam de outra compreensão de planejamento e mobilidade. E esta deve começar por um conjunto de perguntas: o que é a mobilidade hoje? Quem se move nas cidades? Por que nos movemos? As desregulações do capitalismo flexível e da “modernidade líquida” nos colocaram em estado de constante “mobilização geral”. Hoje todos se movimentam em diferentes horários e direções. Aliado a isso, a produção da metrópole e da cidade pós-moderna, mais extensa, mais fragmentada e policêntrica provocou a ruptura dos padrões tradicionais de mobilidade. Mas continuamos presos aos velhos paradigmas de cidade. Por isso é preciso repensar a mobilidade em seus aspectos econômicos, sociais e culturais. As novas tecnologias de informação devem ser utilizadas para promover o planejamento inteligente da circulação urbana. As redes sociais devem ser utilizadas para o planejamento e a gestão participativa da mobilidade, o que pode ser realizado em tempo real nos momentos de crise geral do sistema. É um caminho: democratização e participação.
 
A expansão da indústria imobiliária se dá pela disponibilidade de crédito e um amplo programa de produção habitacional (o Programa Minha Casa Minha Vida). Entretanto, nosso programa habitacional deixou de ser uma política de Estado para se tornar mais uma fonte de acumulação privada. Especula-se com a terra urbana e com o preço dos imóveis. Os projetos são aprovados a bel prazer dos investidores, facilitados por municipalidades ávidas por resultados de investimentos e geração de empregos. O modelo de produto imobiliário hegemônico combina verticalização desenfreada, condomínios fechados e grandes conjuntos habitacionais na periferia, ressuscitando o antigo modelo de expansão periférica dos anos 1960-1970. A densificação dos centros e a extensão dos perímetros urbanos encarecem a infraestrutura urbana e incidem justamente na questão da mobilidade. Resultados: densificação nociva das áreas mais centrais, periferias homogêneas e segregadas, cidades menos coesas e mais fragmentadas.
 
Frente a todos os problemas gerados temos a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Com eles a utilização de fundos públicos, seja na forma de investimentos diretos, seja nas isenções fiscais aos grandes grupos econômicos envolvidos. Estádios de futebol e instalações esportivas suntuosas são construídos com diferentes formas de financiamento público. Obras de infraestrutura urbana (re)valorizam setores das cidades permitindo a apropriação da renda diferencial urbana pelo capital imobiliário.

Ao mesmo tempo temos os impactos perversos da desagregação de comunidades pelas remoções e deslocamentos (“involuntários”) de populações dos setores urbanos valorizados pelas obras. Estas remoções se fazem em nome do “interesse geral” da cidade nas obras relacionadas aos megaeventos. É notório que os governos locais estão aproveitando os megaeventos como aceleradores de projetos de infraestrutura, bem como para alterações e/ou afrouxamento dos marcos reguladores da produção do espaço urbano (planos diretores, leis de zoneamento, instrumentos urbanísticos). Acrescentem-se também as políticas de “higienização” das cidades, de ordenamento controlado dos espaços públicos, convertidos em espaços de vigilância permanente e a militarização da questão urbana empreendida pelos governos locais em associação com os governos estaduais e federal. Tudo isto respondendo aos “cadernos de encargos” e à “privatização do território” imposta pelas corporações esportivas. Chamamos aqui de privatização do território, porque as intervenções vão além das arenas esportivas e de seus espaços públicos circundantes. Praticamente toda a cidade está incluída na “zona de controle”.
 
E todo este processo se realizando com pouca ou nenhuma transparência, com total ausência de democracia local, apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade que prevêem a participação popular e gestão democrática das cidades.
 
Um caso particular é o de Porto Alegre, cidade com longa e aguerrida tradição de lutas sociais e democracia participativa. Aqui a oposição ao “novo modelo urbano” de “cidade-empresa” vem crescendo nos últimos anos após um período de estagnação das mobilizações sociais. São iniciativas independentes, fragmentadas, mas que neste momento conseguiram se conciliar em oposição ao novo projeto de cidade que se impõe. Movimentos pela mobilidade urbana, pela ocupação pública dos espaços públicos, contra a sociedade controle, movimentos ecológicos e pela qualidade de vida nos bairros, além de movimentos populares pela moradia se (re)encontraram na Praça Montevideo em uma nova e ampla coalizão de forças sociais. O futuro dirá se esta nova corrente será capaz de reverter as tendências de privatização da cidade e de submissão da gestão urbana aos interesses de corporações e grupos privados.
 
