sábado, 10 de março de 2012

O massacre colombiano


Dan Kovalik*
 
Julgava-se que a Guatemala detinha o primeiro lugar no continente americano no que diz respeito a massacres de massas. Mas o regime colombiano pulverizou este record e os EUA estão perfeitamente informados sobre a situação. Mais, são colaboradores, apoiantes e cúmplices activos dos fascistas colombianos que estão a levar a cabo o genocídio de populações indígenas.

Há muito que se julgava que a Guatemala detinha o primeiro lugar no continente americano no que diz respeito a massacres de massas na nossa época moderna – 200 000 vítimas nos anos 1980, em 94% dos casos assassinadas pelo Estado com o apoio de Washington e em aliança com os esquadrões da morte. Mas, infelizmente, constata-se agora que a Colômbia pulverizou este record e, conforme Wikileaks revela, os EUA estão perfeitamente informados sobre a situação.
Num telegrama de 19 de Novembro de 2009 intitulado “2009-2010 International Narcotics Control Strategy Report” (Relatório estratégico sobre o controlo internacional de narcóticos 2009-2010), a embaixada dos EUA em Bogotá reconhece, como dado acessório, a horrível verdade: foram registadas 257 089 vítimas dos paramilitares de extrema-direita. E, tal como Human Rights Watch assinalou no seu relatório anual de 2012 sobre a Colômbia, esses paramilitares continuam a actuar de braço dado com os militares apoiados pelos EUA.
Mesmo para aquele que conhecem a Colômbia este número é arrasador. A primeira vez que deparei com este número foi no livro “Cocaïne, Death Squads, and the War on Terror” (Cocaína, esquadrões da morte e a guerra contra o terrorismo), do qual falei neste sítio há algum tempo, e que cita um jornalista independente que afirma que cerca de 250 000 vítimas foram mortas pelo para-Estado colombiano. Nesse sublinha-se que este número foi ocultado porque as vítimas foram enviadas para salgadeiras ou para fornos crematórios de tipo nazi.
Fica agora a saber-se que há pelo menos dois anos os EUA têm conhecimento de tudo acerca destes crimes. O que não provocou qualquer mudança na política estado-unidense relativamente à Colômbia – o país receberá durante os próximos dois anos 500 milhões de dólares de ajuda destinada ao seu exército e à sua polícia – e não impediu Obama de defender, e de concretizar no ano passado, o Tratado de comércio livre com a Colômbia.
Tal como sucedeu na Guatemala nos anos 1980, a violência atingiu em particular as populações indígenas – facto reconhecido igualmente pela embaixada dos EUA nos telegramas revelados por Wikileaks. Esta violência dirigida contra indígenas continua aliás a aumentar. A embaixada estado-unidense reconhece-o num telegrama de 26 de Fevereiro de 2010 intitulado “Violence Against Indigenous Shows Upward Trend” (A violência contra indígenas manifesta tendência a crescer). Por causa desta violência há 34 grupos indígenas que se encontram á beira da extinção; portanto, esta violência pode ser classificada como genocida.
Este telegrama de 2010 explica que “os assassínios de indígenas aumentam pelo segundo ano consecutivo”, um aumento de 50% em 2009 relativamente a 2008. O telegrama explica ainda que “os indicadores de violência contra os indígenas agravaram-se novamente em 2009. Segundo a Organização nacional indígena de Colômbia (ONIC) as deslocalizações aumentaram 20% (de 3 212 para 3 649), os desaparecimentos forçados aumentaram mais de 100% (de 7 para 18), e as ameaças aumentaram mais de 3 000% (de 10 para 314). A ONIC regista igualmente um aumento no recrutamento forçado de menores por parte de todos os grupos armados ilegais, mas não fornece dados numéricos sobre este ponto.
A embaixada, baseando-se num estudo publicado pela antropóloga Esther Sánchez – estudo que o governo estado-unidense financiou -, assinala que os militares e paramilitares tomam os indígenas por alvo porque eles são “frequentemente vistos como colaboradores das FARC uma vez que coabitam nos mesmos territórios”; e é precisamente a presença de militares colombianos nos territórios indígenas que “transfere o conflito para o jardim dos indígenas”, o que constitui uma ameaça para a sua existência. Ora a embaixada recusa a ideia de uma retirada dos territórios indígenas por parte do exército colombiano, sublinhando que uma reivindicação nesse sentido apresentada pela tribo awa é “inaplicável”.
“Inaplicável”, explica a embaixada, porque este território necessita de estar sob controlo uma vez que contém numerosas riquezas. A embaixada estado-unidense reconhece explicitamente que “os investimentos de capital nos hidrocarbonetos”, bem como na borracha e na palmeira produtora de óleo – o que quer dizer exactamente os investimentos que explicam as decisões militares de Washington e o Tratado de comércio livre – conduzem directamente à violência contra os indígenas. E isto sucede, explica a embaixada, porque os povos indígenas “provavelmente não abandonariam terras tidas como sagradas nas suas identidades culturais”. Ou seja, que não franqueariam voluntariamente a porta à exploração capitalista.
Tudo isto mostra que os EUA e a Colômbia continuam a defender opções militares e a conduzir políticas económicas que, segundo a própria opinião dos EUA, conduzem a um genocídio. Na realidade é a própria embaixada estado-unidense que reconhece que o genocídio é absolutamente necessário para alcançar os seus objectivos.
Isto significa que os EUA mentem quando fingem interessar-se pelos direitos humanos. Os EUA têm o atrevimento de excluir Cuba da Cimeira das Américas por causa do direitos humanos; mas é o país que acolhe esta Cimeira – a Colômbia – que por todas as razões deveria ser apontado a dedo pelo seus resultados excepcionalmente maus no que diz respeito a direitos humanos. Na verdade, são os próprios EUA quem deveria ser denunciado, porque apoiam o brutal regime colombiano. Mas como são os EUA que domina o mundo, isso também pareceria “inaplicável”.

