quarta-feira, 27 de março de 2013

Fórum Social Mundial encontra a Primavera Árabe em Túnis



Cerca de 30 mil pessoas são esperadas para o FSM 2013 | Foto: Maurício Hashizume
Por Maurício Hashizume para a Carta Maior
Túnis – O “berço” da Primavera Árabe recebe oficialmente a partir desta terça-feira (26) mais uma edição do Fórum Social Mundial (FSM).
Desde 2001, o FSM, que surgiu em contraposição ao Fórum Econômico Mundial, vem reunindo periodicamente dezenas de milhares de pessoas que se deslocam das mais distintas partes do mundo para discussão de alternativas aos sistemas de hegemonia e dominação (políticos, econômicos, culturais etc.). Esses sistemas, justamente, estão no cerne das mobilizações da sucessão de rebeliões populares que têm pressionado e até já derrubaram algumas ditaduras que já duravam há décadas em países do Norte da África e do Oriente Médio.
Com uma larga experiência nas edições anteriores do FSM, a ativista uruguaia Lilian Celiberti veio até a capital da Tunísia e espera ouvir e aprender, saber mais sobre como se sentem e de que formas pensam os protagonistas das lutas que vêm desafiando regimes marcados por autoritarismos, em nome da “dignidade”, que vem a ser o tema central desta edição de 2013.
A dignidade (“karama”, na língua árabe) traz consigo, no entendimento de Lilian, uma percepção enfática da urgência e da gravidade dos problemas sociais concretos em curso mundo afora ou, como ela prefere pontuar: uma “perspectiva radical da violência das relações humanas não só em nível individual, mas também coletivo”.
O contexto em que se realizará este encontro internacional é tenso e complexo, sublinha a militante feminista que foi sequestrada em Porto Alegre durante o regime militar na Operação Condor. A imolação de um vendedor de rua da cidade de Sidi Bouzid que teve o seu carrinho de frutas e verduras impedido de trabalhar pelas autoridades locais, em dezembro de 2010, catapultou uma onda intensa de manifestações massivas que abalou as estruturas da ditadura comandada pelo militar Zine El Abidine Ben Ali. “É um símbolo extremo, muito forte. Que mundo é esse em que a forma de se expressar é a imolação?”.
Autoritário no poder desde 1987, Ben Ali caiu e se refugio na Arábia Saudita após contínuas mobilizações que culminaram com a massiva celebração de 14 de janeiro de 2011; durante os protestos e o conflito com forças policiais, outras dezenas de manifestantes também perderam suas vidas. O partido islâmico Ennahda, que venceu as eleições de outubro daquele mesmo ano, vem sofrendo intensas pressões por conta da continuidade dos problemas sociais e de sinalizações de restrições de ordem religiosa, que ganharam ainda mais força – inclusive provocando a renúncia do primeiro-ministro Hamadi Jabali, do Ennahda – com o assassinato cujas responsabilidades ainda não foram esclarecidas do principal líder da oposição, o advogado de esquerda Chokri Belaid, menos de dois meses atrás.
De acordo com Lilian, o FSM em Tunis consiste também em uma ocasião-chave para fazer ecoar as vozes dos protagonistas destas contestações, sem tantas camadas de mediação, visto que povos e movimentos do mundo árabe tendem facilmente a ser estigmatizados. “Tudo nos chega sempre muito descontextualizado. Vem sendo dada, por exemplo, muita ênfase ao papel da internet e das redes sociais para a chamada Primavera Árabe, sem que seja dada visibilidade à ocorrência de outras diversas formas de organização de base [reuniões, debates, articulações etc.]“, comenta Lilian. A despeito da expectativa de contato direto com este “novo olhar sobre a dignidade. Inovador e desafiante”, ela também revela certo medo no que diz respeito a indícios de recrudescimento político, especialmente quando se trata de alguém que viveu na própria pele os anos de chumbo das ditaduras na América do Sul.
Enfrentamento às monoculturas
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que vem acompanhando muito de perto o processo do FSM desde os seus primórdios, espera-se que esta edição que se inicia contribua para o processo democrático na Tunísia, que experimenta um quadro de convulsão política, econômica e social que se estende Magrebe e Machereque. “Apesar de assumir a sua dimensão mundial, o Fórum tem, desde a sua origem em Porto Alegre, uma forte ligação com inquietações locais”, observa o professor da Universidade de Coimbra.