Enfim, o risorgimento dos movimentos de massa no Brasil é, sobretudo, um levante pelo “direito à cidade”. Pelo direito de participar e decidir na elaboração, discussão e implementação das políticas urbanas. Pelo direito a construir e viver em cidades feitas por e para o interesse público e não pelos interesses privados.
 
Finalizamos com David Harvey e sua conclusão do artigo “O direito à cidade” (2008):
 
“Dar um passo adiante para unificar estas lutas supõe adotar o direito à cidade como slogan prático e ideal político, porque o mesmo coloca a questão de quem domina a conexão necessária entre urbanização e produção e utilização do excedente. A democratização deste direito e a construção de um amplo movimento social para torná-lo realidade são imprescindíveis se os despossuídos vierem a recuperar o controle sobre a cidade que durante tanto tempo estiveram privados e desejam instituir novos modelos de urbanização (…) a revolução tem que ser urbana, no mais amplo sentido do termo, ou não será”.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A arte cínica de fazer o povo de bobo


Ao longo dos tempos, uma pequeno grupo sempre tenta apresentar como interesse público o que é interesse privado.
Filipinos massacrados por forças americanas há pouco mais de 100 anos
Filipinos massacrados por forças americanas há pouco mais de 100 anos
O texto abaixo é uma condensação de um ensaio intitulado “Consentimento sem consentimento: a teoria e a prática da democracia”, de um dos maiores intelectuais modernos, o americano Noam Chomsky. O Diário chama a atenção especial para um trecho em que Chomsky fala, apoiado em documentos confidenciais americanos,  do golpe militar no Brasil em 1964.
UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA decente deveria ser baseada no princípio do consentimento dos governados. Essa idéia ganhou aceitação geral, mas pode ser contestada tanto por ser muito forte quanto por ser muito fraca. Muito forte, porque sugere que as pessoas devem ser governadas e controladas. Muito fraca, porque mesmo os governadores mais brutais precisam, em certa medida, do consentimento dos governados,  e geralmente o obtêm não apenas à força.
Estou interessado aqui em como as sociedades mais livres e mais democráticas têm tratado tais problemas. Durante anos as forças populares têm procurado obter uma fatia maior na administração de seus interesses, com algum sucesso ao lado de muitas derrotas. Entretanto, desenvolveu-se um corpo de pensamento para justificar a resistência da elite à democracia.
Essas questões foram tratados há 250 anos por David Hume em obra considerada clássica. Hume estava intrigado com “a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos e a submissão implícita com que os homens cedem os seus destinos aos seus governantes”. Achava tal fato surpreendente, pois “a força sempre está do lado dos governados”.  Se as pessoas se dessem conta disso, sublevar-se-iam e derrubariam seus governantes. Chegou à conclusão de que o governo está baseado no controle de opinião.
Os governados têm o direito de consentir, mas nada mais além disso. A população é deespectadores, e não de participantes. Assim é a arena política. A população deve ser inteiramente excluída da arena econômica, na qual em grande parte se determina o que acontece na sociedade.
Tais questões só ganharam força especial a partir do primeiro levante democrático na Inglaterra do século XVII. A agitação da época é freqüentemente descrita como um conflito entre Rei e Parlamento, mas na verdade parte significativa da população não queria ser governada por qualquer dos concorrentes ao poder, mas “por cidadãos como nós, que conhecem nossas necessidades, e não por fidalgos e cavalheiros, que desconhecem as necessidades do povo e irão somente nos oprimir”, como declaravam em seus panfletos.
Tais idéias perturbaram os homens da melhor qualidade, como eles mesmos se intitulavam. Estavam preparados para conceder direitos ao povo, mas dentro de limites e ancorados no princípio de que “por povo não queremos dizer a ralé confusa e ignorante”, explicavam.
