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quarta-feira, 10 de abril de 2013

O Brasil que usa crianças como empregadas domésticas



A mudança constitucional que garantiu mais direitos às empregadas domésticas também teve o mérito de ampliar o debate sobre as mais de 250 mil crianças e adolescentes que realizam trabalhos domésticos em todo o país. A situação é relativamente aceita pela sociedade – das “meninas que são pegas para criar” no interior por famílias das capitais, passando pelas filhas das empregadas que vêm “acompanhar a mãe para não ficarem sozinhas em casa” até aquelas que são, de forma surreal, contratadas diretamente para tanto. “Meninas”, sim, pois quase 94% do total explorado são de garotas.
Isso sem contar que, não raro, a família manda o menino estudar e deixa a menina com os afazeres domésticos, conforme relatórios da Organização Internacional do Trabalho. Vemos tudo como normalidade. Para muita gente, o trabalho infantil liberta. Ainda mais quando ele é hereditário.
Posto, abaixo, a boa matéria de Igor Ojeda, da Repórter Brasil, sobre o trabalho infantil doméstico. Vale a pena ser lida.
Pequenas domésticas, violação invisível – por Igor Ojeda
Todos os dias, quando Cristina* acordava, o mundo ainda estava escuro. Era rotina: inclusive aos sábados e domingos, a garota de 12 anos levantava às quatro e meia da madrugada. Não dava tempo de ficar rolando na cama. Tinha de se aprontar logo e ir ao restaurante da tia ajudar com a arrumação. Só três horas depois, por volta das sete e meia da manhã, é que tomava banho para ir à escola.
Na hora do almoço, voltava ao restaurante, onde ficava até as quatro e meia da tarde limpando, ajudando no caixa, fazendo entrega. Mas seu expediente não terminava aí. Retornava à casa da tia e levava mais duas horas limpando, lavando, passando. Depois, jantava, fazia a lição de casa e ia para a cama. No dia seguinte, às quatro e meia, o despertador tocava…
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo trabalhos domésticos por todo o Brasil: 67 mil na faixa 10 a 14 anos, 190 mil na faixa de 15 a 17 anos. Apesar de as trabalhadoras desse setor terem alcançado uma vitória histórica recentemente, com a entrada em vigor, no dia 3, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante os mesmos direitos trabalhistas de outros segmentos, o trabalho infantil doméstico ainda carece de visibilidade: especialistas destacam que esse é um problema que, apesar de grave, permanece oculto.
O trabalho infantil doméstico é uma das atividades incluídas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) criada pelo decreto 6.481, assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e baseado na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. “Por ter sido incluído na Lista TIP, o trabalho doméstico não pode ser exercido por pessoas que não completaram 18 anos”, explica Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
Mundo escuro – Com o mundo igual de escuro, Cristina acordava, e o martírio se repetia. Alguns meses antes, a pequena pernambucana morava com a mãe, o padrasto e a irmã de dois anos no bairro da Mangueira, no Recife – tinha mais quatro irmãos por parte de pai. Apenas estudava. A mãe, uma moça de seus trinta anos, era doméstica e sustentava as duas filhas com a ajuda do marido, que fazia coleta de sangue numa clínica na cidade.
Foi então que começou a ter problemas de coluna, o que a impediu de continuar trabalhando. Os gastos foram ficando cada vez mais apertados quando veio a “solução”: a irmã do pai de Cristina estava precisando de alguém para ajudá-la em casa e no restaurante. Mandou a filha com mala e tudo para o novo lar, não muito longe dali, também na Mangueira…
Isa Oliveira cita os dados do Censo 2010 para ilustrar a gravidade da situação. Em todo o Brasil, das estimadas 3,4 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, 7,5% realizam serviços domésticos. A região Centro-Oeste é a de pior incidência em números proporcionais (9%), seguida das regiões Norte (8,5%), Nordeste (8%), Sudeste (7%) e Sul (6%). Ela chama a atenção, no entanto, para a evidente subnotificação de casos.
“Esses dados não expressam toda a dimensão do problema porque o Censo não coleta informações sobre os afazeres domésticos, ou seja, o trabalho infantil doméstico nas próprias casas das crianças. Há uma dificuldade em relação a esse registro, porque na maioria das vezes não é identificado como trabalho, e sim como ajuda. Como as pesquisas são por autodeclaração, muitas vezes o adulto informa que as crianças não trabalham, porque o conceito de trabalho está ligado à remuneração. Porém, no caso de trabalho infantil doméstico, isso não é determinante, não há essa relação direta”, esclarece a secretária-executiva do FNPETI.
Rotina – Cristina ia caminhando da casa da tia até o restaurante, no Jardim São Paulo, e do restaurante para a casa da tia. Andava também até a escola. Aos sábados, como não precisava estudar, trabalhava o dia todo, até as nove e meia da noite. Aos domingos, cumpria expediente até o meio-dia. Eram poucas as horas livres. Aproveitava para visitar a mãe, mas no mesmo dia à noite tinha de voltar. Afinal, na segunda-feira, às quatro e meia da madrugada… era hora de pegar no batente.
Por todo esse serviço, a menina recebia R$ 20 mensais. Não reclamava. A mãe tampouco, pois pensava que a irmã do pai de sua filha comprava tudo que ela precisava, como roupas novas. Cristina dava metade do que recebia à mãe, e ficava com a outra metade. Quando precisava de mais dinheiro, pedia ao pai. Para completar, a tia e o marido a tratavam mal diariamente. “Me xingavam de vagabunda porque eu não fazia o trabalho direito. Diziam que como estavam pagando, era para eu fazer direito”, conta. A pequena não aguentava mais…
De acordo com a Pnad 2011, do total das crianças e adolescentes no trabalho infantil doméstico no Brasil, 93,8% são meninas. Chama a atenção também o fato de a grande maioria destas serem negras. Tal perfil, no entanto, não surpreende se levadas em conta as características do trabalho doméstico no país, independentemente da idade de quem o exerce. Na realidade, especialistas apontam que grande parte das domésticas adultas começou a trabalhar antes dos 18 anos. Paulo Lago, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), de Recife, explica que a desigualdade social e a miséria são as primeiras causas dessa situação. “A mãe prefere entregar a filha para trabalhar numa casa de família a vê-la morrer de fome.”
Isa Oliveira destaca que tais motivações estão ligadas a outros fatores, como o pouco acesso das crianças à educação de qualidade, principalmente nos pequenos municípios da área rural, e, também, a baixa escolarização dos integrantes adultos das famílias, que não percebem a educação dos filhos como direito e oportunidade. Além disso, há uma forte naturalização do trabalho infantil doméstico no país. “Existe uma espécie de camuflagem da exploração nesses casos. No Nordeste e no Norte, é muito comum crianças serem levadas do interior para casas de famílias nas capitais. A exploração do trabalho fica oculta sob o manto da proteção: ‘a menina veio estudar, tem casa, comida’ etc. É difícil até que a própria família e as crianças compreendam a situação de exploração”, diz Isa.
Violência - Um dia, o marido da tia, um policial, levantou a sandália para Cristina. Mas ela tinha perdido o medo. “Ele ia me bater, mas comecei a xingá-lo, dei um chute nele e fui embora”, lembra. Foi para a casa do avô. A menina continuou indo ao restaurante, mas uma semana depois não apareceu mais. A irmã do seu pai, furiosa, jogou todas suas roupas na rua. Não importava: depois de quase um ano, Cristina estava livre.
Ou quase. No novo lar, continuou a fazer os serviços de casa, para ajudar a esposa do avô. Mas lá a situação era melhor. Era tratada muito bem e recebia R$ 100 por semana. Acordava mais tarde e ia direto para a escola. Mesmo assim, quando voltava na hora do almoço, trabalhava bastante, pois não era “dispensada” antes de lavar a louça do jantar…
Durante o Seminário Internacional Infância e Comunicação, realizado entre 6 e 8 de março deste ano em Brasília (DF), Wanderlino Nogueira Neto, representante brasileiro do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, afirmou que em relação ao Nordeste é possível falar até em escravidão nos casos de trabalho doméstico infantil, por causa das condições absurdas a que as crianças são submetidas.
“No Nordeste, infelizmente ainda é comum escravidão no trabalho doméstico, inclusive com castigos físicos”, disse ele, que foi procurador-geral de Justiça da Bahia. “A situação afeta até mesmo familiares. Estamos falando de escravidão mesmo e entre as vítimas estão crianças, incluindo irmãos e irmãs mais novas. É uma situação em que espancamentos são comuns.”
A presidenta da Federação Nacional das Empregadas Domésticas (Fenatrad), a baiana Creuza Maria de Oliveira, sabe bem disso, já que sentiu na pele tais violações desde que começou a trabalhar como doméstica, quando tinha apenas dez anos. “Eu fui vítima de espancamento, de assédio moral, abuso sexual, ato libidinoso… a gente sabe que isso acontece, que no Nordeste as crianças e adolescentes domésticas comem o resto da comida da casa, para não jogar no lixo.” Creuza frisa que as consequências do trabalho infantil doméstico são gravíssimas. A começar pela saúde de quem tem menos de 18 anos, que realizam um tipo de trabalho incompatível com o que seus corpos ainda em desenvolvimento suportam e lidam diariamente com produtos químicos utilizados na limpeza das casas. “Além disso, há o abuso sexual e o assédio moral. A autoestima das meninas fica destruída. Elas crescem com complexo de inferioridade”, alerta. Isa Oliveira, do FNPETI, lembra que a fadiga causada pelo trabalho e jornada exaustivos comprometem não apenas a frequência escolar como também o desenvolvimento cognitivo das crianças.
Educação e saúde - Quando estava na casa da tia, Cristina sempre chegava com sono à escola. Invariavelmente perdia as duas primeiras aulas. No fim do ano, ficou de recuperação em três matérias. Mesmo que tenha trabalhado como doméstica por um período curto se comparado com a média, sua saúde não foi poupada. Por trabalhar muito em pé, seja na residência da irmã do pai ou no restaurante, hoje ela sente fortes dores no joelho. “Cheguei a ir ao médico e ele disse que eu preciso operar.”
Cerca de dois meses depois de ir para a casa do avô, uma vizinha entregou a sua mãe um folheto do projeto “Do trabalho infantil à participação”, do Cendhec, que reúne crianças e adolescentes entre 13 e 16 anos, moradores de comunidades de baixa renda do Recife e com histórico de trabalho infantil, para um processo de formação cujo objetivo é inseri-los nos espaços de formulação de políticas públicas relacionadas aos direitos de meninos e meninas. Cristina preencheu o formulário, fez a inscrição e foi selecionada. Voltou para a casa da mãe e parou de trabalhar…
Paulo Lago, do Cendhec, ressalta um aspecto delicado do problema do trabalho infantil doméstico: muitas vezes, é a própria mãe que põe a filha mais velha para tomar conta dos filhos mais novos enquanto sai para trabalhar – isso quando não chamam afilhadas ou filhas de vizinhos. Por isso, ele defende que é papel do Estado não somente tirar as crianças das situações de trabalho infantil, mas também atuar pelo fortalecimento das famílias de baixa renda, como sua inserção em programas sociais e a construção de creches, para que os pais tenham onde deixar os filhos durante o dia. Creuza, da Fenatrad, destaca que, além das creches, é preciso pensar em escolas de tempo integral, onde crianças e adolescentes possam, além de estudar, realizar outras atividades, como esportes e cursos de línguas.
Outro grande obstáculo à luta contra o trabalho infantil doméstico, além da precariedade de políticas públicas preventivas, é a extrema dificuldade de fiscalização das situações de vulnerabilidade. “Esse tipo de violação acontece no interior do lar, que é inviolável segundo a Constituição. Por isso é importante que órgãos como Conselhos Tutelares, Ministério Público do Trabalho denunciem esses casos e busquem alternativas e maior divulgação do problema”, diz Isa Oliveira, do FNPETI, cuja campanha contra o trabalho infantil de junho deste ano terá como mote justamente o trabalho doméstico infantil.
Direitos – No projeto do Cendhec desde junho do ano passado, para onde vai todas as quartas-feiras, Cristina aprendeu, na teoria, as consequências do trabalho infantil. Participou de formações, por exemplo, sobre direitos de crianças e adolescentes, atuação dos Conselhos Tutelares e violência doméstica e sexual. Também esteve em oficinas sobre comunicação, para poder exercitar uma visão críticas sobre os meios de informação.
Aos 14 anos, a menina vê sua vida melhorar. A mãe, após um tratamento bem-sucedido, parou de sentir dores na coluna e voltou a trabalhar – faz serviços gerais em uma creche. Cristina não precisa mais ajudá-la. Hoje, a única obrigação é ir à escola.
* Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada

terça-feira, 9 de outubro de 2012

McDonald´s: quando o primeiro emprego se torna armadilha para jovens

 



 
Rede de restaurantes usa da pouca maturidade e fragilidade da juventude para usurpar direitos trabalhistas básicos
 
 
 
Michelle Amaral,
da Reportagem do BRASIL DE FATO
 
 
   
   
Atraídos, jovens são presas fáceis para as irregularidades trabalhistas
da rede de lanchonetes - Foto: Michelle Amaral

















Atraídos pela chance do primeiro emprego, milhares de jovens brasileiros procuram a rede de restaurantes fast food McDonald´s para trabalhar. Eles buscam a oportunidade de iniciar a vida profissional e conquistar independência financeira. No entanto, pela pouca maturidade e falta de experiência, esses jovens se veem submetidos a condições irregulares de trabalho e têm usurpados seus direitos básicos.
“O McDonald´s tem essa imagem do primeiro emprego, [na contratação] eles passam uma coisa totalmente diferente do que é”, afirma Tatiana, que ingressou na rede de fast food com 16 anos e lá viveu uma das piores experiências de sua vida, que lhe traz consequências até hoje.
Aos 18 anos, Tatiana escorregou no refrigerante que havia escorrido de uma lixeira quebrada, caiu e sofreu uma séria lesão no joelho. Com fortes dores, a jovem foi levada para o gerente da loja. “Ele falou: ‘passa um Gelol e põe uma faixinha que sara’”, relata. Era final de ano, o restaurante estava lotado e Tatiana foi orientada a continuar trabalhando até o final do expediente. Após dois dias, sem conseguir andar, Tatiana procurou o médico, que diagnosticou o rompimento da rótula de seu joelho direito e indicou a necessidade de uma cirurgia. Segundo ela, ao procurar o McDonald´s para informar as consequências da queda, nada foi feito pela empresa que, inclusive, se negou a emitir um Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT). “Eu fui ao INSS e perguntei como podia fazer esse CAT. Me deram o papel e mandaram eu ir até o McDonald´s”, conta a jovem, que afirma ter sido orientada pelo gerente a não informar a data correta do acidente para que não resultasse em multa para a loja. Ela ainda denuncia que a gerência sabia do defeito na lixeira, mas não a consertou para evitar gastos, resultando em seu acidente.
De lá para cá, a trabalhadora viveu sob intenso tratamento médico e teve que procurar reabilitação profissional por meios próprios, já que não podia exercer as mesmas funções e o McDonald´s se recusou a adaptá-la em outra área da empresa. Ela se formou em Direito e realizou estágio em um escritório de advocacia. Com isso, após 11 anos do acidente, Tatiana conseguiu a carta que a declara ser pessoa portadora de deficiência física e dá o reconhecimento de sua reabilitação pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
 
   
   
   
Tatiana passou por três cirurgias e anda com o
auxílio de uma muleta - Foto: Michelle Amaral
Hoje, aos 34 anos, Tatiana anda com o auxílio de uma muleta. Já passou por três cirurgias e necessita, ainda, realizar mais uma. No entanto, em março deste ano, ao tentar passar por uma consulta médica para agendar o procedimento, a trabalhadora foi informada do cancelamento de seu plano de saúde. O motivo foi a conclusão em janeiro da rescisão indireta do McDonald´s, solicitada pela trabalhadora em 2009. “O McDonald´s deveria ter comunicado ela [sobre o cancelamento da assistência médica], porque a lei diz isso, mas não comunicou, simplesmente cancelou”, protesta Patrícia Fratelli, advogada da trabalhadora. De acordo com a Lei nº 9.656 de 1998, regulamentada pela Resolução Normativa nº 279 da Agência Nacional de Saúde (ANS), no caso de rescisão do vínculo empregatício é assegurado ao trabalhador “o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral”. “Eu tinha condição de pagar o meu convênio, o McDonald´s tinha que ter me dado essa opção, porque agora perdi a carência e nenhum convênio vai me aceitar”, desabafa Tatiana, que há quase 16 anos enfrenta uma batalha judicial contra o McDonald´s para ter seu dano reparado.
 
Armadilha
O caso de Tatiana não é isolado. Tramitam na Justiça do Trabalho na cidade de São Paulo e região metropolitana 1.790 ações contra o McDonald´s e a Arcos Dourados Comércio de Alimentos Ltda., franqueadora master da multinacional no Brasil e na América Latina. Somente na capital paulista são 1.133 demandas judiciais ativas por conta das irregularidades trabalhistas e o tratamento inadequado dado pela empresa aos seus funcionários, conforme levantamento feito junto ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região. Entre as falhas cometidas pelo McDonald´s estão o pagamento de remunerações abaixo do salário mínimo, utilização de jornada de trabalho ilegal, falta de comunicação dos acidentes de trabalho, fornecimento de alimentação inadequada, não concessão de intervalo intrajornada, ausência de condições mínimas de conforto para os trabalhadores, prolongamento da jornada de trabalho além do permitido por lei, assédio moral e sexual. Além disso, existem denúncias de jovens que trabalharam sem serem remunerados (leia matéria na página ao lado).
No Brasil, o McDonald´s emprega hoje 48 mil funcionários, de acordo com informações publicadas em seu site. Destes, 67% têm menos de 21 anos e 89% tiveram na rede de fast food a primeira oportunidade de emprego formal. Questionado pela reportagem sobre os processos movidos contra ele, o McDonald´s disse que “não comenta processos sub judice”.
Para Rodrigo Rodrigues, advogado do Sindicato dos Empregados em Hospedagem e Gastronomia de São Paulo e Região (Sinthoresp), a oferta do primeiro emprego a esses jovens é pensada pelo McDonald´s a fim criar nesses trabalhadores o sentimento de submissão incondicional, em que o contratado acata tudo o que lhe é imposto, pela gratidão da oportunidade de trabalho. “A pessoa fica com receio de se indispor contra o tratamento que é dado na empresa. Isso é sutilmente pensado para que se chegue a essas finalidades”, alega.
A mesma avaliação é feita pelo procurador Rafael Dias Marques, coordenador nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo ele, a necessidade do primeiro emprego e a vontade de começar a vida profissional são vistas por alguns empregadores como uma possibilidade de fraudar direitos que são garantidos a esses trabalhadores por lei. “Muitas empresas preferem contratar os mais jovens para evitar problemas trabalhistas, para torná-los uma massa de manobra mais fácil para executar [o trabalho] sem direitos trabalhistas, sem qualquer questionamento ou um questionamento mais brando”, afirma.
 
   
   
Empresa utiliza pouca maturidade dos jovens para negligenciar direitos
trabalhistas básicos - Foto: Michelle Amaral
O procurador explica, ainda, que a pouca maturidade torna a contratação desses jovens vantajosa para essas empresas. “São pessoas que, por ainda serem jovens, não tem o senso crítico do questionamento e de resistir a determinadas situações de lesões de direitos”, analisa.
 
Garantia de direitos
O advogado do Sinthoresp lembra que o jovem tem que ser visto como um ser em transformação, que necessita de cuidados que lhe assegurem uma boa formação para a vida. “O trabalho é uma condição necessária, mas deve ser implementado aos poucos, não pode ser do jeito que está, coloca o jovem lá e vamos ver o que vai dar”, pondera Rodrigues. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permite a contratação de adolescentes a partir de 14 anos, na condição de aprendiz, e de 16 anos para o trabalho normal. No entanto, o estatuto estabelece que a eles deve ser observado “o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
Desta forma, Marques ressalta que a atividade profissional não pode ser prejudicial ao desenvolvimento físico e social destes adolescentes e jovens, seguindo o que estabelece o Decreto nº 6.481/2008. “Eles são pessoas peculiares em desenvolvimento, em fase de formação, por isso que o trabalho nessa fase da vida tem que ser diferenciado”, analisa.
O procurador alerta que, se não observados os cuidados com esses jovens, o trabalho pode lhes causar danos irreversíveis para a vida adulta. “O risco de lesão à saúde por uma situação do trabalho é muito mais evidente nessa parte da população, porque ainda que está em formação biológica”, observa. Segundo ele, “uma doença do trabalho nessa fase da vida é mais suscetível a ter continuidade, inclusive de levar ao quadro da invalidez”.
Foi o que aconteceu com Tatiana. Com o acidente ocasionado por uma negligência da empresa, teve sua vida completamente mudada. “ Tive que parar a minha vida. Fiquei um tempo sem estudar. Queria fazer enfermagem e o médico falou que eu nunca poderia ser enfermeira, porque não podia ficar em pé”, conta.
Rede de restaurantes fast food usa da pouca maturidade e fragilidade da juventude para usurpar direitos trabalhistas básicos

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Drogas e sexo: principais formas de trabalho infantil no Brasil


Rachel Duarte no SUL21

Apesar de básico, o conceito de que ‘lugar de criança é na escola’ ainda está longe de ser realidade em muitas regiões do mundo. De acordo com as estimativas globais mais recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), existem 215 milhões de crianças vítimas do trabalho infantil e mais da metade estão envolvidas com as piores formas de exploração. Além de violar os direitos fundamentais ao desenvolvimento e ao ensino, o trabalho infantil expõe crianças a maus tratos físicos, psicológicos e morais que podem causar-lhes danos para o resto de suas vidas. Porém, o principal vilão das crianças e adolescentes no Brasil, segue sendo o tráfico de drogas.
Os dados oficiais e atuais do trabalho infantil no Brasil serão lançados em ato solene no Ministério da Justiça nesta terça-feira, 11, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. Mas, com base na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), estima-se que 4,8 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, foram submetidas a alguma forma de exploração que as obrigaram ao trabalho infantil. Ao invés de estarem na escola adquirindo conhecimentos e habilidades que iniciem uma formação para o futuro exercício da cidadania e ingresso no mercado de trabalho, eles estão nas sinaleiras, fazendas, lixões, ou em outras frentes que garantam alguma renda para as famílias mais pobres do Brasil.
O escritório da OIT no Brasil desenvolve fiscalizações, programas de acompanhamento nos estados e relatórios sobre o trabalho infantil. Segundo a oficial de projetos da OIT Cíntia Ramos, “as regiões Norte e Nordeste, em consequência da situação de extrema pobreza, são aquelas em que mais as famílias subjugam os filhos ao trabalho desde crianças. Já na região Sul, devido à produção agrícola forte, os casos estão relacionados ao meio rural e têm respaldo na cultura local”.
Marcello Casal Jr. / ABr
Foto: Marcello Casal Jr. / ABr

A necessidade do lucro com a economia da mão-de-obra na agricultura, principalmente na produção do fumo gaúcho, acaba tornando natural o trabalho infantil na região. “Nestes casos, são regiões e estados que têm boas taxas de escolarização e índices de desenvolvimento humano mais elevados, em que não faltam o acesso à escola, mas que, mesmo assim, se opta por manter as crianças trabalhando”, diz Cíntia. “Elas poderiam estar frequentando a escola ou, no mínimo, deveriam dividir os turnos com a escola para trabalhar. Isto deve ser feito na idade adequada, não violando a fase infantil”, defende.
Conforme decreto presidencial de 2008, no Brasil, fica proibido o trabalho a menores de 18 anos nas atividades da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). São classificadas como tal, quaisquer atividades análogas à escravidão, tráfico de drogas, exploração sexual, conflitos armados, entre outras atividades ilícitas. Embora asseguradas pela lei, crianças e adolescentes seguem engrossando as estatísticas deficientes na constatação da realidade e divulgadas próximos as datas comemorativas.

Trabalho infantil no Brasil = Exploração sexual comercial e tráfico de drogas

Ramiro Furquim/Sul21

Conforme a delegada do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA) da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Eliete Mathias, as duas principais frentes de atuação do trabalho policial é combater a exploração sexual comercial e o tráfico de drogas na infância e adolescência. “São as principais práticas no RS. Não condenamos as crianças e adolescentes por isso, obviamente. Sabemos que eles estão nesta condição porque falhamos enquanto estado”, reconhece.
Segundo ela, em 2011 a Polícia Civil gaúcha registrou 1,304 mil ocorrências envolvendo crianças e jovens. “Os que cometem crimes vão para o juizado da Infância e podem ser encaminhados ao cumprimento de medida socioeducativa. Os menores são encaminhados para a rede de assistência social”, explica.
Com 10 anos de atuação no DECA, a delegada diz que, mesmo que houvesse um mapeamento preciso dos casos, a questão não é geográfica. “A cultura da sociedade influencia. Não há delimitação. Não é algo que ocorra só nas regiões de fronteira. Existem pontos de exploração sexual de menores em Porto Alegre. A incidência é maior ou menor conforme a capacidade de resposta dos municípios para lidar com o problema”, afirma. Ela defende que as políticas públicas para denunciar e coibir a exploração sexual, que atingem mais as meninas, têm mais êxito do que o combate ao tráfico.
Para a coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Família e Sucessões, procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja, a melhor aposta para enfrentar o problema é a prevenção e com ações de alcance na família. “A erradicação do trabalho infantil é muito difícil porque sua raiz é cultural e fundada no interesse dos adultos, já que nenhuma criança vai para o trabalho por conta própria. Por isso, é tão importante a atuação das instituições de forma integrada, para que se faça um cerco aos empregadores e às famílias”, explicou Maria Regina.

“Sabemos que temos crianças fazendo programa por cinco reais ou uma pedra de crack”, afirma secretário gaúcho

Bruno Alencastro/Sul21
Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Para articular a rede de assistência social que pode intervir e localizar os casos de trabalho infantil no Rio Grande do Sul, o governo gaúcho desenvolve sistematicamente, desde 2011, a formação de agentes nos municípios. “O foco do nosso trabalho está no combate à exploração sexual comercial de crianças. Sabemos que temos crianças com nove anos nas casas noturnas ou nas estradas fazendo programa por cinco reais ou por uma pedra de crack”, reconhece o secretário de Justiça e Direitos Humanos, Fabiano Pereira.
O trabalho do governo gaúcho está centrado no Programa de Ações Integradas para combater o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual no âmbito do Mercosul, desenvolvido nas cidades de fronteira com países vizinhos. Há ainda uma parceria com a iniciativa privada e governo federal para formação e acompanhamento de 100 meninas. “É uma bolsa formação que ao final de um ano, a menina tem a garantia de emprego”, falou sobre a iniciativa.
Porém, as ações são indicadas para as jovens a partir de 14 anos, idade em que é possível o trabalho em funções administrativas asseguradas de direitos à saúde e segurança. “Nas regiões periféricas de Porto Alegre estamos inaugurando Casas da Juventude, para oferecer atividades culturais e esportivas como alternativa ao crime para os jovens”, explica Fabiano Pereira.
Apesar de não ser um formato muito inovador, as campanhas publicitárias são boas aliadas no enfrentamento do tema, acredita a representante da OIT no Brasil, Cíntia Ramos. “Os casos de trabalho ilícito ou trabalho doméstico, que são mais difíceis de serem detectados por acontecerem dentro das casas das famílias ou de terceiros, podem ser denunciados ao estado. Para isso, as pessoas devem ser informadas”, afirma.

Orientar para denunciar

Para ajudar na orientação sobre quais práticas configuram como exploração ou trabalho infantil, o Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente/RS lançou a campanha estadual “Vamos acabar com o trabalho infantil”. O Fórum integra mais de 200 entidades, entre elas o Ministério Público Estadual e a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego.
De acordo com a coordenadora do Fórum, Eridan Magalhães, a iniciativa visa estimular que servidores e a população em geral possam contribuir com a erradicação do trabalho infantil que atinge pelo menos 60 mil crianças, entre nove e 14 anos, no RS. “Vamos divulgar a campanha na Esquina Democrática nesta terça-feira pela manhã e seguiremos para a Assembleia Legislativa do RS onde vamos acompanhar a votação do Projeto de Lei 76/2012 que institui o Dia Estadual de Combate ao Trabalho Infantil no Estado do Rio Grande do Sul”, disse sobre proposta do deputado estadual Miki Breier (PSB).
Somente em 2012, foram feitas 160 operações no RS, com o flagrante de aproximadamente 100 crianças trabalhando. Além disso, 12 mil fiscalizações gerais foram realizadas, em que também é vistoriada a presença de adolescentes trabalhando em locais insalubres e inseguros. As principais atividades que empregam crianças ainda são a lavoura de fumo, o comércio ambulante de bebidas alcoólicas e outros produtos no Litoral Norte, a colheita da maçã e da batata na Serra Gaúcha e o trabalho doméstico. Para os adolescentes, o maior problema é a cadeia coureiro-calçadista, em que adolescentes ainda sofrem com a manipulação de produtos tóxicos e sem equipamentos de segurança.
Ao longo da semana, mais de 40 municípios farão atividades alusivas ao dia de combate ao trabalho infantil. Para auxiliar a atuação do Fórum, os cidadãos podem denunciar o trabalho infantil pelo telefone             51-3213-2800      , ou pelo e-mail roberto.guimaraes@mte.gov.br.

domingo, 29 de abril de 2012

Microcrédito, o negócio da miséria


Ao emprestar somas módicas a fim de possibilitar o desenvolvimento de uma atividade produtiva, o microcrédito deveria emancipar os mais pobres. Mas, na Índia, a lógica dos acionistas triunfou: empresas de microcrédito constroem fortunas vampirizando os mais vulneráveis
por Cédric Gouverneur no LeMondeBrasil
Laksmi e sua esposa Rama não aguentavam mais confeccionar, dia após dia, quase mil beedies(cigarros aromáticos), em doze horas de trabalho, na esperança de ganhar 70 rupias (R$ 2,50) ao final do mês. Esse casal com duas crianças fez então um empréstimo de 5 mil rupias (R$ 180) em uma empresa de microcrédito para abrir uma minúscula lojinha de noz de bétele na periferia de Warangal, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Isso deveria permitir-lhes uma vida melhor, reembolsando 130 rupias por semana. Mas, conta Rama, Laksmi ficou doente: “Durante quatro meses, ele não pôde trabalhar”. Os vencimentos se acumularam e, com eles, os juros. Os vizinhos começaram a ficar agressivos, pois as empresas de microcrédito colocaram em ação um sistema de corresponsabilidade: quando um devedor falha, os outros devem reembolsar. Assediado, aterrorizado, o casal contratou um segundo empréstimo para pagar o primeiro. Depois um terceiro para pagar o segundo... Um total de cinco empréstimos, pelo equivalente a cerca de R$ 2.300.
Os credores acabaram por literalmente acampar diante do casebre de Laksmi e Rama. Depois – em completa ilegalidade – tomaram a lojinha de bétele, o fogão, as joias de ouro e finalmente a máquina de costura com a qual uma das filhas do casal, Eega, de 20 anos, fazia roupas para revender. “Você é bonitinha, vá se prostituir!”, disseram os credores quando ela perguntou como sua família iria conseguir comer. Humilhada, ela se imolou com fogo no dia 28 de setembro de 2010.
“Os pobres têm acesso a um crédito fácil, na porta de casa”, resume Reddy Subrahmanyam, na chefia do ministério do Desenvolvimento Rural do estado. “Mas a que custo! Com os impostos, as taxas de juros beiram os 60%.” Seguindo o espírito de seu inventor, o bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz, o microcrédito deveria permitir a aquisição de uma nova fonte de renda, e não atuar como um complemento. Uma nuance fundamental, o microcrédito indiano se assemelha agora aos créditos de consumo: “Os mais pobres contratam créditos para pagar gastos médicos, um dote, um casamento, até uma televisão ou uma peregrinação”, fulmina Subrahmanyam. “O microcrédito deveria emancipar [empower] os mais desfavorecidos, devolver-lhes a dignidade. Agora ele os está afundando na miséria.” E em vez de criar solidariedades, a corresponsabilidade dos devedores implode as comunidades dos vilarejos.
Andhra Pradesh concentra um quarto dos microcréditos privados do país, ou seja, 52 bilhões de rupias (R$ 1,866 milhão) emprestados a 6,25 milhões de lares em 2010.1 “Nos anos 2000”, conta Abhay N., editor do jornal on-line India Microfinance, “o governo regional lançou diversos programas sociais para conter a influência dos maoístas”, cuja guerrilha é ativa na zona rural.2 O estado incitou os bancos a fazer empréstimos aos habitantes dos vilarejos reunidos no seio de grupos de cooperação (self-help groups, ou SHG), ele mesmo se encarregando de uma parte dos juros.
No vilarejo de Dharmasagaram, no distrito de Warangal, uma mãe de família, Bhergya, conta como pôde, graças ao SHG, fazer um empréstimo de pouco mais de R$ 2.300 no banco, com uma taxa de 12% (da qual 9% por conta do Estado) para adquirir um riquexó (carro de duas rodas para transporte de passageiros a tração humana) que ela depois alugou ao irmão: “O aluguel do riquexó me paga 6 mil rupias (R$ 215) líquido por mês, e eu devo reembolsar 2.700”, indica ela, satisfeita.
Mas empresas privadas utilizaram essa rede para abordar os habitantes dos vilarejos e vender créditos para consumo segundo o modelo europeu. Esse desvio se explica pela evolução da maioria dos setenta órgãos de microcrédito indianos, agora guiados por uma só lógica, a do lucro. Número um do setor, a SKS foi fundada em 1998 por Vikram Akula, um trabalhador social diplomado na Universidade de Chicago. A SKS era originalmente uma organização sem fins lucrativos. “Esse statusjurídico a impedia de emprestar dinheiro suficiente”, justifica o porta-voz da empresa na sede social em Hyderabad. “Akula decidiu então, em 2005, fazê-la evoluir para uma companhia financeira não bancária.” Em direito indiano, uma empresa empresta dinheiro, mas não pode receber depósitos. Assim como todos os patrões de órgãos de microcrédito contatados, Akula está “muito ocupado” para nos receber.
Uma ordem recente do governo de Andhra Pradesh (Partido do Congresso) proíbe os coletores de ir ao domicílio de seus devedores e condiciona a contratação de novos empréstimos ao aval das autoridades. Medidas julgadas insuficientes pela oposição: o Telugu Desam Party (TDP), no poder em Andhra Pradesh entre 1999 e 2004, incita os milhões de devedores a parar de pagar.
Na periferia de Hyderabad, encontramos Kaushalya e suas vizinhas. Essa enérgica avó fez um empréstimo para cuidar da saúde de seu marido paralítico. Incapaz de reembolsar, ela deveria ter sido assediada pelas outras devedoras do bairro, obrigadas a pagar em seu lugar. Mas essas senhoras decidiram se unir no enfrentamento e não pagar mais nada: “Não demos mais nada desde novembro de 2010”, dizem elas ao mesmo tempo orgulhosas e graves em seus saris. “As pessoas da empresa de crédito nos ameaçam, dizem que vamos para a prisão, mas nada acontece, a gente nem dá mais atenção a elas!” Tais exemplos de solidariedade nos vilarejos se multiplicam em todo o estado. E as taxas de reembolso afundam, passando de 97% para 20%, até 10%... Enfim, “investigações estão em andamento sobre uns cinquenta suicídios. Os responsáveis pelo assédio deverão responder por seus atos diante dos tribunais”, promete Subrahmanyam.
Sentindo o vento mudar, 39 dirigentes da SKS liquidaram suas stock optionsdesde o começo da crise, no fim de 2010.3 Segundo nossas informações, as empresas de microcrédito se instalam agora no interior profundo, nas cidades dos indígenas Adivasis: isolados, miseráveis, analfabetos, eles são menos suscetíveis a desconfiar... A microfinança indiana poderia tomar para si a tirada do humorista Alphonse Allais (1854-1905): “É preciso procurar o dinheiro onde ele está: com os pobres. Eles não têm muito, mas são muitos...”.
Cédric Gouverneur é jornalista.

Ilustração: Daniel Kondo

1 Narasimhan Srinivasan, “Microfinance India: state of the sector report” [Microfinança na Índia: relatório sobre o estado do setor], SAGE Publications India Pvt Ltd, Nova Déli, 2010.

2 Ler “En Inde, expansion de la guérilla naxalite” [Na Índia, expansão da guerrilha naxalita], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.

3 Express India, Nova Déli, 11 fev. 2011.

terça-feira, 27 de março de 2012

As mulheres e o narcotráfico: entre uma guerra delirante e a impunidade

Há centenas de milhares de mulheres - sem nome, sem idade, sem rosto - que por circunstâncias da vida ou por decisão própria somam-se às filas do narcotráfico


Gabriela Oliveros e Marcela Salas
Desinformémonos

Cidade do México. Carregam cartuchos, o mesmo que carregar bebês. Disparam, e amam também. Transportam drogas, às vezes em suas roupas, às vezes em seus corpos, às vezes em seus filhos. Lidam com sangue, com ossos. Explodem granadas, e algumas vezes são explodidas. São as mulheres do narcotráfico, as quais, no vai e vem da compra e venda de substâncias ilícitas, oscilam entre os limites da vítima ou do agressor. Seu papel se manteve velado durante décadas, mas, diante do crescimento do clima de violência que flagela o país, adquirem cada vez mais visibilidade. 
As mulheres também estão desaparecidas, raptadas com fins de exploração sexual pelas mesmas redes, torturadas e assassinadas. E, por outro lado e no mesmo âmbito, estão as mulheres jornalistas que mostram com valentia os bastidores das máfias, as defensoras de direitos humanos, as mulheres que combatem. Todo um mundo feminino que denuncia, se rebela e se defende.

No mundo do narco 
Digna rainha das rainhas 
diante da lei, não se inclina 
caminha com pés de gato 
domina a corda solta
entre a mais bela rosa 
mais perigoso o espinho 

Sandra Ávila Beltrán - Foto: Desinformémonos
Esse é um trecho da música “A rainha das rainhas”, que o grupo Os Tigres do Norte dedicou a Sandra Ávila Beltrán, mulher ligada ao narcotráfico cujo nome se soma ao de outras – todas elas com a característica em comum de serem mulheres bonitas – que estão relacionadas com o mundo do contrabando de drogas como Zayda Peña, Liliana Lozano, Alicia Machado, Dolly Cifuentes, Laura Zúñiga. 
No entanto, além da beleza e da fama, há centenas de milhares de mulheres – sem nome, sem idade, sem rosto – que por circunstâncias da vida ou por decisão própria unem-se às filas do narcotráfico. 
Recentemente a Central de Organizações Camponesas e Populares informou que existem cerca de 200 mil mulheres mexicanas que trabalham de forma direta ou indireta para quadrilhas de narcotráfico, e que sete em cada dez mulheres no norte do país estão ligadas ou são beneficiadas pelo dinheiro do narcotráfico. 
Dados da DEA mostram que há 10 mil mulheres encarceradas por crimes relacionados à fabricação, venda e distribuição de drogas, e que a porcentagem de detidas por esta causa aumentou 400% desde 2007. 
A participação feminina no negócio das drogas não é inédita, mas os papeis que ocupam dentro das organizações criminosas está mudando. Liliana Carbajal Larios, especialista em mulheres e segurança nacional, destaca os três principais papeis desempenhados atualmente nas fileiras do narcotráfico: articulação e mediação, administração e distribuição de recursos e agentes de reestruturação e coesão no núcleo familiar, quando morre o chefe da família. 
Elas, no entanto, têm o custo de muitas outras tarefas. Entre elas, Carbajal Larios destaca “as mulheres troféu, que desempenham o papel de ‘acompanhantes’ dos narcotraficantes, as ‘burreras’ ou ‘mulas’ que transportam drogas de uma fronteira para outra, carregando bebês mortos que também estão carregados com drogas, ou fazendo-se enxertos de cocaína e outras substâncias no busto; as ‘buchonas’, que são mulheres que estão em pontos estratégicos e informam os grupos de narcotraficantes quando policiais ou militares estão para prendê-los, e que não podem ser julgadas devido à impossibilidade de comprovar sua participação no negócio”. 
As mulheres também estão consumidoras, cuja atuação é indireta, e as mães, irmãs, filhas e esposas de narcotraficantes, que não participam ativamente, mas tampouco podem sair dessa situação – apesar de viverem na mais pródiga opulência – são focos de sequestros e ajustes de contas. 
Outras mulheres desempenham papeis que antes estavam destinados apenas aos homens, como as varejistas, diretamente relacionadas com a venda de substâncias ilegais em pequena escala, ou as mulheres mercenárias, que “se preparam para assassinar a sangue frio, veem como decapitar e logo reproduzem, o que tem ocasionado também que aumentem os assassinatos sangrentos de mulheres cometidos por mulheres”, pontua Liliana Carbajal. 
Em 2011, por exemplo, “Monterreu começou o ano com a notícia da “ruiva da ponte Gonzalitos’, uma mulher que apareceu enforcada em 31 de dezembro na zona de Linhares”, explica San Juana Martínez, jornalista especializada em violência de gênero, direitos humanos e narcotráfico. 
A jornalista assinala que, somente em Nuevo León, seu estado natal, os crimes contra mulheres aumentaram 689% de 2005 a 2011, com três feminicídios em 2005 e 211 em 2011. 
“Há mulheres desaparecidas que se enquadram como vítimas do tráfico ou de exploração sexual. Também ocorrem casos de os “arrastões do prazer”, onde os narcotraficantes recolhem as meninas que eles gostam e às vezes as devolvem, mas em outras ocasiões não”, explica Martínez e assinala que o “México é uma terra de feminicídios, produto do redemoinho da barbárie do narcotráfico que já não faz distinções de nenhuma classe”. 

Mulheres que combatem o narcotráfico 

Em meio ao aumento generalizado da violência, registra-se um aumento da presença feminina em forças policiais. Não somente há mais mulheres policiais, mas também agora elas querem ocupar chefias e altos postos, cargos em que anteriormente não podiam se posicionar. Esse fenômeno, no entanto, “não deve necessariamente ser considerado como um triunfo de gênero”, adverte a doutora em Sociologia Olivia Tena Guerrero, coordenadora do Programa de Investigação Feminista da UNAM.
Em alguns casos, destaca Olivia Tena, as mulheres conseguiram alcançar altos postos “somente porque os homens os recusaram”. Esse é o caso de Marisol Valles García, jovem de 20 anos que foi nomeada por alguns meios de comunicação “a mulher mais valente do México” depois de aceitar a chefia da polícia do violento município de Praxedis Guerrero, em Chihuahua. O cargo que ocupou ninguém mais quis, pois seu sucessor, Manuel Castro, havia sido sequestrado, torturado e decapitado. Dois meses depois de assumir o cargo – e de logo receber numerosas ameaças – Marisol foi tirada do posto por ausentar-se de seus trabalhos e solicitou asilo nos Estados Unidos. 
Apesar dos avanços no reconhecimento do direito que as mulheres têm de se empregar no que elas decidirem, as causas que levam muitas às instituições policiais não são precisamente a vontade de ajudar “os demais a servir a sociedade”. “Muitas delas”, reconhece Tena Guerrero, “aproximam-se desse trabalho porque se dão conta que – apesar do perigo que implica – podem ganhar mais sem ter muitos estudos, e porque buscam a obtenção de um poder que antes não conheciam”. 
A também diretora de um projeto de empoderamento de mulheres policiais na Cidade do México acrescenta que, por causa do aumento da violência e criminalidade, que se originam de não haver modificações da estratégia de combate ao crime organizado no momento oportuno, “a função das mulheres policiais é mais repressora que preventiva”. 
Seja qual for seu papel no narcotráfico, é claro que as mulheres têm adquirido paulatinamente poder e têm deixado de desempenhar tão somente papeis auxiliares ou de acompanhamento. “Escutamos e lemos histórias diariamente”, disse a jornalista Sanjuana Martínez, autora do livro “A fronteira do narcotráfico”. “Às vezes são difundidas e muitas outras ficam no esquecimento, mas é preciso ter em conta a situação em que estamos imersas como gênero. Devemos nos cuidar entre nós, fazer redes e nos protegermos, essa é a única maneira de nos defendermos diante dessa guerra delirante”, adverte a repórter de La Jornada.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Supremo transforma senador em réu por trabalho escravo

no BRASILdeFATO

João Ribeiro é acusado de explorar 35 trabalhadores em fazenda no Pará. Para Gilmar Mendes, a precariedade é comum e não deveria ser criminalizada



Por sete votos a três, o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia do Ministério Público Federal e transformou em réu por trabalho escravo o senador João Ribeiro (PR-TO). Ele é acusado, desde 2004, de manter 35 trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma fazenda de sua propriedade no interior do Pará. Entre eles, havia duas mulheres e um menor de 18 anos.

Inquérito ficou 14 meses no gabinete de Gilmar Mendes,
que entendeu não haver motivo para denúncia contra senador ir adiante
- Foto: Gil Ferreira

Votaram contra o recebimento da denúncia os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Marco Aurélio Mello. Gilmar apresentou voto rebatendo a acusação de trabalho escravo e divergindo da relatora do caso, a ex-ministra Ellen Gracie.  Segundo ele, a precariedade das condições às quais os trabalhadores rurais estavam submetidos é comum à maioria dos brasileiros e, por isso, não deveria ser criminalizada.
“A inexistência de refeitórios, chuveiros, banheiros, pisos em cimento, rede de saneamento, coleta de lixo é deficiência estrutural básica que assola de forma vergonhosa grande parte da população brasileira, mas o exercício de atividades sob essas condições que refletem padrões deploráveis e abaixo da linha da pobreza não pode ser considerado ilícito penal, sob pena de estarmos criminalizando a nossa própria deficiência”, disse o ministro.
O julgamento do caso foi interrompido a pedido de Gilmar Mendes em outubro de 2010, quando Ellen Gracie apresentou seu voto a favor do recebimento da denúncia. O ministro pediu mais tempo para analisar os autos. O processo ficou um ano e dois meses parado no gabinete de Gilmar. Para ele, não houve coação, ameaça ou imposição de jornada excessiva. “Todos podiam exercer o direito de ir e vir”, disse o ministro.

João Ribeiro: "É muito forte dizer que um cidadão
está escravizando alguém" - Foto: Geraldo Magela

Servidão por dívida

Não foi essa, porém, a opinião da maioria de seus colegas nem da ex-ministra Ellen Gracie. Na avaliação da relatora, as provas reunidas na fase preliminar de investigação (inquérito) comprometem o senador ao apontar para um quadro de condições degradantes, jornada exaustiva, restrição de locomoção, servidão por dívida e falta de cumprimento de promessas salariais e obrigações trabalhistas.
Um cenário que, segundo ela, pode ficar ainda mais claro com a continuidade das apurações por meio da ação penal. A ex-ministra apresentou seu relatório apenas quatro dias após João Ribeiro ter renovado seu mandato no Senado por mais oito anos, graças aos 375 mil votos recebidos. A investigação chegou ao Supremo em 22 de junho de 2004. Ou seja, há sete anos e oito meses. Outros dois parlamentares também respondem por trabalho escravo no Supremo: os deputados Beto Mansur (PP-SP) e João Lyra (PTB-AL).

Multa trabalhista

Em dezembro de 2010, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) confirmou o entendimento de que houve trabalho escravo, mantendo a multa de R$ 76 mil imposta a João Ribeiro em instância inferior. Em pronunciamento feito no Senado em 2005, ele reconheceu não ter cumprido obrigações trabalhistas, mas afirmou que ser acusado de trabalho escravo era “muito forte”.
Na defesa entregue ao STF, João Ribeiro alega que o processo não poderia avançar no STF enquanto não fosse julgado o recurso apresentado por ele contra a inspeção feita pelo Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo em sua propriedade. Ele nega a acusação e diz que não pode ser responsabilizado por eventuais problemas trabalhistas ocorridos em sua fazenda.

Rancho sobre brejo

Em fevereiro de 2004, integrantes do Grupo Móvel resgataram 35 trabalhadores da Fazenda Ouro Verde, de 1,7 mil hectares. A propriedade do senador está localizada no município de Piçarra, no Sudeste do Pará, na divisa com o Tocantins, a 555 km de Belém. Formada por representantes do Ministério do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, a equipe aplicou 25 autos de infração. As rescisões contratuais custaram na época R$ 64 mil a João Ribeiro.
Os alojamentos eram ranchos improvisados, sem paredes e de chão batido, feitos por folhas de palmeiras e sustentados por arbustos fincados no solo. Um dos ranchos, segundo a denúncia, havia sido erguido sobre um brejo, cujas poças provocavam umidade excessiva e cheiro insuportável. Não existia banheiro. Os trabalhadores tinham de fazer suas necessidades fisiológicas ao relento.

Água insalubre e jornada exaustiva

Também não havia cama ou colchão. Cada um tinha de levar de casa a própria rede para repousar. Tampouco havia cozinha, de acordo com os fiscais. Para almoçar ou jantar, os trabalhadores tinham de se sentar sobre pedras e restos de árvores ou sobre o próprio chão. A refeição era composta basicamente por arroz, feijão e, eventualmente, carne, sem verdura, conforme o relato da fiscalização. A água consumida era insalubre e vinha de três fontes – um brejo lamacento, uma cacimba rústica e uma represa. A mesma fonte de água era usada pelos trabalhadores para matar a sede, lavar suas roupas e louças, tomar banho e escovar os dentes, diz o relatório.
As jornadas de trabalho eram consideradas exaustivas. Estendiam-se por até 12 horas diárias de segunda a sábado. No domingo, seguiam por seis horas, sem qualquer observância de folga semanal. De acordo com os auditores, os trabalhadores podiam aparentemente exercer o direito de ir e vir. Mas, segundo os fiscais, esse direito era desrespeitado de forma disfarçada, por meio da retenção de salários. Ainda de acordo com a denúncia, os trabalhadores eram contratados de maneira informal.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Tratados como animais. De abate, não de estimação


Cuiabá – Há mais de dez anos, uso a expressão “tratados piores que certos animais” para se referir às condicões a que determinados produtores rurais sujeitam seus empregados (o “certos” se dá pelo fato de que existe muito bichinho de estimação com consumo per capita bem maior que muito brasileiro). Muitos dizem que exagero nessas horas.
É mesmo?
De acordo com reportagem de Bianca Pyl, da Repórter Brasil, uma operação do grupo móvel de fiscalização do governo federal encontrou 19 trabalhadores, um deles com 17 anos de idade, em condições análogas à escravidão em propriedade rural pertencente ao médico Gilson Freire de Santana, que foi prefeito de Açailândia (MA) entre 1997 e 2000 e é dono do Hospital Santa Luzia. Do total de libertados da Fazenda Santa Maria, 15 dormiam no curral, ao lado de animais e de agrotóxicos. As outras quatro pessoas resgatadas estavam em uma casa precária de madeira, com o teto prestes a desabar.
Os empregados dormiam em redes próprias e enfrentavam dificuldades para descansar por causa do barulho dos animais. “Quando dava 3h da manhã, ninguém conseguia dormir mais. Nosso horário [para acordar] era 6h30, mas o vaqueiro chegava gritando com os bichos e aí era uma barulheira danada a madrugada toda”, revelou um dos libertados.
Os libertados eram responsáveis pela limpeza do terreno para formação de pastagem, além de manutencão e ampliação de cercas. A operacão foi realizada em setembro, mas os valores devidos só foram pagos aos trabalhadores um mês depois.
Não é a primeira vez que trabalhadores são encontrados dormindo em currais e não será a última.
O que me lembra um caso ocorrido há três anos no Rio Grande do Sul, quando auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e procuradores do Ministério Público do Trabalho proibiram que empregados de fazendas dormissem junto com os animais durante a Expointer, uma das mais importantes feiras agropecuárias do mundo, realizada anualmente no Estado. Creio que é desnecessário explicar o porquê da proibição (caso alguém ache normal dormir com o gado no curral, por favor pare de ler este post e mude de blog). Houve revolta dos proprietários rurais e um deles, “doutor em direito e pecuarista”, escreveu um artigo que circulou na rede, defendendo o sentido de “tradição”.
Mas também eram “tradições” a possibilidade legal de comprar seres humanos (até 1888) ou a impossibilidade de mulheres votarem (até 1932). Muitas aberrações da humanidade foram – e são – justificadas por serem tradições, ou seja, mantras repetidamente cantados, porém dificilmente discutidos. Na verdade, elas são apenas construções sociais, normalmente impostas ao longo dos anos pelos mais fortes até serem serem aceitas por determinado grupo sem que se lembre de onde ela surgiu.
É a tradição do local dormirem com o gado? Vamos criar outra! De agora em diante passa a ser tradição o dono da fazenda dormir com o gado.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Roupas da Zara são fabricadas com mão de obra escrava

Portal vermelho


Em uma operação de fiscalização -- considerada “a maior do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano em São Paulo” --, foram encontradas 15 pessoas, entre elas uma adolescente de 14 anos, trabalhando como escravas para oficinas subcontratadas de fabricante de roupas Zara. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) lavrou 52 autos de infração contra a grife internacional de origem espanhola

Por Bianca Pyl* e Maurício Hashizume


Nem uma, nem duas. Por três vezes, equipes de fiscalização trabalhista flagraram trabalhadores estrangeiros submetidos a condições análogas à escravidão, produzindo peças de roupa da badalada marca internacional Zara, do grupo espanhol Inditex.

Na mais recente operação que vasculhou subcontratadas de uma das principais "fornecedoras" da rede, 15 pessoas, incluindo uma adolescente de apenas 14 anos, foram libertadas de escravidão em duas oficinas - uma localizada no Centro da capital paulista e outra na Zona Norte.

A investigação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) - que culminou na inspeção realizada no final de junho - se iniciou a partir de uma outra fiscalização realizada em Americana (SP), no interior, ainda em maio. Na ocasião, 52 trabalhadores foram encontrados em condições degradantes: parte do grupo costurava calças da Zara.

Grife de prestígio internacional

"Por se tratar de uma grande marca, que está no mundo todo, a ação se torna exemplar e educativa para todo o setor", coloca Giuliana Cassiano Orlandi, auditora fiscal que participou de todas as etapas da fiscalização.

Foi a maior operação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da SRTE/SP, desde que começou os trabalhos de rastreamento de cadeias produtivas a partir da criação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções.

A ação, complementa Giuliana, serve também para mostrar a proximidade da escravidão com pessoas comuns, por meio dos hábitos de consumo. "Mesmo um produto de qualidade, comprado no shopping center, pode ter sido feito por trabalhadores vítimas de trabalho escravo".

Além de contratações irregulares, prisão domiciliar

O quadro encontrado pelos agentes do poder público, e acompanhado pela Repórter Brasil, incluía contratações completamente ilegais, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas exaustivas de até 16h diárias e cerceamento de liberdade (seja pela cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários, o truck system, seja pela proibição de deixar o local de trabalho sem prévia autorização).

Apesar do clima de medo entre as vítimas, um dos trabalhadores explorados confirmou que só conseguia sair da casa com a autorização do dono da oficina, só concedida em casos urgentes, como quando levou seu filho ao médico.

Quem vê as blusas de tecidos finos e as calças da estação nas vitrines das lojas da Zara não imagina que, algumas delas, foram feitas em ambientes apertados, sem ventilação, sujos, com crianças circulando entre as máquinas de costura e a fiação elétrica toda exposta. Principalmente porque as peças custam caro. Por fora, as oficinas parecem residências, mas todas têm em comum as poucas janelas sempre fechadas e com tecidos escuros para impedir a visão do que acontece do lado de dentro das oficinas improvisadas.

Aliciamento na Bolívia e Peru

As vítimas libertadas pela fiscalização foram aliciadas na Bolívia e no Peru, país de origem de apenas uma das costureiras encontradas. Em busca de melhores condições de vida, deixam os seus países em busca do "sonho brasileiro". Quando chegam aqui, geralmente têm que trabalhar inicialmente por meses, em longas jornadas, apenas para quitar os valores referentes ao custo de transporte para o Brasil.

Durante a operação, auditores fiscais apreenderam dois cadernos com anotações de dívidas referentes à "passagem" e a "documentos", além de "vales" que faziam com que o empregado aumentasse ainda mais a sua dívida. Os cadernos mostram alguns dos salários recebidos pelos empregados: de R$ 274 a R$ 460, bem menos que o salário mínimo vigente no país, que é de R$ 545.

As oficinas de costura inspecionadas não respeitavam nenhuma norma referente à Saúde e Segurança do Trabalho. Além da sujeira, os trabalhadores conviviam com o perigo iminente de incêndio, que poderia tomar grandes proporções devido a quantidade de tecidos espalhados pelo chão e à ausência de janelas, além da falta de extintores de incêndio. Após um dia extenuante de trabalho, os costureiros, e seus filhos, ainda eram obrigados a tomar banho frio. Os chuveiros permaneciam desligados por conta da sobrecarga nas instalações elétricas, feitas sem nenhum cuidado, que aumentavam os riscos de incêndio.

Condições precárias de acomodação

As cadeiras nas quais os trabalhadores passavam sentados por mais de 12 horas diárias eram completamente improvisadas. Alguns colocavam espumas para torná-las mais confortáveis. As máquinas de costura não possuíam aterramento e tinham a correia toda exposta (foto acima). O descuido com o equipamento fundamental de qualquer confecção ameaçava especialmente as crianças, que circulavam pelo ambiente e poderiam ser gravemente feridas (dedos das mãos decepados ou até escalpelamento).

Para Giuliana, a superexploração dos empregados, que têm seus direitos laborais e previdenciários negados, tem o aumento das margens de lucro como motivação. "Com isso, há uma redução do preço dos produtos, caracterizando o dumping social, uma vantagem econômica indevida no contexto da competição no mercado, uma concorrência desleal".
52 autos de infração

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) lavrou 52 autos de infração contra a Zara devido as irregularidades nas duas oficinas. Um dos autos se refere à discriminação étnica de indígenas quéchua e aimará. De acordo com a análise feita pelos auditores, restou claro que o tratamento dispensado aos indígenas era bem pior que ao dirigido aos não-indígenas.

"Observa-se com nitidez a atitude empresarial de discriminação. Todos os trabalhadores brasileiros encontrados trabalhando em qualquer um dos pontos da cadeia produtiva estavam devidamente registrados em CTPS [Carteira de Trabalho e Previdência Social], com jornadas de trabalho condizentes com a lei, e garantidos em seus direitos trabalhistas e previdenciários", destaca o relatório da fiscalização.

"Por outro lado, os trabalhadores imigrantes indígenas encontram-se em situação de trabalho deplorável e indigno, em absoluta informalidade, jornadas extenuantes e meio ambiente de trabalho degradante".

A equipe de fiscalização foi composta por dois agentes da Polícia Federal (PF), integrantes do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, auditores da SRTE/SP e dirigente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco.

Empregados recebem 7 reais por blusa vendida a R$ 139 na loja

A primeira oficina vistoriada mantinha seis pessoas, incluindo uma adolescente de 14 anos, em condições de trabalho escravo. No momento da fiscalização, os empregados finalizavam blusas da Coleção Primavera-Verão da Zara, na cor azul e laranja (fotos acima). Para cada peça feita, o dono da oficina recebia R$ 7. Os costureiros declararam que recebiam, em média, R$ 2 por peça costurada. No dia seguinte à ação, 27 de junho, a reportagem foi até uma loja da Zara na Zona Oeste de São Paulo (SP), e encontrou uma blusa semelhante, fabricada originalmente na Espanha, sendo vendida por R$ 139.

A oficina funcionava em um cômodo de uma casa pequena - na parte de cima de um sobrado. Seis máquinas de costura ocupavam uma pequena sala. Dois quartos abrigavam todos os trabalhadores, inclusive casais com filhos. O espaço era dividido por guarda-roupas e panos. No banheiro, não havia água banho quente, pois o chuveiro estava desligado para reduzir o consumo de energia elétrica, que era totalmente destinada à produção.

A adolescente de 14 anos tomava conta das duas crianças enquanto as mães trabalhavam. Ela ajudava também na limpeza da casa e no preparo das refeições. No Brasil desde 2010, não está estudando. Seu irmão juntou dinheiro e foi buscá-la na capital boliviana de La Paz.

A fiscalização lacrou a produção e apreendeu parte das peças, incluindo a peça piloto da marca Zara. As máquinas de costura também foram interditadas por não oferecerem segurança aos trabalhadores.

50 vestidos em um dia

Da outra oficina localizada em movimentada avenida do Centro, foram resgatadas nove pessoas que produziam uma blusa feminina e vestidos para a mesma coleção Primavera-Verão da Zara.

A intermediária AHA (que também utilizava a razão social SIG Indústria e Comérico de Roupas Ltda.) pagava cerca de R$ 7 por cada peça para a dona da oficina, que repassava R$ 2 aos trabalhadores. Peça semelhante a que estava sendo confeccionada foi encontrada em loja da marca com o preço de venda de R$ 139.

Uma jovem de 20 anos, vinda do Peru, disse à reportagem que chegou a costurar 50 vestidos em um único dia. Em condições normais, estimou com Maria Susicléia Assis, do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, seria preciso um tempo muito maior para que a mesma quantidade da difícil peça de vestuário fosse toda costurada.

Há 19 anos no Brasil, a boliviana que era dona da oficina teve todos os seus oito filhos (entre 5 meses e 15 anos) nasceram aqui. Ela sonha em dar um futuro melhor aos rebentos, para que não tenham que trabalhar "nas máquinas, com costura". "Todo mundo na minha terra que vinha para o Brasil dizia que aqui era bom. E eu vim", contou a senhora.

Parte da produção foi apreendida, assim como as peças pilotos, que carregavam instruções da Zara de como confeccionar a peça de acordo com o padrão definido pela varejista multinacional. "Isso demonstra a subordinação das oficinas e da AHA em relação à Zara", realça Giuliana. A oficina e um dos quartos, onde dormiam dois trabalhadores e duas crianças, foram interditados. A fiação elétrica estava totalmente exposta e havia possibilidade de curto-circuito.

Sujeira e jornada estafante

Os trabalhadores declararam trabalhar das 7h30 às 20h, com uma hora de almoço, de segunda à sexta-feira. Aos sábados, o trabalho seguia até às 13h. Um trabalhador chegou a relatar que há dias em que o trabalho se estende até às 22h.

O local funciona em um sobrado de dois andares (foto ao lado), com muitos cômodos. O maior deles, onde os trabalhadores passavam a maior parte do dia, acomodava as máquinas. Os cinco banheiros estavam muito sujos. Somente três possuíam chuveiros, mas todos também estavam desligados.

Um dos trabalhadores, irmão da dona da oficina, está no Brasil há sete anos e já possui os documentos e até CTPS. "Eu trabalho na costura desde que cheguei. Mas eu queria mesmo era trabalhar com música. Eu consegui comprar algum equipamento já".

Outro jovem, de 21 anos, disse que não gosta muito do trabalho porque é "cansativo". Ele recebe, em média, R$ 500 por mês. "Eu vou voltar para a Bolívia. Queria estudar Turismo e trabalhar com isso. A costura é só para sobreviver", projetou.

A grife não se manifestou

A Zara foi avisada do flagrante no momento da ação pelos auditores fiscais e convidada a ir até a oficina de costura, mas não compareceu.

No dia seguinte, compareceram à sede da SRTE/SP dois diretores, que não quiseram participar da reunião de exposição dos fatos. Até o advogado da empresa foi embora sem ver as fotos da situação encontrada. Somente duas advogadas da AHA (que no início da reunião se apresentaram como enviadas dos donos das oficinas e até dos trabalhadores) participaram da reunião com os auditores. A empresa não providenciou sequer alimentação às vítimas, que ficou a cargo do sindicato da categoria.

Fluxograma

A intermediária na contratação das duas oficinas em que houve libertações é a AHA Indústria e Comércio de Roupas Ltda. No período de abril a junho deste ano, a produção de peças para a Zara chegou a 91% do total. A SRTE/SP descobriu que há 33 oficinas sem constituição formal, com empregados sem registros e sem recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) contratadas pela AHA para a executar a atividade de costura.

Por meio de análises de documentos da empresa AHA, incluindo contábeis, a fiscalização verificou que, neste mesmo período, mais de 46 mil peças foram produzidas para a Zara sem nenhuma formalização.

Durante o período auditado pela fiscalização (julho de 2010 a maio deste ano), a AHA foi a fabricante da Zara que mais cresceu em faturamento e número de peças de roupas faturadas para a marca, a ponto, na descrição da SRTE/SP, de se tornar a maior fornecedora da Zara na área de tecidos planos. Entretanto, chamou a atenção dos agentes que, nesse mesmo período, a empresa diminuiu o número de empregados formalizados. Os contratados diretamente da AHA passaram de 100 funcionários para apenas 20 (gráfico abaixo). A redução do de trabalhadores na função de costureiros foi ainda mais drástica: dos anteriores 30 para cinco funcionários exercendo a função.

"O nível de dependência econômica deste fornecedor para com a Zara ficou claro para a fiscalização. A empresa funciona, na prática, como extensão de logística de sua cliente preponderante, Zara Brasil Ltda.", sustentam os auditores fiscais do trabalho que estiveram à frente da investigação.

Os vínculos com a Zara

Foi apurado que até a escolha dos tecidos era feita pelo Departamento de Produtos da Zara. Mas o fabricante terceirizado encaminhava peças piloto por conta própria para a matriz da Zara (Inditex) na Espanha, após a aprovação de um piloto pela gerente da Zara Brasil. Somente após a anuência final da Europa, o pedido oficial era emitido para o recebimento das etiquetas. Na opinião de Luís Alexandre Faria, auditor fiscal que comandou as investigações, a empresa faz de tudo, porém, para não "aparecer" no processo.

Para a fiscalização trabalhista, não pairam dúvidas acerca do gerenciamento da produção por parte da Zara. Entre os atos típicos de poder diretivo, os agentes ressaltaram "ordens verbais, fiscalização, controle, e-mails solicitando correção e adequação das peças, controle de qualidade, reuniões de desenvolvimento, cobrança de prazos de entrega etc."

Os 52 autos de infração foram lavrados em nome da Zara. "A empresa tem responsabilidade por quem trabalha para ela. Esses trabalhadores estavam produzindo peças da Zara, e seguindo determinações da empresa", coloca Giuliana. É a chamada responsabilização estrutural, completa Luís. "Essa é a atividade fim da empresa, a razão de sua existência. Portanto, é dever dela saber como suas peças estão sendo produzidas".

Divisão dos ganhos com exploração

A confecção de uma calça gerava ao dono da oficina terceirizada R$ 6, em média. Este valor era dividido em três partes: R$ 2 para os trabalhadores; R$ 2 para as despesas com alimentação, moradia e outros custos; e R$ 2 para o dono da oficina. Após a produção na oficina, a intermediária (AHA) recolhia a produção e encaminhava as peças à lavanderia, também terceirizada. Depois, o produto ainda era acabado e embalado para ser entregue à Zara.

Após os flagrantes, os trabalhadores compareceram à SRTE/SP, onde foram colhidos depoimentos e emitidas as carteiras e as guias de Seguro Desemprego para Trabalhador Resgatado. Parte das vítimas já havia dado entrada na documentação obter o visto de permanência no Brasil.

As verbas rescisórias, que acabaram sendo pagas pela intermediária AHA, totalizaram mais de R$ 140 mil. As contribuições previdenciárias sonegadas e pagas a posteriori somaram cerca de R$ 7,2 mil. Já as contribuições sociais e ao FGTS sonegadas chegaram à R$ 16,3 mil.

A Repórter Brasil entrou em contato com a AHA, que preferiu não responder especificamente ao conjunto de perguntas enviadas. A advogada da fornecedora da Zara enviou apenas uma nota escrita em que declarou que a empresa "jamais teve conhecimento da utilização, pelas oficinas contratadas, de mão de obra escrava; jamais teve qualquer participação na contratação dos funcionários de referidas oficinas; e, assim que tomou conhecimento de irregularidades constatadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, imediatamente adotou todas as providências necessárias à regularização".

A intermediária alega ainda em seu comunicado que "prestou serviços não só à Zara, como a outras empresas" e "que repudia toda e qualquer utilização, por quem quer que seja", de trabalho análogo à escravidão.

Americana: 52 trabalhadores em condições de trabalho degradante

O primeiro flagrante de oficina em condições degradantes com pessoas costurando peças para a Zara se deu em Americana (SP), interior de São Paulo, no final de maio. Motivada pela denúncia de um trabalhador, a ação foi realizada pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) de Campinas (SP), pela Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15) e pela Polícia Federal (PF). A Vigilância Sanitária de Americana foi chamada a atuar e interditou os alojamentos. Os empregados não foram retirados por causa da inexistência de abrigos para este fim no município.

Foram encontrados 52 trabalhadores, sendo cinco deles brasileiros. O restante do grupo era formado por bolivianos. Na oficina de Narciso Atahuichy Choque, os empregados eram submetidos à jornada exaustiva e expostos a riscos. Além disso, muitos trabalhadores foram aliciados na Bolívia e chegaram ao Brasil devendo o valor da passagem.

O alojamento e o local de trabalho estavam em condições degradantes e insalubres. Havia risco de incêndio devido à sobrecarga nas precárias instalações elétricas. Poderia haver explosão, por causa dos botijões de gás de cozinha encontrados irregularmente nos quartos.

A oficina funcionava em um imenso galpão de dois andares. No andar superior, ficavam os alojamentos e a cozinha. No inferior, as máquinas. A fiação elétrica estava exposta e o local era muito sujo. Havia um bebedouro, porém somente um copo plástico para todos dividirem. Os pequenos quartos abrigavam famílias inteiras e grupos de até cinco trabalhadores. Alguns cômodos tinham alimentos espalhados, armazenados de forma inadequada.

Um grupo de trabalhadores costurava uma calça jeans da Coleção Primavera-Verão da Zara. Cada trabalhador fazia uma parte da peça e o valor de, em média, R$ 1,80, era dividido pelo grupo todo, composto por sete pessoas. O dono da oficina afirmou que trabalha há cinco anos com a intermediária Rhodes e que aproximadamente 70% da sua produção é destinada à empresa. A oficina é especializada em calças e bermudas. Uma funcionária da Rhodes costuma visitar e verificar as condições e o ritmo de produção da oficina.

Acerto de contas e melhorias

Após a fiscalização, a Rhodes pagou as verbas rescisórias de cada trabalhador. A fiscalização foi à nova oficina de Narciso, em 26 de junho, e constatou melhorias. Entre elas, o registro de todos os funcionários, regularização migratória, submissão de costureiros a exames médicos.


De acordo com auditores fiscais da GRTE de Campinas (SP), houve adequação da instalação elétrica e melhora do espaçamento entre as máquinas. Os trabalhadores agora utilizam cadeiras com melhores condições ergonômicas e de conforto. A iluminação também foi melhorada e os equipamentos de incêndio estão todos válidos e sinalizados. As saídas de emergência foram demarcadas.

"Com a mudança da oficina e a suspensão da interdição, grande parte dos trabalhadores voltaram a trabalhar de forma regular nas novas instalações da mesma oficina", discorre a auditora Márcia Marques. Foram lavrados 30 autos de infração contra a intermediária Rhodes pelas irregularidades encontradas. Nove autos se referem às questões trabalhistas e as demais infrações estão relacionadas à saúde e segurança do trabalho. A reportagem não conseguiu entrar em contato com a Rhodes pelos telefones da empresa.

"Terceirização não autorizada"

Em resposta a questões sobre os ocorridos enviadas pela Repórter Brasil, a Inditex - que é dona da Zara e de outras marcas de roupa com milhares de lojas espalhadas mundo afora - classificou o caso envolvendo a AHA e as oficinas subcontratadas como "terceirização não autorizada" que "violou seriamente" o Código de Conduta para Fabricantes.

Seungod a Inditex, o Código de Conduta determina que qualquer subcontratação deve ser autorizada por escrito pela Inditex. A assinatura do Código do Conduta é obrigatória para todos os fornecedores da companhia e foi assumido pelo fornecedor em questão (AHA/SIG).

A empresa disse ter agido para que o fornecedor responsável pela "terceirização não autorizada" pudesse "solucionar" a situação imediatamente, assumindo as compensações econômicas dos trabalhadores e comprometendo-se a corrigir as condições de trabalho da oficina flagrada com escravidão.

Haverá, segundo a Inditex, um reforço an revisão do sistema de produção da AHA, assim como das outras empresas no Brasil, para garantir que não exista outro caso como este. "Estamos trabalhando junto com o MTE para a erradicação total destas práticas que violam não só nosso rígido Código de Conduta, como também a legislação trabalhista brasileira e internacional".

Em 2010, a Inditex produziu mais de 7 milhões de unidades de peças no Brasil, desenvolvidas, segundo a empresa, por cerca de 50 fornecedores que somam "mais de 7 mil trabalhadores". O total de peças que estava sendo produzido irregularmente (algumas centenas de peças), adicionou a Inditex, representa "uma porcentagem inferior a 0,03%" da produção do grupo, que é um dos maiores do mundo no segmento, no país.

A maior parte dos produtos do grupo que comanda a Zara é feita na Europa. Metade é confeccionada em países como Espanha (onde a empresa mantém fábricas próprias) ou Portugal. Outros 14% são fabricados em outras nações europeias como Turquia e Itália. A produção no Brasil corresponde a algo inferior a 1% do total. Em 2010, 30 lojas da Zara já estavam em funcionamento no país. São cerca de 2 mil profissionais contratados diretamente.

"No que se refere à presença comercial, o Brasil é o terceiro mercado mais importante da Inditex no continente americano, ficando atrás somente dos Estados Unidos e do México", colocou a empresa, que manifestou intenção de não abandonar a produção no país. "A Inditex prevê seguir crescendo no Brasil com a abertura de novas lojas a curto, médio e longo prazo".

*Portal Repórter Brasil - A jornalista da Repórter Brasil acompanhou a fiscalização da SRTE/SP como parte dos compromissos assumidos no Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções