O espetáculo do terror olha para a América Latina
A paz não pode ser a expressão pueril de boas consciências, mas a invenção de uma alternativa à lógica expansionista. Isso tem que ficar muito claro quando o alvo volta a ser o velho quintal latino-americano.
Gilson Caroni Filho
Chegamos ao final de 2008 com o terrorismo estadunidense inabalável em sua determinação. A destruição, no final de 2005, de gravações que mostrariam práticas de tortura em Guantânamo tem, ao que tudo indica, as digitais da Casa Branca. Bush, é claro, manterá a linha de que não sabia da existência delas e, com isso, somaremos cinco anos de sistemáticas violações do Direito Internacional. Voltemos no tempo, já que a América Latina está na alça de mira novamente.
Um ano antes da destruição dos vídeos, em 2004, o New York Times, em editorial de primeira página, admitiu ter usado fontes duvidosas para fazer reportagens sobre o Iraque. Segundo os editores, muitas informações falsas, utilizadas sem o mínimo de apuração, provinham de exilados iraquianos financiados pela CIA ou de falcões republicanos. Ambos interessados em textos que respaldassem a invasão do país árabe.
O móvel da autocrítica era a crescente perda de credibilidade do jornal. Se o repórter Jason Blair inventava as matérias que publicava, o "Times" parece ter assimilado algo da "lição" ministrada por seu ex-jornalista. Enveredou pela ficção ao afiançar, em vários artigos, a existência de armas de destruição em massa no país então governado por Saddam Hussein.
Agindo como arma ideológica de um corpo político imperialista, o mais prestigiado veículo do mundo mostrou que o campo jornalístico, em situações-limites, pode ser tão truculento e dissimulado como o poder que busca legitimar.
Nassíria, Najaf e Basra não constavam do "tour" idealizado pelos falcões de Washington. Não como locais de resistência. Muita menos a coragem suicida dos fedayeens e de outras milícias fiéis ao antigo regime de Saddam Hussein estava prevista na propaganda ideológica que pretendia transformar a invasão de um país destroçado em "guerra de libertação". Dos xiitas se esperava apoio, mas, para desgraça dos senhores da guerra, eles não leram o Washington Post e se consideravam árabes - acima de qualquer projeção logística dos plantonistas de Harvard.
Mísseis caindo em território turco, tempestades de areia que desnorteavam tropas, além de bombas inteligentes matando população civil no centro de Bagdá, não estavam no roteiro original. Ou estavam e foram ignoradas pela premência da ação? A imprensa americana bem que dedicou espaço a desentendimentos prévios entre o ex-secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, e estrategistas do Pentágono. Mas se nada disso punha em risco a vitória militar, esta era uma ofensiva perdida no campo político. Como sabemos, faltou aos Estados Unidos conseguirem da sociedade civil mundial uma legitimação prévia para a ação bélica. Não se sabe se por falta de espaço para manobra ou presunção imperial, o fato é que as tropas americanas partiram para o Oriente Médio ignorando resoluções da ONU e manifestações pacifistas em escala planetária.
Ao subestimar a arena política, a potência hegemônica apostou nos meios mais letais de que dispunha: a tecnologia bélica de última geração e o formidável conglomerado midiático. Cometeu dois erros: ignorou a margem de erro da primeira e as contradições do segundo. Embora disposta a atuar como força-tarefa, narradora de uma cruzada ao mesmo tempo épica e asséptica, a imprensa americana tinha um limite: se os fatos não podiam ser mediados ao seu livre arbítrio (e de fato não podiam), havia que se manter um mínimo de verossimilhança com o que acontecia. Caso contrário, Forrest Gump descobre que tem parceiro morrendo e não festeja mais a " guerra contra o terror".
Quem leu Guy Debord sabe que o espetáculo assegura integridade a uma sociedade atravessada por suas próprias contradições. Garante ao indivíduo a permanente sensação de aventura como recompensa por um projeto social que o exclui como elemento ativo. Quando o ruído da história concreta se faz ouvir, as imagens se transformam no oposto do que pretendiam. São, à velocidade da luz, a mais formidável fábrica de ausência de sentido: os corpos dilacerados de marines, os restos calcinados de tanques e helicópteros rompem a barreira do fetiche da mercadoria. O imperialismo, sem a discreta roupagem da CNN, mostra-se em sua nudez obscena. Homens estúpidos e máquinas inteligentes marcham para a barbárie. As emissoras árabes al-Jazira, Abu Dabi e al-Arabya quebraram o encantamento. Rambo não existe. Ao menos, como algo desejável eticamente.
O antiespetáculo cobra a fatura. No briefing diário, o ex-porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, demonstrava irritação com perguntas de jornalistas sobre uma possível guerra prolongada. A BBC, em Londres, começava a se irritar com o "fogo amigo" e questionava o projeto americano para a " reconstrução" do Iraque. Parecia reproduzir a inquietação do ex-ministro Tony Blair com a rapinagem do amigo todo poderoso Dick Cheney.
A CNN teve que negar, com insistência, que esteja fazendo uma "cobertura asséptica". Simuladamente ou não, pouco vem ao caso, o descredenciamento da al-Jazira pela Bolsa de Valores de Nova York provocou o repúdio dos principais meios de comunicação americanos. Entropia braba e das boas. Exemplar demonstração de fissuras indesejáveis.
O que gostaria de reiterar é que não foi algo intrínseco à produção do espetáculo que o inviabilizou. Foi o processo que precedeu sua elaboração. Da truculência imperial que dispensou o consenso derivam os tropeços militares e a hegemonia irreversivelmente arranhada. O antiamericanismo nunca foi tão exacerbado como hoje. O arrazoado dos invasores não convence a ninguém. Em condições tão inóspitas, pedir à mídia americana que colonize corações e mentes equivale a solicitar que um drama nórdico tenha como cenário as colinas de Golã. Em algum momento, a razão cobra pedágio ao clichê. É quando a mídia, para sobreviver, tem que se reinventar. E Bush se aborrecer.
A paz não pode ser a expressão pueril de boas consciências, mas a invenção de uma alternativa à lógica expansionista. Isso tem que ficar muito claro quando o alvo volta a ser o velho quintal latino-americano. Chávez e Cristina Kirchner terminam o ano como protagonistas de novas fitas. Como objetos preferenciais das velhas operações de inteligência estadunidenses. Não façamos pouco de velhos roteiristas do terror.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.