Mas como esse princípio fundamental da vida social poderia ser reconciliado com a doutrina do consentimento dos governados, doutrina que já não era então fácil de ser suprimida?
Uma solução para o problema foi proposta por Hutcheson, famoso filósofo moral contemporâneo de Hume. O filósofo argumentava que o princípio do consentimento dos governados não é violado quando os governantes impõem planos que são rejeitados pelo público, se mais tarde as massas “estúpidas e preconceituosas” consentirem calorosamente com o que foi feito em seu nome. Podemos adotar o princípio do consentimento sem consentimento.
Este ponto foi aprimorado nos Estados Unidos. Na Guerra das Filipinas, a imprensa afirmou que o americano estava massacrando os nativos à moda inglesa. Para dar a isso um tom adequadamente civilizado, um ensaísta americano engendrou seu próprio conceito deconsentimento sem consentimento: “Se em anos vindouros [o povo conquistado] vier a admitir que a disputa fora pelo mais alto interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a autoridade foi imposta com o consentimento dos governados, da mesma forma quando um pai impede a criança de correr para uma rua movimentada”.
A enorme indústria de Relações Públicas tem se dedicado ao controle da mente pública, como os líderes do mundo dos negócios descrevem a tarefa.
Alguns anos depois de Hume e Hutcheson os descreverem, os tumultos da massa popular na Inglaterra estenderam-se às colônias rebeldes da América do Norte. Os Pais da Pátria (Founding Fathers) também se sentiram perturbados, como os britânicos da melhor qualidade e quase com as mesmas palavras. Como um deles disse: “Quando menciono o público, eu quero dizer que aí incluo só a parte racional. O vulgar ignorante é tão incapaz de julgar os modos [do governo] como é incapaz de manejar suas rédeas”.
“O povo é uma grande besta que precisa ser domada”, declarou Alexander Hamilton. Fazendeiros rebeldes e independentes tinham de ser ensinados, às vezes à força, que os ideais dos panfletos revolucionários não deveriam ser levados demasiadamente a sério. O povo comum não poderia ser representado por cidadãos como eles mesmos [do povo], que sabem de suas agruras, mas por homens responsáveis.
Hamilton: "O povo é uma besta"
Hamilton: “O povo é uma besta”
A doutrina reinante foi expressa claramente por John Jay, presidente da Corte Suprema e do Congresso: “As pessoas que possuem o país deveriam governá-lo”. Resta uma questão: quem é o dono do país?
Os Estados Unidos são certamente o caso mais importante para se analisar, se quisermos entender o mundo de hoje e de amanhã. Uma razão é o seu poder incomparável. Outra, as suas instituições democráticas estáveis. Ao estudar história, não se pode construir experimentos, mas os Estados Unidos estão tão próximos quanto possível de um caso ideal de democracia capitalista de Estado.
O seu principal designer foi um astuto pensador político: James Madison. Madison salientou, nos debates sobre a Constituição, que se as eleições na Inglaterra “fossem abertas a todas as classes da população, o patrimônio dos proprietários de terra seria inseguro”. Uma lei agrária logo teria lugar, “dando terra aos sem-terra”. A responsabilidade primeira do governo é “proteger a minoria dos opulentos contra a maioria”, declarou Madison.
Madison previu que a ameaça da democracia provavelmente se tornaria mais aguda com o tempo devido ao aumento na “proporção daqueles que trabalham sob todas as agruras da vida e, secretamente, desejam uma distribuição mais eqüitativa de suas bênçãos”. Madison temia que esse contingente pudesse se tornar influente. Ele estava preocupado com os “sintomas de um espírito de nivelamento”, que já aparecera e advertiu sobre o “perigo futuro”, se o direito de voto colocasse o “poder sobre a propriedade nas mãos dos que não tinham parte nela”. Não se pode esperar que “aqueles sem propriedade ou com esperança de adquiri-la concordem suficientemente com seus direitos”, explicou Madison. Sua solução era manter o poder político nas mãos daqueles que “procedem da e representam a riqueza da nação, o conjunto de homens mais capazes”, em suas palavras, com o povo fragmentado e desorganizado.
O problema do espírito de nivelamento surge também no exterior, naturalmente. Aprendemos um bocado sobre a teoria democrática realmente existente, vendo como tal problema é percebido, especialmente em documentos internos secretos, nos quais os líderes podem ser mais francos e mais abertos.
Tomem o exemplo importante do Brasil, o colosso do Sul. Em visita realizada ao país em 1960, o presidente Eisenhower  assegurou aos brasileiros que “o nosso sistema de empreendimento privado socialmente cônscio beneficia o povo todo, donos e trabalhadores igualmente. Em liberdade, o trabalhador brasileiro fica feliz, com as alegrias da vida dum sistema democrático”.
Mas os brasileiros reagiram rispidamente às boas novas trazidas pelos seus tutores do norte. As elites latino-americanas são “como crianças”, informou o secretário de Estado John Foster Dules ao Conselho Nacional da Segurança, “praticamente sem capacidade para autogoverno”. Pior ainda, os Estados Unidos estão “muito mais atrasados que os soviéticos no controle sobre as mentes e emoções de povos não-sofisticados”.
Os generais Geisel e Figueiredo: os Estados Unidos estavam por trás da ditadura militar
Os generais Geisel e Figueiredo: os Estados Unidos estavam por trás da ditadura militar
Em outras palavras, achavam difícil induzir as pessoas a aceitar a doutrina americana de que os ricos devem pilhar os pobres, um problema de relações públicas ainda não resolvido.
O governo Kennedy enfrentou o problema mudando a missão das Forças Armadas da América Latina, que era de defesa hemisférica, para segurança interna, decisão que gerou conseqüências fatais, a começar pelo golpe militar no Brasil. As Forças Armadas brasileiras tinham sido consideradas por Washington como uma ilha de sanidade no país, e o golpe foi saudado pelo embaixador de Kennedy, Lincoln Gordon, como uma rebelião democrática.
“É a única vitória mais decisiva da liberdade na metade do século XX”, disse ele. Economista pela Universidade de Harvard, Gordon acrescentou que a vitória deveria “criar um clima muito melhor para investimentos privados”, dando uma visão mais aprofundada do sentido dos termos liberdade e democracia. Proteger o investimento privado dos Estados Unidos e o comércio é a raiz econômica que está no âmago do interesse político dos Estados Unidos na América Latina.
O exposto foi extraído de documentos secretos. O discurso público é, naturalmente, bem diferente. Se nos ativermos a ele, entenderemos pouco sobre o significado real de democracia, ou sobre a ordem global dos anos passados, bem como sobre o futuro, uma vez que as mesmas mãos continuam segurando as rédeas.
O padrão continua hoje. A violadora campeã dos direitos humanos no hemisfério é a Colômbia, também a principal destinatária da ajuda e do treino militar dos Estados Unidos nos anos recentes. O pretexto usado é a guerra às drogas, mas isso é um mito, como regularmente relatam grupos de direitos humanos que têm investigado o chocante número de atrocidades e os laços estreitos entre traficantes de narcóticos, proprietários de terras, militares e paramilitares.  O terror estatal devastou organizações populares e virtualmente destruiu o único partido político independente, assassinando milhares de ativistas, inclusive candidatos à presidência. Não obstante, a Colômbia é saudada como uma democracia estável, revelando mais uma vez o que significa democracia.
Meus comentários sobre as raízes madisonianas dos conceitos predominantes de democracia foram injustos num aspecto importante. Assim como Adam Smith e outros fundadores do liberalismo clássico, Madison foi pré-capitalista, e anticapitalista em espírito. Esperava que os governantes fossem “estadistas iluminados” e “filósofos benevolentes”, cuja sabedoria saberia discernir os verdadeiros interesses de seu país.
Madison, porém, logo percebeu o contrário: a minoria opulenta prosseguiu usando seu recém-adquirido poder, como Adam Smith havia descrito alguns anos atrás. Eles estavam decididos a perseguir o que Smith chamou de máxima vil dos patrões: “Tudo para nós e nada para o povo”. Por volta de 1792, Madison advertiu sobre o crescente estado capitalista em evolução estar “colocando a motivação de interesse privado no lugar do dever público”, levando à “real dominação dos poucos sob a aparente liberdade dos muitos”.
“É a minoria inteligente de homens responsáveis que deve controlar a tomada de decisões”, afirmou em meados do século passado o jornalista Walter Lippmann, em seus influentes ensaios sobre democracia. Lippmann foi também a figura mais respeitada do jornalismo norte-americano e célebre comentarista de assuntos públicos durante meio século. “A minoria inteligente é uma classe especializada, responsável pelo estabelecimento da política e pela formação de uma sólida opinião pública”, postulou Lippmann. “Ela deve estar livre de interferência do povo, que é de estranhos intrometidos e ignorantes”.
O povo é tratado como palhaço
O povo é tratado como palhaço
O público tem de ser “posto no seu lugar”, continuou Lippmann: “sua função é ser espectador de ação e não de participante, a não ser em práticas eleitorais periódicas, quando ele escolhe entre a classe especializada“.
Ocupe Wall Street: a "besta" não se deixa domar
Ocupe Wall Street: a “besta” não se deixa domar
Na Enciclopédia de Ciências Sociais, Harold Lasswell, um dos fundadores da ciência política moderna, advertiu que “a minoria dos inteligentes” precisa reconhecer a “ignorância e estupidez das massas” e não “sucumbir aos dogmatismos democráticos de os homens serem os melhores juizes de seus próprios interesses. Eles não são os melhores juizes, nós é que somos. As massas precisam ser controladas para seu próprio bem, e em sociedades mais democráticas, nas quais a força não é disponível, os gerenciadores sociais precisam se voltar amplamente para uma técnica de controle completamente nova, grandemente através da propaganda”.
Mas a grande besta é difícil de ser domada. Repetidamente tem-se pensado que o problema foi resolvido e que o fim da história foi alcançado, numa espécie de utopia dos patrões.
Isso lembra um momento notável das origens da doutrina liberal no começo do século XIX, quando Ricardo e Malthus , entre outras grandes figuras da economia clássica, anunciaram que a nova ciência tinha provado, com a certeza das leis de Newton, que os pobres só eram prejudicados quando tentávamos ajudá-los; e o melhor presente que poderia ser oferecido às massas sofredoras seria libertá-las da ilusão de que têm direito à vida.
Perto da década de 1830 parecia, na Inglaterra, que tais doutrinas tinham vencido. Mas surgiu um problema imprevisto: as massas não-inteligentes começaram a inferir: “Se não temos o direito de viver, então vocês não têm o direito de governar”. O exército britânico teve de enfrentar tumultos e desordem, e logo uma ameaça ainda maior se esboçou, quando os trabalhadores começaram a se organizar exigindo leis de fábrica e legislação social para protegê-los.
Noam Chomsky
Noam Chomsky
Mais para o fim do século, parecia a muitos que a ordem havia sido restabelecida, embora alguns discordassem. O famoso artista William Morris ultrajou a opinião respeitável ao declarar-se socialista numa palestra em Oxford. Ele reconhecia que “era opinião aceita que o sistema competitivo, ou salve-se quem puder, é o último sistema de economia que o mundo verá; é um sistema perfeito e, portanto, a finalidade foi com ele atingida”. “Mas se realmente a história está no fim”, continuou ele, “então a civilização morrerá”.  Morris recusava-se a acreditar nisso, a despeito de proclamações confiantes dos homens mais doutos. Ele tinha razão, como as lutas populares o demonstraram.
Jamais houve e nem haverá motivo para acreditar que somos coagidos por leis sociais misteriosas e desconhecidas, e não por decisões simplesmente tomadas dentro de instituições sujeitas ao desejo humano – instituições humanas que têm de enfrentar o teste da legitimidade e que, se forem reprovadas, podem ser substituídas por outras, mais livres e mais justas, como freqüentemente ocorreu no passado.