* Advogado norte-americano e activista dos Direitos Humanos
 

GRÉCIA: MERCADOS FESTEJAM O FUNERAL DE UMA NAÇÃO


Saul Leblon no CARTA MAIOR

Mercados e bolsas festejam o acordo fechado nesta 5ª feira entre a Grécia e os bancos credores, que concederam ao país um desconto médio de 50%, em troca de garantias e reformas que asseguram o pagamento do passivo restante.

Há razões para a banca comemorar: a adesão dos bancos ao desconto de 50% representa, no fundo, o oposto do que transparece e se alardeia. Trata-se de uma gigantesca transfusão, talvez a mais radical desde o Tratado de Versalhes, do sangue de um povo a credores pantagruélicos e interesses assemelhados. Uma derrota superlativa da democracia grega, que marcará a história do país por décadas; e provavelmente destruirá seu sistema representativo, marcado por traição nacional maiúscula.

As eleições parlamentares de abril agora podem funcionar como a espoleta dessa bancarrota. O processo consumado nesta 5ª feira compromete a vida da atual geração, a dos seus filhos e a dos netos que um dia eles terão. Em troca de um desconto sobre uma dívida impagável -- contraída num intercurso entre governos irresponsáveis e banqueiros cúmplices-- o Estado grego assinou uma espécie de testamento à favor dos mercados. Em seguida, consumou o suicídio político da democracia. A partir de agora, e por prazo indeterminado, a Grécia rende-se ao papel de protetorado das finanças internacionais. Um protetorado a ser alardeado como paradigma de bom comportamento.

Um diretório nomeado pelos mercados terá poderes legais para monitorar a tosquia do país, com direito a vetar orçamentos e redirecionar recursos prioritariamente ao pagamento de banqueiros. O que a coalizão socialdemocrata e conservadora fez foi municiar-se de um álibi internacional para sancionar um arrocho salarial indecente -o salário mínimo foi ineditamente reduzido; como ele, as pensões;demissões maciças da ordem de 150 mil funcionários públicos estão em marcha (15 mil já foram efetuadas este ano); privatizações e cortes na saúde e educação desencadearam surtos de suicídios e fome nas escolas. A entrega de crianças pobres a orfanatos é a tragédia mais recente protagonizada por famílias desesperadas.

Compare-se com o que fez a Argentina de Kirchner há nove anos para se ter a medida da regressividade acatada por Atenas. Em 2003, a Argentina era uma espécie de Grécia da América do Sul. Desacreditada aos olhos de seu próprio povo, balançava como um 'joão bobo' nas mãos do capital especulativo interno e externo. Nestor Kirchner herdou do extremismo neoliberal uma taxa de pobreza de 60% sobre uma população de 37 milhões de argentinos.

A dívida de US$ 145 bilhões, impagável, corroía seu sistema financeiro. Os credores sobrevoavam a nação argentina à espera do melhor momento para arrancar os seus olhos e o que lhe restasse ainda da carne, como fizeram nesta 5ª feira com a Grécia. O cerco internacional era avassalador. A diferença é que Nestor Kirchner não se dobrou: impôs um desconto unilateral e incondicional de 75% da dívida aos credores --ganhou margem de soberania, portanto, ao contráreio da rendição grega espetada em sacrifícios brutais. Com independência, a Argentina desvalorizou o câmbio, congelou tarifas, destinou a receita crescente a programas sociais e de fomento; não ao pagamento à banca, como reza a rendição grega.

A taxa de pobreza recuou a 10% da população. A economia argentina foi a que mais cresceu no hemisfério ocidental na última década. Cristina foi reeleita em 2011 com apoio esmagador. Os desdobramentos virtuosos desse braço de ferro são espertamente omitidos pela crítica conservadora que tenta desmerecer os ganhos econômicos e sociais da soberania argentina, ao mesmo tempo em que edulcora o escalpo da sociedade grega. E o faz por uma razão compreensível: eles realçam as dimensões catastróficas dos desastres em marcha na Grécia, Espanha, Portugal e outros, submetidos à dose dupla de um purgante ortodoxo inútil, que o êxito da nação latinoamericana derrotou e desmoralizou.

‘Está claro, hoje, o caráter político-eleitoral das obras de Transposição do Rio São Francisco’

  Gabriel Brito e Valéria Nader,da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

Parte fundamental da agenda de grandes obras do país, a Transposição do Rio São Francisco sempre foi um polêmico assunto, que a exemplo de outros colocam na mesa interesses empresariais, eleitoreiros e, o que deveria ser o mais importante, das populações que habitam a bacia do Velho Chico. Atualmente paralisadas e em situação de certa penúria, as obras em questão voltam a ser alvo da atenção do público, uma vez que foram vendidas como salvação para os “sedentos” habitantes do semi-árido brasileiro.

A fim de aprofundar o debate em torno dessa drástica transformação que se pretende promover na região, o Correio da Cidadania entrevistou Ruben Siqueira, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia e há mais de três décadas envolvido nas questões sociais do Nordeste. Para ele, estamos diante da repetição de velhas histórias, nas quais a aliança entre o poder político e econômico joga com a “cultura da seca” mitificada nacionalmente, quando “a questão essencial do Nordeste não é a água, mas a terra”.

A afirmação se explica quando Siqueira se aprofunda no detalhamento de projetos elaborados por movimentos sociais e até por órgãos oficiais, como a Agência Nacional de Águas e seu respectivo Atlas do Nordeste, que apontam soluções diversificadas para as especificidades dessa vasta região. Ao invés da Transposição, tais movimentos e estudos oferecem diversas opções de aproveitamento da água, desde uma rede de açudes, já existente, até o famoso projeto de 1 milhão de cisternas.

A propósito de tal iniciativa, comandada pela ASA (Articulação do Semi-Árido) e também pela Articulação Popular São Francisco Vivo (que reúne cerca de 300 entidades), verificou-se novamente no final do ano passado como os interesses político-econômicos deturpam as soluções para a falta de abastecimento -  a oligarquia local tentou abortar o projeto original e substituí-lo por outro que contemplava empresas suspeitas, possivelmente ligadas aos Coelho, da família do ministro da Integração Nacional.

Siqueira declara que uma paralisação das obras poderia recolocar na mesa o debate sobre questões decididas ‘de cima’, com maior participação popular e alternativas, inclusive muito mais baratas, de promoção do abastecimento na região. No entanto, para que tal “utopia democrática”, como define, seja levada adiante, será preciso restabelecer as mobilizações de 2007 e contar com maior organicidade dos movimentos interessados, algo a seu ver pulverizado com a afirmação do lulismo em nossa política.

Correio da Cidadania: Ao lado da visibilidade que grandes e polêmicas obras, como a hidrelétrica de Belo Monte, tem recebido por parte de movimentos ambientalistas e de variados veículos de comunicação, os grandes e os alternativos, tem sido observado incômodo silêncio sobre as obras de Transposição do rio São Francisco. Como está, em primeiro lugar, o andamento deste projeto hoje?

Ruben Siqueira: Ultimamente conseguimos provocar a paralisação das obras de extensão dos canais. Tem havido destaque público, tanto na mídia eletrônica quanto nos jornais, como numa série de reportagens do Jornal do Commercio. A paralisação das obras é isso que tem aparecido na imprensa. São 14 lotes de obras, dois não começaram e, dos começados, há muito pouco avanço, quase todos parados. Os mais antigos, já dados por concluídos, começaram a ter problemas de infiltração, rachaduras, desbarrancamento, e terão de ser reconstruídos. O eixo-leste, em Custódia e Sertânia, Pernambuco, é exemplo.

E o posicionamento dos consórcios, das empreiteiras, é de que são necessários novos aportes, sendo que o governo já garantiu o valor de 36% de sobrepreço na obra, em relação ao custo inicial. Assim, configura-se aquilo que criticávamos em termos de pressa, açodamento, na decisão de fazer a Transposição, naquele período de 2007. O que eles alegam é que a realidade é diferente, ou se impôs sobre os projetos iniciais.

O governo fez os lotes, abriu concorrência e apressadamente concedeu Licenças Ambientais e de Instalação, exatamente na época das maiores mobilizações nossas, em 2007, com marchas a Brasília, caravana contra a Transposição com participação de várias entidades, a greve de fome de d. Luiz Cappio, ocupação de canteiros de obra. Depois, o Supremo decidiu a questão com pressa, parcialmente, em favor da obra. Porém, até hoje não julgou a Ação Civil Pública contra a obra, essa está lá até agora parada.

Portanto, esse açodamento todo é o que agora redunda na paralisação e nos defeitos que já se detectam na obra. Tudo fruto de pressão político-eleitoral, acordos políticos com empreiteiras como Odebrecht, OAS, Mendes Junior. Provavelmente relacionados a financiamentos de campanha, promessas futuras de mais aportes de recursos, como vemos agora, e vitórias eleitorais através de campanhas do tipo “vamos levar água a mais de 2 milhões de sedentos”. Não é à toa que Lula teve a maior vitória eleitoral em 2006 nessa região.

Está claro o caráter político-eleitoral da obra, o que volta a se confirmar agora, pois estamos em mais um ano eleitoral, nos municípios. Há um descontentamento nas regiões, pois se criou muita ilusão e expectativa sobre movimentação econômica, empregos... E as pessoas já perceberam que é algo falacioso, uma vez que as empreiteiras mal cumpriram seus mal feitos e já caíram fora.

Assim, as críticas que nós dos movimentos, da academia, fazíamos à Transposição se confirmam, até pelo tratamento do governo em relação à questão neste momento.

Correio da Cidadania: Tendo em vista esta correlação predominante de forças políticas e econômicas, que impactou na concepção, andamento e, agora, paralisação das obras, haveria algo mais na conjuntura atual a determinar uma desaceleração tão evidente das obras?

Ruben Siqueira: A paralisação, em primeiro lugar, se deve às Olimpíadas, Copa do Mundo e outras obras do PAC, já que as empreiteiras que compartilham o feudo da construção civil, e o próprio país, correram pra lá, pois afinal são projetos mais datados. Como a Transposição nunca se conclui e pode durar uma eternidade, bastava fingir um começo, sendo que muitos pensam que nunca se concluirá.

Assim, a paralisação se relaciona com os recursos já gastos e a priorização de outros negócios e obras no país, e de quebra facilita a criação de situações que emparedem o governo, obrigando-o a soltar mais dinheiro, como vemos no anúncio de mais 1,6 bilhão de reais para retomar as obras, acrescidos ao custo inicial de 5 bilhões, em clara relação também com o calendário eleitoral.

E já se instalou uma queda de braço a respeito dos erros de engenharia, do material de qualidade inferior que foi usado e das pequenas camadas de concreto que já descascaram, racharam facilmente, mostrando a economia que as empreiteiras fizeram. Fora o superfaturamento em obras de quase todos os lotes, não é de hoje que o Tribunal de Contas pega no pé.

Tanto as empreiteiras e os grupos econômicos como o próprio governo jogam com o calendário eleitoral, e este último sabe que precisa mostrar alguma eficiência, manter acesa na mente do povo a idéia das águas do São Francisco como solução da seca.

Correio da Cidadania: Pelo quadro descrito, estamos claramente começando a pagar o preço, ou o sobrepreço, da pressa e do desrespeito aos trâmites legais para aprovação da obra, dentro de parâmetros adequados de qualidade e avaliação. Trata-se do velho jogo das empreiteiras, que começa com as construções a toque de caixa para, em seguida, contar com o dinheiro fácil do governo?
Ruben Siqueira: Sim. E por tocarem as obras, elas são importantes. Já o governo, tem que cavar buraco, mostrar trabalho. Usam do poder que têm, um oligopólio que funciona na base da pressão e do lobby. É um jogo de compadre, e nesse aspecto o atual governo não é diferente do governo FHC, que também tocava a obra nesses moldes. Quem tem o poder econômico é quem tem o poder político. E isso não mudou. Assim, o setor popular fica encalacrado nesse jogo, pois, no tempo de FHC, o movimento popular tinha mais condição de agregar forças com outras pressões sociais que ocorriam.

Por exemplo, em 2001 fizemos uma marcha com cerca de 12 mil pessoas em Bom Jesus da Lapa. Os discursos dos deputados federais Jaques Wagner, Walter Pinheiro, de outros deputados estaduais de então do PT, eram virulentos contra a Transposição. E naquele ano o lago Sobradinho, maior lago artificial do mundo, para aproveitamento hidrelétrico, atingiu só 5% de capacidade por causa da seca. A situação já não é tão grave, mas tem se repetido muito, demonstrando a vulnerabilidade do rio.

De acordo com o centro de estudos climatológicos da Califórnia, em pesquisas meteorológicas, o São Francisco está entre os oito rios mais degradados do mundo nos últimos 50 anos, e o que mais perdeu vazão nesse período, 35%. Isso está sendo demonstrado pela realidade de cada ano do rio. Naquele ano, foi o próprio rio quem impediu o governo FHC de seguir com esse jogo da Transposição, pois não dava pra começar a obra num rio com os cactos à vista.

Portanto, hoje em dia, o jogo, o lobby, em torno da Transposição é igual ao daquela época, impondo-se novamente. Aliás, segundo o professor João Abner, que tem estudos e dados muito firmes a respeito da obra, o lobby da Transposição – que junta políticos, empreiteiras, grupos econômicos, grupos da agricultura irrigada – é como um vírus inoculado no Estado brasileiro. Quando o governo é fraco, o vírus se manifesta, por estar mais sujeito a tais pressões. E acho interessante tal analogia, pois se comprova novamente.

Correio da Cidadania: A que você atribui o silêncio geral anteriormente mencionado? Acredita que o movimento ambientalista mais autêntico seja realmente menos incisivo nas críticas à Transposição do que às grandes hidrelétricas, no sentido de dissecar a obra ao público, mostrando as irregularidades, lobbies e jogos de interesse? Por quê?

Ruben Siqueira: Creio que isso tenha a ver com o imaginário que se construiu historicamente no país acerca do que é o Nordeste e o semi-árido: tempo ruim, ingrato, que depende do investimento federal. Aliás, foi daí que se constituíram as maiores fortunas do país. Os grupos Jereissati, Queiroz Galvão, OAS, Odebrecht, entre outros, alguns dos maiores do país, de expressão internacional, são nordestinos. A origem de tanta riqueza e patrimônio tem a ver com a indústria da seca, desde a época dos desvios da Sudene, essas coisas. É algo que está na mente do empresário brasileiro, do político tradicional, colocando na cabeça da população a história de que é por aí mesmo que deve ser feito. Assim, tivemos muitas obras hídricas ineficientes, que se prestaram a tal jogo.

E existe uma contradição: em nome disso se constituiu o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), e simplesmente se construiu a maior rede de açudes públicos do mundo, com 70 mil açudes no semi-árido, com capacidade de acumular muito mais do que a Transposição anuncia. É claro que há a sazonalidade, a temporalidade dessa água, pois é a característica do semi-árido: não é a falta de chuva, e sim a irregularidade das águas. Pode chover muito numa semana, noutra não, ou pode ter quatro meses muito chuvosos. Ou ainda um ano de intensas chuvas, que chega a ser prejudicial. Estou aqui há 30 anos e já vi muita roça se perder por excesso de chuva. Portanto, é um quadro de incerteza, não de seca. Mas continuam jogando com essa idéia.

E isso ocorreu também nas migrações de mão-de-obra, na constituição do exército de reserva dos pólos industriais do centro-sul, na construção de Brasília, majoritariamente realizada por nordestinos, também no ciclo da borracha no Norte... São coisas que fazem parte do nosso histórico, dos nossos sensos comuns, talvez seja isso que diminua a atuação de algumas correntes ambientalistas etc. É difícil se contrapor, quem vai ser contra “levar água aos sedentos”?

Correio da Cidadania: Criou-se e se consolidou a “cultura da seca”?

Ruben Siqueira: Sim, em torno da política, da indústria da seca, construiu-se a cultura da seca. E pra isso contribuiu a música de Luiz Gonzaga, a literatura de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, os quadros de Portinari... Produziu-se todo um ideário, até na cultura nacional. É muito recente o pensamento diferente sobre o semi-árido, coisa de 30 anos, no sentido de convivência e compreensão do local, já mais relacionado ao ambientalismo e com a idéia da ecologia ‘pegando’ mais na sociedade - a idéia de conhecer melhor como funcionam os biomas, que se constituem de vários ecossistemas. A Embrapa diz que são 72 sertões dentro do sertão semi-árido, micro-climas diferentes, com lugares onde chove mais que outros; a maior parte tem solo raso, mas existem regiões de solo mais profundo, mais sedimentado, favorecendo o acúmulo de água e evitando a evaporação. Pois o grande problema aqui é uma evaporação maior que a precipitação. Essa é a definição principal do semi-árido, mais científica, ambientalista.

O movimento social, como a ASA (com mais de 70 entidades sindicais, sociais, pastorais), se juntou, mesmo sem força política, em cenários mais dominados pelas ONGs, ficando com uma certa característica de executor de política pública. Bem ou mal a ASA já construiu 350 mil cisternas, de captação de água de chuva, algumas por 1300 reais, armazenando seguramente 16 mil litros de água, para uso de uma família por seis, oito meses. É solução? Ainda não, mas é parte dela, significa que na região é possível viver com água de qualidade para todas as necessidades. Livre dos discursos que sempre permearam a indústria da seca. Esse é o verdadeiro embate na questão, pois dizem que “somos contra levar água pra sedentos”... É bem o contrário.

Como diz o d. Cappio, se isso fosse mesmo a real solução da sede eu faria greve de fome a favor, não contra. Acontece que sabemos muito bem quais são os interesses em jogo, porque difundem essas idéias. Mas são interesses difusos aos da população, levando a Transposição para regiões populosas do semi-árido. A transposição passa pelos vales úmidos, não vai aos lugares secos, vai na direção dos rios Jaguaribe, Piranhas, Açu e Paraíba, quatro rios que terão suas águas potencializadas pela Transposição – se um dia for concluída, se um dia terminar esse jogo político-econômico-eleitoral, quem sabe um dia ela se conclui dentro de outra perspectiva...

Pois um gasto maior que a Transposição será para levar a água para onde ela é de fato necessária. A rede de 70 mil açudes, de mais de 100 anos, sofre do mesmo problema. As águas estão evaporando, não vêm sendo usadas porque estão dentro de latifúndios - ao poder local não interessa distribuir essa água, e sim manter o povo refém da política eleitoreira.

O jogo continua, não mudamos, mesmo no século 21. Optamos, ou melhor, eles optaram pela Transposição, que é a continuidade das grandes obras que não são solução. É apenas mais empoderamento para os poderosos de sempre. E até hoje as matérias que se fazem a respeito padecem dessas ambigüidades. O problema que se coloca hoje não é de questionamento da Transposição em si, e sim do paradeiro das obras, degradação dos canais, atrasos, falhas da obra.

Ainda mais em ano eleitoral, vão todos prometer que são amigos do rei, ou da rainha, e vão conseguir dar seqüência à Transposição. Agora, vão dar um gás na obra, vão retomá-la, porque senão a coisa complica para eles, tanto em relação aos grupos econômicos quanto em relação à população... Mas se é pra valer não dá pra saber... Já vamos para três anos e meio de obras e a coisa está neste estado. Talvez na próxima eleição, daqui a dois anos, revivamos a mesma situação. A coisa avança, pára, avança...

O professor Apolo Lisboa, da UFMG, declarou a convicção de que a Transposição não começaria. Se começasse, não terminaria. Se terminasse, não funcionaria. Se funcionar, não levará água a quem precisa. Parece meio sacana dar tantas hipóteses, fica mais fácil acertar uma, mas, pelo andar da carruagem, parece que o prognóstico dele pode se confirmar.

Correio da Cidadania: Diante das paralisações e atrasos no andamento da obra, você acha que seria positiva uma interrupção, tendo-se em mente que, afinal, estamos diante de uma obra extremamente controversa?

Ruben Siqueira: Eu acho que, do ponto de vista do debate e do confronto de idéias, a paralisação seria boa – é certo que não queríamos sequer o início das obras. Seria possível repensar as coisas, ver a fundo o que o semi-árido precisa.

O Atlas do Nordeste, feito pela ANA (Agência Nacional de Águas), propõe obras múltiplas, descentralizadas, de baixo, médio e alto custo, para resolver a necessidade de abastecimento humano, em todo o semi-árido. Primeiro fizeram o Atlas para cidades com mais de 5000 habitantes. Depois, para as cidades com populações abaixo disso. E quais são essas obras? Muitas delas são as tais adutoras para distribuir as águas acumuladas. É a parte que falta da política hídrica, que queira ou não existe através da rede de açudes.

Por exemplo, Pernambuco, Distrito Federal e Paraíba são os três estados de pior equação hídrica, isto é, mais população que capacidade hídrica. Boa parte das obras previstas no Atlas para Pernambuco tem o São Francisco como fonte, inclusive está sendo feito o canal do sertão. A Paraíba também está fazendo. Sergipe já leva água do São Francisco para Aracaju, que está fora da bacia, através de adutoras, que inclusive tiveram sua capacidade duplicada para atender a demanda de desenvolvimento de Aracaju. É o que defendíamos, que não se fizesse a Transposição, e sim a adução das águas necessárias ao abastecimento do eixo leste. No eixo norte não faz sentido.

O canal que sai do Castanhão, no rio Jaguaribe (Ceará), o maior açude do país, tem capacidade de 6 bilhões de metros cúbicos e, segundo o professor João Abner, toda a água da Transposição é a exata transpiração do Castanhão. A água acumulada, que não se usa, é igual à água que vai ser transposta, 128 metros cúbicos por segundo, no máximo. Portanto, fizeram um canal que não funciona – o Canal da Redenção, Canal do Trabalhador –, que leva água do Castanhão pra Fortaleza. Aquilo é um exemplo do que pode ser a Transposição. O governo Ciro Gomes fez em seis meses o Canal do Trabalhador, quando do colapso hídrico de Fortaleza, mas não funcionou, uma mega-obra que não ajudou até hoje.

Recentemente, o movimento social levantou a lebre de que o povo era proibido de pegar água desse canal, havia vigilância, câmera, segurança armada. Fizemos tanto barulho que hoje podem pegar. Foi uma conquista, porque era um escândalo, tratava-se de água que as pessoas precisavam captar pra uso doméstico, para os animais. E a idéia da Transposição é mais ou menos a mesma que denunciamos nesse caso.

Correio da Cidadania: Uma eventual interrupção da obra abriria caminho para estas propostas alternativas, além de mais efetivas, tendo em vista a real conformação hídrica e climática do nordeste?

Ruben Siqueira: Essa é a nossa esperança, a nossa proposta. A coisa é complicada, tem muita corrupção, projetos mal feitos, portanto, mais argumentos para colocarmos em discussão. Vamos fazer como o d. Luiz Cappio propôs: vamos chamar a academia, os movimentos, a sociedade, também os empresários, todos os interessados, e discutir isso abertamente, com transparência, democracia, pra encontrar a melhor solução. Mas é utopia democrática, porque na prática não será assim. De toda forma, fica a chance de fazer a educação política do povo, que só sofre deseducação hoje em dia.

Todo esse trabalho maravilhoso, de formiguinha, dos movimentos sociais do Nordeste, de pensar essas idéias, entender e saber lidar com a natureza como ela é, e conseguir tirar proveito, corre risco, pois vem gente que fala “pra que vou querer cisterna, barragem subterrânea? O São Francisco vem aí”. Eu ouvi isso!

Esse é o problema. Pelo menos enquanto CPT, somos agentes educadores do povo, do crescimento, da politização e consciência popular. Essa briga toda, no final das contas, tem isso por trás, fazer o povo tomar conhecimento da realidade do semi-árido e dizer claramente o que quer, compreendendo o interesse do capital. Agora, na base da imposição de cima, fica difícil.

Se a paralisação das obras permitisse fazer esse debate, retomaríamos o lugar em que ficamos parados lá atrás, na época das maiores mobilizações. Quando as obras começaram, o movimento social, a articulação popular São Francisco Vivo, com mais de 300 entidades, nos juntamos com um Fórum no Ceará, chamado “Por uma nova cultura de água e contra a Transposição”. Também se fez algo semelhante na Paraíba e no Rio Grande do Norte, principalmente na região dos rios Piranhas-Açu e Apodi, um movimento social forte, sindical, com apoio da Cáritas, CPT, algumas ONGs, assim como na chapada do Apodi, Ceará, onde já foram mortos agricultores que fizeram denúncias sobre a contaminação do rio por agrotóxicos. E eles resistem lá, não querem a água da Transposição, os pequenos agricultores, criadores, apicultores, multicultores têm essa posição firme.

A maior miséria do Nordeste está na beira do São Francisco. E isso continua. Ter água perto não tem significado progresso, saúde, educação. Mas não é essa a discussão que está posta, o governo quer que o grande eixo do desenvolvimento do Nordeste seja o São Francisco. Só que é o contrário!

Assim, quando começaram as obras, deslocamos o foco mais para os atingidos, no vale do Jaguaribe, região de Muricy, Brejo Grande, por onde entra o canal do eixo norte. O rio Salgado é de pequenos imigrantes. Quando começou a obra, perderam a safra. Quem perdeu a casa, não ganhou nova, não foi devidamente indenizado, ou ganhou indenização, mas já com problemas. Depois, fizemos um grande encontro de atingidos pela Transposição em Campina Grande, 2010, mas não deslanchou. Por duas razões: a dificuldade de disputar a opinião pública, trabalhando em cima das contradições, e a falta de parceria, já que o próprio movimento social não encampou muito essa luta.

Correio da Cidadania: Estamos, portanto, a seu ver, em um momento de baixa organicidade, no campo à esquerda e entre os movimentos sociais? Quanto à esquerda, você a sente desconectada da vida real das pessoas, de seus conhecimentos locais e herdados através das gerações, de modo a ouvir e se organizar sob novas dinâmicas, mais afeitas à participação de tais grupos?

Ruben Siqueira: O MST, por exemplo, nunca entrou muito nessa luta. É que, na beira do São Francisco, em PE, em uma das áreas há a maior quantidade de assentamentos, em fazendas de gente que obteve financiamento do Banco do Brasil no passado para plantar mandioca; e plantou maconha. Depois disso, essas terras viraram assentamentos.

Fizemos dois grandes mutirões, com ajuda do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), nos juntamos e fomos às regiões por onde passariam os canais, a fim de conversar com o povo e levar informações, debates, de modo a criar consciência e educação política.

Mas, depois disso, vieram as eleições e, para se ter uma idéia, no Fórum que citei do Ceará, todo mundo era envolvido com o PSOL. Depois das eleições, acabou a luta contra a Transposição. Não houve seqüência, ou seja, tivemos muitas dificuldades no nosso próprio campo, o que persiste até hoje. Descobrimos que o desenvolvimentismo de esquerda tem uma face pior que o de direita, porque tenta disciplinar o movimento social e controlar o papel a ser executado por eles, seus questionamentos.

O que fazemos na beira do São Francisco? Trabalhamos com contradições. Por exemplo, energia eólica. Trabalhamos com os atingidos por ela. É uma maravilha? Não é bem assim, está desgraçando áreas inteiras, pastagens, comprometendo nascentes dos poucos rios perenes da Chapada Diamantina. A mineração lasca com tudo por aí, em vários territórios de populações tradicionais, indígenas, quilombolas. Ou seja, nos últimos tempos, quem lutou na bacia do São Francisco foram os habitantes originários, indígenas, quilombolas. E, mesmo assim, só se conseguiu um decreto de terra quilombola, não saiu nada para reforma agrária. É difícil, no nosso próprio campo, ter uma unidade e pensamento crítico em relação ao governo.

Quando pisam no calo dessas pessoas, moradores locais, elas levantam. Quando aparece uma mineradora pra tomar territórios, o pessoal se levanta, se mobiliza. Mas falta quem organize, qualifique e leve a resistência espontânea a outro patamar.

Correio da Cidadania: Você diferenciaria, de algum modo, os últimos governos diante dessa obra, começando por FHC, passando por Lula e culminando com Dilma?

Ruben Siqueira: Como falamos no início, existe uma linha comportamental estratégica em relação à Transposição, que não mudou até hoje. Eu diria que a grande diferença dos governos Lula e Dilma para o de FHC é exatamente essa que mencionei, de ter menos unidade e contundência do nosso lado, da resistência popular, de proposição de alternativas.

O Programa 1 Milhão de Cisternas começou no governo FHC, e avançou bastante nas cisternas. Depois, no governo Lula, era pífio, mas depois houve uma retomada, porque perceberam que ficariam abaixo do governo tucano.

Há uma estratégia política fundamental nisso, subterrânea, nada transparente: o jogo entre poder econômico e político. A indústria da construção civil, cimento, ferro. Estamos falando de Votorantim, Gerdau, das grandes empreiteiras. É absurdo o que as empreiteiras cresceram. Isso não mudou. Não vemos diferença. Pelo contrário.

Correio da Cidadania: Portanto, seria a velha questão, quando se divide a resistência e a crítica, é muito mais fácil passar o trator por cima.

Ruben Siqueira: Exato. Não existe resistência, não há um acúmulo de luta contra o PT. Somos muito críticos, portanto, do papel desempenhado pelo governo.

Se pegarmos para análise o programa Avança Brasil do FHC e o compararmos com o PAC, vamos ver que é a mesma coisa. É tudo pra fora. Ferrovia Transnordestina, aeroportos, portos, rodovias para chegar a uma saída para o Oceano Pacífico... Eu me lembro de uma crítica da professora Tânia Bacellar, na época de FHC, numa reunião em Recife, na qual ela foi a principal palestrante. Ela mostrava esta conexão: um desenvolvimento voltado para fora. Não é pra dentro, potencializando o país, criando mais mercado interno, progresso para o povo. É para a globalização, os mercados externos.

E hoje o Brasil continua desempenhando papel subalterno, com a diferença que se aproveita do momento econômico mais favorável. Não é nada social, ambiental, não estão nem aí pra isso. Basta ver como tudo piora nesse sentido, o Código Florestal que se tenta aprovar. Aqui na Bahia, mas em outros estados ocorre o mesmo, acabaram com as prerrogativas do Conselho Estadual de Meio Ambiente, passando-se muitas delas para os municípios. E passar estes atributos para o poder local dá no mesmo que extinguir tais prerrogativas... Veja o Código Florestal, o que é aquilo? É acabar com a lei que nunca cumpriram, legalizar a ilegalidade do passado e torná-la legal no futuro, de modo a manter as mesmas depredações que vemos.

A não ser pela queda da unidade do movimento social, não há muita diferença entre os governos citados. Aí vem a conversa de que é difícil se opor a esse governo porque o adversário principal é pior... Eis o quadro.

Claro que ajuda o fato de lutar com os de baixo, da base, e não nas intermediações políticas, o que de alguma forma mantém uma firmeza do movimento. Mas falta articulação. Por isso fazemos um esforço danado, pelo menos na bacia, de juntar atingidos pela mineração, projetos de energia, hidrelétrica, nuclear, do parque eólico, do agrocombustível, e tratar de descortinar o que acontece conosco, que necessidade de produzir energia é essa? Pra quem? Isso ainda temos bastante chance de fazer, apesar das dificuldades.

Correio da Cidadania: A respeito do atual governo, o que teria, finalmente, a dizer sobre a polêmica, para não dizer escandalosa, suspensão da entrega das cisternas do projeto que visava instalar 1 milhão delas no semi-árido?

Ruben Siqueira: Foi escandaloso. Temos um ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, que é de Petrolina, e um projeto político ligado ao Eduardo Campos, governador nordestino de maior sucesso, do bloco da base aliada, do poder. E pra viabilizar tal projeto sacrificam algo que é a face mais avançada do ponto de vista político e ambiental no Nordeste, no caso, o programa 1 Milhão de Cisternas, além do Projeto 1 Terra + 2 Águas (P1+2), como propusemos, e eles descaracterizaram completamente. Era um projeto de reforma agrária no semi-árido, terra pra todos e duas águas, para casa e para produção. Só quiseram dar a segunda água, da produção, mas nunca quiseram dar a terra.

Aí entra a luta da ASA, e a questão essencial do Nordeste, que nunca foi a água. A questão essencial do Nordeste é a terra. Pra se ter idéia, o semi-árido baiano é o maior do Brasil, mais ou menos metade do semi-árido está na Bahia. Cerca de 90% dos agricultores baianos do semi-árido têm menos de 100 hectares. A própria Embrapa diz que uma família da região precisa, para viver em condições ideais, de 300. Portanto, o problema aqui é terra, não é água. Até porque quem tem terra tem “mais chuva”, mais subsolo, mais possibilidades de captar água, de ter rios temporários, veredas... Mas isso não se quer discutir e encarar.

Portanto, a dificuldade do P1+2 foi essa: mexer na terra. Porém, aí vamos mexer no núcleo do poder da República. Coisa que nesse país não pode.

Fato é que, quando o governo federal viu a besteira que ia fazer, recuou. Percebeu que a manobra das cisternas tinha muito a ver com o projeto regional, do ministro, que visava ficar mais conhecido para depois ser candidato ao governo de Pernambuco. Dizem que a empresa que faria as cisternas de plástico, muito mais onerosas e que viriam de fora, era de gente ligada a ele. Porque os Coelho são uma família envolvida em vários setores da política e da economia. Denunciou-se que as empresas que fariam as cisternas de plástico no lugar das cisternas da ASA são ligadas ao grupo dos Coelho. Não duvido, mesmo que não haja comprovação.

É o exemplo claro do que foi citado no início. A indústria da seca ainda faz e realimenta o poder no Nordeste. Em função de uma candidatura, um projeto político, manipula-se a água e suas respectivas políticas públicas.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.