segunda-feira, 21 de abril de 2014

PENSE - Reflexões Espíritas Acerca da Propriedade


  • Reflexões Espíritas Acerca da Propriedade



  •  Eugenio Lara


  • Os bens da terra são um dos fatores fundamentais para a evolução intelecto-moral, pois é mediante sua produção, reprodução e aquisição que o Ser exerce o primeiro de todos os direitos naturais: o direito de viver. É conceituado pelo Espiritismo de uma maneira muito abrangente: é “tudo o quanto o homem pode gozar neste mundo”. Alimentação, vestuário, transporte, lazer, todo o conforto proporcionado pela tecnologia, a produção artística, cultural etc. fazem parte, portanto, dos bens da terra.

    A primeira baliza colocada pelos espíritos na obtenção desses bens está na oposição entre o necessário e o supérfluo. Quanto ao necessário, a Natureza é “uma excelente mãe”, mas em relação ao supérfluo, sempre haverá para uma grande maioria a insuficiência de recursos, a ausência do necessário para viver, do bem-estar, consequências normais do desperdício e má aplicação dos recursos naturais.

    A proposta de uma nova sociedade passa necessariamente pela busca do bem-estar para todos. A igualdade absoluta, conforme os espíritos, é uma quimera, mas a igualdade relativa é algo a ser atingido. Enquanto um grande contingente da humanidade não tiver acesso à posse do necessário para viver, a felicidade nesse mundo será impossível.

    Segundo dados da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas), 32% da população mundial (que vive nos países do Primeiro Mundo) consomem 75% dos bens da terra; controlam 88% do PMB (Produto Mundial Bruto); detêm na mão 80% do controle dos investimentos; 90% das atividades industriais e a quase totalidade da produção de pesquisa científica. Esses países são os açambarcadores dos bens da terra, um dos grandes responsáveis, até o momento, pela miséria do Terceiro Mundo.

    Ao nível de nosso país, podem ser citadas algumas informações sobre a distribuição da riqueza que demonstram o grau existente de desigualdade econômica. De 95.704.423 (população economicamente ativa), cerca de 40.447.453 ganham menos de três salários mínimos (IBGE - Anuário Estatístico do Brasil - 1985). Segundo dados fornecidos pelo ex-ministro da Reforma Agrária, Nélson Ribeiro, 67% dos brasileiros ingerem menos calorias diariamente do que o mínimo necessário para a obtenção de um estado de vida digno. A distribuição das terras é extremamente desigual: dos 586 milhões 877 mil e 351 hectares cadastrados pelo INCRA, 413 milhões 797 mil e 19 hectares (quase metade da área do território nacional) estão em poder de quase 1.500.000 latifundiários (3,7% da população brasileira). Os 173 milhões 80 mil 332 hectares restantes, é o que sobra para as 12 milhões de famílias (cerca de 60 milhões de pessoas), um contingente com pouquíssima ou quase nenhuma terra (dados fornecidos pelo INCRA - Revista “População & Desenvolvimento”, abril de 1986).

    Esse estado de desigualdade somente poderá ser modificado através do conflito institucional e/ou político. O conflito armado já está ocorrendo em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, especialmente no campo. Se não podemos, como espíritas, ser a favor da violência em circunstância alguma, temos de considerar que, em certas situações, o conflito armado surge como uma questão de legítima defesa da soberania e autodeterminação de um povo ou grupo social.

    Há uma minoria no Brasil e no Mundo, detentora dos meios de produção e da hegemonia política, que está impedindo a marcha do progresso da humanidade e será arrastada “pela torrente que pretende deter”. Dela, nada podemos esperar. Nesse sentido, a afirmação do presidente da UDR - União Democrática Ruralista, entidade de ultradireita, formada por grandes proprietários de terras é bem ilustrativa: “a propriedade da terra é intocável”. O setor mais reacionário da classe dominante é, sem dúvida, a burguesia agrária e que devido a sua intervenção fascista dentro do campo, só no ano passado foram registradas, até 15/07, 160 mortes (dados do MIRAD) e segundo dados da Comissão Pastoral da Terra e da CONTAG, em cada dois dias morrem cerca de três pessoas.

    A luta pela posse da terra é ainda a luta fundamental dos trabalhadores do campo e da cidade. Os meios de produção são de propriedade particular, os interesses do capital se sobrepõem aos direitos do trabalhador. O objetivo de nossa sociedade ainda é o lucro em detrimento da realização do homem, do bem-estar coletivo. É preciso que o sistema econômico atual fundamentado na propriedade privada dos meios de produção seja destruído: uma tarefa que depende da ação de homens progressistas e da grande massa de expropriados e explorados do Brasil e do mundo.

    O Espiritismo estabelece uma diferenciação entre a propriedade pessoal, fruto do trabalho honesto e a “propriedade destinada ao uso geral” (Deolindo Amorim - “O Espiritismo e os Problemas Humanos”, cap. V - USE). São dois conceitos bem distintos, que devido a interesses ideológicos dos defensores da propriedade privada dos meios de produção, têm sido confundidos num único princípio.

    A verdadeira propriedade são as nossas conquistas intelecto-morais. Esse conceito, fundamentado na ideia do Ser imortal e na transitoriedade da existência física, ao lado da compreensão dos princípios fundamentais do Espiritismo, estabelece inevitavelmente uma nova ética para a aquisição dos bens da terra, seja na forma individual ou coletiva.

    A acumulação e o gozo dos bens da terra não são contrários à Ética Espírita, porém, devem ocorrer em família, em comunidade, sem a presença do egoísmo e do orgulho, chagas corrosivas de qualquer ordem econômica, seja capitalista, pré-socialista ou socialista.

    Em relação à propriedade de uso geral ou coletiva, a proposta espírita é nitidamente cooperativista, distributiva e igualitária. A propriedade conseguida através da apropriação da mais-valia, do trabalho não-pago ao trabalhador é ilegítima; a sua legitimidade deve se fundamentar na liberdade de produção e aquisição de bens, em sua distribuição igualitária na obtenção da posse do necessário para viver e na solidariedade e fraternidade entre os trabalhadores.

    Os que se opõem à coletivização da propriedade de uso geral ou coletiva, o fazem em nome da “liberdade” (entenda-se livre-iniciativa, “laissez-faire”) e colocam a propriedade como um bem inviolável, absoluto. Ora, essa “liberdade” defendida pela burguesia não tem nada a ver com a liberdade de se adquirir um carro, uma habitação, um bem de uso pessoal. É necessário limitar a produção e aquisição dos bens da terra à posse do necessário para viver.

    Sobre os limites ao direito de propriedade, Kardec pergunta:
    885. O direito de propriedade é sem limites? – “Sem dúvida, tudo o que é legitimamente adquirido é uma propriedade. Mas, como já dissemos, a legislação humana é imperfeita e consagra frequentemente direitos convencionais que a justiça natural reprova. É por isso que os homens reformam suas leis à medida que o progresso se realiza e que eles compreendem melhor a justiça. O que num século parece perfeito, no século seguinte se apresenta como bárbaro.”

    O direito de propriedade, portanto, não é absoluto. Qualquer sistema de leis estará mais próximo das leis naturais se colocar limites à aquisição dos bens terrestres e prever mecanismos que orientem essa aquisição de forma limitada em função do bem-estar para todos, sempre dentro de bases legítimas.

    Isso somente será possível numa nova sociedade, com uma economia socialista e cooperativista, onde os indivíduos em sua grande maioria sejam espíritos em processo de regeneração intelecto- moral. E a nossa tarefa enquanto espíritas idealistas e homens progressistas que somos é construir essa nova sociedade aqui e agora.

    ■ Nota do PENSE: Tema apresentado no painel “Propriedade”, dentro do tema “Espiritismo e Constituinte”, no II Encontro Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita, realizado em São Paulo de 28 de fevereiro a 3 e março de 1987.

    Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, maio de 1987. Licespe – Santos-SP.


    Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), é autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita e em edição digital: “Racismo e Espiritismo”; “Milenarismo e Espiritismo”; “Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico”; “Conceito Espírita de Evolução” e “Os Quatro Espíritos de Kardec”.
    E-mail: eugenlara@hotmail.co
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