Boaventura realça que as duas margens do Mediterrâneo, historicamente a partir de onde se espalhou o capitalismo, vivem hoje uma crise, que tem diferenças e semelhanças. O neoliberalismo selvagem faz estragos em nações do Sul da Europa (como Grécia, Portugal, Espanha e Itália), bem como os modelos econômicos adotados por países do Norte da África (como a própria Tunísia e o Egito) excludentes estão na Primavera Árabe.
Enquanto no Sul da Europa, constata-se que a crise é incompatível com a democracia (cenário em que as lutas se concentram na tentativa de preservar conquistas sociais para que elas não percam o seu sentido), no Norte da África e em pontos do Oriente Médio, dissemina-se a ideia de que a democracia é crucial para reverter crise econômico-financeira. “Ditaduras foram eliminadas, mas o modelo econômico selvagem continuou”, emenda. O cenário de deterioração econômica é acompanhado das dificuldades enfrentadas em torno de uma nova Constituição após a queda de Ben Ali e o risco da queda da separação entre Estado e religião (por meio da sharia islâmica). Nesse sentido, o FSM tem uma contribuição relevante aos países dos levantes quanto à busca de alternativas pós-neoliberais.
Para Boaventura, o ideal de um “outro mundo possível”, lema clássico e crucial do Fórum Social Mundial, deve levar obrigatoriamente em conta a questão da “dignidade”, tema-chave do encontro deste ano. A dignidade, acrescenta o professor, resulta de uma conquista de autonomia e de respeito e embute o sentido mais profundo da diversidade. Nessa linha, a Primavera Árabe que impressionou o mundo em sua luta contra a monocultura política das ditaduras, tem também o desafio de enfrentar, além dos já citados desafios no campo econômico, a monocultura religiosa.
Nos dois dias que antecederam o Fórum, Boaventura esteve reunido com representantes de movimentos sociais e investigadores sociais de 16 países para o diálogo e a troca de experiências e conhecimentos sobre a “dignidade” em mais uma oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), resultado da parceria do Projeto ALICE, coordenado pelo sociólogo, e a organização não-governamental feminista El Taller.
Na sede do comitê tunisiano de organização do Fórum Social Mundial 2013, os integrantes da equipe são, em sua maioria, jovens. Faixa e adesivos de Chokri Belaid, o líder da esquerda assassinado, são vistos no recinto. Uma entre os milhões de jovens tunisianos que fizeram e continuam a fazer parte das rebeliões na Tunísia, Zahra Khammassi reforça a importância das mulheres e da juventude nas mobilizações sociais, vê como muito bons olhos a abertura para intercâmbios propiciada pelo Fórum, mas não deixa de denunciar a “ambiguidade” do processo em curso. “As mobilizações vieram e a ditadura tombou. Mas, até agora, quem realmente se beneficiou do quer fizemos?”
Organização e abertura
Cerca de 30 mil pessoas são esperadas para o FSM 2013. Tenda montada na principal avenida da cidade – Habib Bourguiba, o líder da independência que governou o país de forma ditatorial por 30 anos (1957-1987) antes de Ben Ali – recebe os participantes. Postos menores foram montados no aeroporto e até nos hotéis para facilitar a acolhida. Mais de 2,7 mil organizações devem promover aproximadamente 1,5 mil atividades até o dia 30 de março.

A programação do primeiro dia do Fórum começa com a Assembleia das Mulheres, no auditório da Faculdade de Direito na Universidade El Manar, espaço que concentrará o conjunto de atividades programadas. “Queremos que nossa presença seja tão grande como o são nossas lutas contra as discriminações e tão diversificada como o são as formas de violência que sofremos”, realça a convocação assinada pelas mulheres tunisianas.
A tradicional marcha de abertura do FSM 2013 terá início às 16h, com saída da praça 14 de janeiro de 2011, que foi um dos epicentros das recentes revoltas. A multidão ganhará as ruas de Túnis até o Estádio Menzah, ponto final da caminhada onde, já à noite, e apresentará o cantor brasileiro e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil.