quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Robert Fisk, The Independent, UK

Por que a vida no Oriente Médio continua encalhada na Idade Média?

Novae.inf


http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-why-does-life-in-the-middle-east-remain-rooted-in-the-middle-ages-1763252.html

Por que o mundo árabe – falemos terrivelmente claramente – é tão atrasado? Por que tantos ditadores, tão ralos direitos humanos, tanta 'segurança' e tortura, tantos analfabetos?

Por que esse mundo destroçado, tão rico em petróleo, tem, em tempos de computador, tantos milhões de analfabetos, mal nutridos, além de tantos corruptos? Sim, eu sei da história do colonialismo ocidental, as conspirações sinistras do Ocidente, o argumento árabe de que não se depõem xeiques e reis e autocratas, além de imans e emires, quando "o inimigo está à porta". Há verdade nisso, mas não suficiente verdade.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) aí está com mais um relatório, o quinto – feito por analistas e especialistas árabes, observem bem –, que denuncia o espantoso estado de atraso em que vive parte significativa do Oriente Médio. Fala da "fragilidade das estruturas políticas, sociais, econômicas e ambientais da Região (...), da vulnerabilidade à intervenção do exterior". Mas será que a desertificação explicaria o analfabetismo – maior entre as mulheres –, ou o Estado árabe o qual, o relatório admite, muitas vezes "é mais ameaça à segurança humana, do que instrumento para prover segurança"?

Rami Khouri, jornalista árabe, escreveu muito claramente, semana passada: "Como enfrentar as causas ocultas de nossa mediocridade e implantar mudanças reais ancoradas em cidadania sólida, economia produtiva e Estado estável continua a ser o enigma que continua a desafiar três gerações de árabes". O PIB real per capita na Região – um dos indicadores que mais chocaram Khouri – cresceu apenas 6,4% entre 1980 e 2004. Apenas 0,5% ao ano, taxa menor que a de 198 dos 217 países analisados no CIA World Factbook em 2008. Isso, para uma população árabe – 150 milhões em 1980 –, que chegará a 400 milhões em 2015.

Vejo, eu mesmo, quase tudo isso. A primeira vez em que estive no Oriente Médio, em 1976, já havia gente demais. As ruas malcheirosas, tão cheias que mal se pode andar nelas, do Cairo, já estavam sempre cheias, dia e noite, com quase um milhão de sem-tetos, muitos dos quais viviam nos grandes cemitérios otomanos. As casas árabes são imaculadamente limpas, mas as ruas são imundas, muitas vezes repugnantes, sujeira e lixo espalhados pelas calçadas. Mesmo no belo Líbano, onde há uma espécie de democracia e cujo povo está entre os mais cultos e bem educados de todo o Oriente Médio, o fenômeno é o mesmo. Nas vilas das montanhas do sul, as casas, sempre, rigorosa e perfeitamente limpas. Mas por que as ruas e os arredores das vilas são sempre tão sujos?

Suspeito que haja, sim, algum problema com a cabeça dos árabes: eles não se sentem donos dos próprios países. Constantemente expostos a efusões de entusiasmo em nome de uma "unidade" árabe ou nacional, acho que não sentem que pertencem à terra ou que a terra é sua, como os ocidentais sentimos. Quase sempre, ou muitas vezes, impedidos de eleger quem os represente realmente – até no Líbano, exceto no contexto das tribos ou do sectarismo – as pessoas sentem-se "descartadas", sentem-se excluídas, excetuadas. A rua, o país, como entidade territorial física pertence a outro, a alguém, não ao povo, aos habitantes. E, claro, no instante em que um movimento brota e – caso ainda mais grave – torna-se popular, introduzem-se novas leis de exceção que imediatamente tornam ilegal o movimento, ou o declaram "terrorista". Assim, a responsabilidade por cuidar dos jardins, dos arredores das cidades e das ruas é sempre transferida, sempre é de algum outro.

Os funcionários do Estado – que trabalham diretamente para o Estado e suas autarquias corruptas – também sentem que sua existência depende da mesma corrupção sobre a qual viceja o próprio Estado. A população torna-se parte da corrupção de todos. Nunca esqueço de um árabe dono de terras, há anos, reclamando das campanhas anti-corrupção de seu governo. "Antigamente, era pagar a propina ao funcionário certo, e consertavam o telefone, as bombas d'água voltavam a funcionar, voltávamos a ter energia elétrica" – dizia ele. "Hoje em dia, Mr. Robert, não posso subornar qualquer um, nem consigo subornar todos nem sei a quem subornar. Então... nada funciona!"

Desde o primeiro relatório do UNDP, de 2002, a coisa era já deprimente. Identificavam-se três principais obstáculos ao desenvolvimento humano no mundo árabe: o crescente "déficit" de liberdade, de direitos para as mulheres e de conhecimento. George W Bush – aquele, o da liberdade eterna, democracia eterna etc. etc. além de guerra eterna e eterno massacre no Iraque –, por exemplo, foi sensível a essas dificuldades. Até Hosni Mubarak do Egito (aquele, o do sucesso eleitoral superior a 90%), compreensivelmente irritado por estar ouvindo sermão do homem que rebatizou o "terror", disse a Tony Blair em 2004 que a modernização teria de considerar "as tradições e a cultura da Região".

Alguma solução para a guerra árabe-israelense resolverá todos esses problemas? Talvez, sim, alguns deles. Sem o constante desafio da crise, seria cada vez mais difícil renovar as leis de exceção, não aprovar constituições, negar qualquer legalidade ou constitucionalidade, distrair as populações porque, se não forem distraídas, há risco de que se ponham a exigir mudanças políticas radicais. Às vezes, temo que os problemas tenham-se aprofundado demais, que, como onde há esgoto que vaza há muito tempo, toda a terra em que pisam os povos árabes esteja infiltrada de problemas, porosa, frágil, e que sobre ela já nada se possa construir.

Foi para mim enorme alegria, há alguns meses, em palestra na Universidade do Cairo – aquela, a mesma na qual Barack Obama praticou diplomacia soft com o mundo muçulmano –, descobrir tantos alunos brilhantes, muitas moças nas classes e o quanto são mais bem-educados e mais bem formados, hoje, em comparação ao que vi em visitas anteriores. Mesmo assim, muitos, muitos, só pensam em mudar-se para o Ocidente. O Corão é documento preciosíssimo – mas um Green Card também é. E quem os poderia culpar, se Cairo está cheia de engenheiros pós-graduados que ganham a vida dirigindo táxis?

Quanto ao equilíbrio, sim, uma paz séria entre palestinos e israelenses, sim, ajudaria muito a reequilibrar os espantosos desequilíbrios que atacam como praga a sociedade árabe. Quem já não tenha energia para protestar contra a escandalosa injustiça que é aquela guerra, talvez reencontre forças para lutar contra outras escandalosas injustiças. Uma delas, por exemplo, a violência doméstica, a qual – apesar de os povos árabes serem, sim, muito ligados à família – é mais disseminada na sociedade árabe do que os ocidentais talvez saibam (ou os árabes admitam).

De qualquer modo, estou convencido, sim, de que, militarmente, temos de sair de lá. Temos de desocupar o Oriente Médio. Temos de sair de lá.

Façam o que for preciso. Temos de sair de lá. Mandem para lá professores, economistas, agrônomos. Mas não soldados. Os soldados têm de voltar para casa. Não defendem nada e ninguém, no Oriente Médio. Não nos defendem. Espalham, lá, caos idêntico e alimentam a mesma injustiça que fazem engordar as Al-Qaedas do mundo. Não, os árabes – ou, fora do mundo árabe, os iranianos ou os afegãos – não gerarão democracias eco-amantes, gênero-igualitárias, as risonhas e festejantes democracias que todos gostaríamos de ver (ou de ser). Mas, livres da "nossa" tutela, os árabes desenvolverão suas sociedades, em benefício das pessoas que as constituem. Talvez, assim, os árabes convençam-se de que são donos da terra onde vivem.

O amor nos tempos de... crise

Europa convive com desemprego provocado pela retração econômica (Foto: Reprodução)

Flavio Aguiar


Quando começou o estouro da bolha financeira nos Estados Unidos, em setembro de 2008, algum economista disse que a vida de todos ia mudar, e muito. Criou-se a impressão de que “nada será como antes”. Mas a extensão dessa frase só vai sendo percebida aos poucos, embora cada vez que ela se esclareça um pouco mais, os efeitos comprovados têm uma dimensão catastrófica ou, no mínimo, espetacular.

Durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso percebia-se um dos índices da “quebradeira Brasil” no fenômeno do “abre-fecha, fecha-abre”. A avenida Corifeu de Azevedo Marques, perto de onde eu vivia, no Butantã, em São Paulo, era um dos locais onde mais se observava esse fenômeno. A avenida era o reino do pequeno comércio, um viveiro de pizzarias com entrega em domicílio, frango assado, armarinhos, farmácias, chaveiros, oficinas, papelarias, lojinhas de todo tipo, além dos tradicionais barzinhos e das padarias.

E naqueles anos, entre 1998 e 2002, praticamente todo o dia um novo pequeno negócio abria e um antigo pequeno negócio fechava. Era uma nova forma de alta-rotatividade. Os que fechavam se viam na contingência de ter de impedir o crescimento das dívidas; os que abriam, muitas vezes eram movidos pela esperança de recém-desempregados de darem um uso promissor para seu fundo de garantia, ou outra indenização que recebessem.

Agora aqui em Berlim onde vivo, e em outras cidades europeias, vê-se um fenômeno mais radical. Os pequenos negócios não desfrutam da proteção dispensada às grandes empresas e grandes bancos; com eles está ocorrendo o simples fecha-fecha. É um espantoso rosário de quebradeiras, de lojas de todo o tipo que liquidam tudo porque vão fechar. Há as grandes lojas também: duas cadeias de lojas de departamento já anunciaram que vão fechar em breve.

E esse novo tipo de “quebra-quebra” sem pancadaria vai provocando um outro, o da deflação: as lojas que não estão quebrando têm de baixar seus preços porque as outras baixaram. Se baixam os preços, diminuem o número de empregados. Resultado: há estimativas de que o atual número de desempregados na Alemanha, aproximadamente 3,5 milhões num universo de quase 45 milhões de potenciais trabalhadores ativos, pule para 5 milhões em menos de um ano.

A tal ponto chegou a situação que Frank Walter Sternmeier, líder do Partido Social Democrata (SPD), cujas chances nas próximas eleições de setembro são reduzidas (com cerca de 23% ou 24% das intenções de voto), decidiu alavancar seu partido com a promessa de criar 4 milhões de novos postos de trabalho nos próximos anos. Esse patamar de insolvência atinge duramente os jovens, e não só na Alemanha. Faz tempo que os jovens – sobretudo os casais jovens que começam a planejar ou a ter filhos – não procuram mais um “emprego” propriamente, mas um “trabalho”. Qual a diferença? Um “emprego” é algo que se projeta no tempo de modo mais duradouro; um “trabalho” é algo mais imediato, ou simplesmente pré-datado: com frequência as ofertas são de “trabalho por um ano”, “por seis meses”, e esses são postos disputados avidamente por cada vez mais concorrentes.

É muito mais comum do que antes os relacionamentos amorosos já começarem ou continuarem à distância. A mãe e o filho, por exemplo, moram numa cidade, num país, e o pai em outro, e com frequência esses endereços mudam ao longo do ano. Por razões de amizade estive num aniversário, no último fim de semana, onde quase todos os casais jovens estavam vivendo de alguma forma essa nova circunstância. Dois dos pares que lá estavam, por exemplo, eram vítimas da circunstância agora cada vez mais comum de dormirem empregados e acordarem desempregados, sem mais nem menos, aliás, com muito menos do que mais, sem direitos, porque as condições de trabalho foram severamente atingidas pelos processos de desregulamentação em escala europeia.

Em alguns países (e na Alemanha é o caso) ainda existe um sistema de previdência social sólido, embora isso também tenha passado por reduções significativas. Um dos casais, com filho pequeno, estava na circunstância da jovem esposa trabalhar em Berlim e o jovem pai ir passar seis meses na Islândia, pois lá pintara um emprego provisório, com esse prazo, e essa era uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.

Enquanto isso, a fama do Brasil só cresce no mundo, pois para todo o lado para onde a gente se vire, leem-se elogios ao desempenho brasileiro, como um dos países em que as reações à crise foram das mais imediatas e das mais promissoras, mesmo no curto prazo. Fica a pergunta no ar, porque nunca é demais acautelar-se: será que para nós aquele “efeito Corifeu de Azevedo Marques” é coisa do passado mesmo? Esse certamente será um dos temas decisivos na próxima eleição – não me refiro apenas à alemã, mas à brasileira também, cuja “dança de salão” já começou e no ano que vem vai para as ruas.

Ainda sobre a crise do capitalismo...

Duas Crises
Jorge Cadima
“Quando a grande crise económica do capitalismo eclodiu, governos e propagandistas do sistema apressaram-se a despir as camisas que até à véspera envergavam. De grandes arautos do capitalismo selvagem passaram repentinamente a críticos verbais da «ganância», da «cultura de risco», dos «excessos» que, diziam, estavam na raiz do colapso. Em declarações e cimeiras prometeram profundas mudanças. Mas – advertiam – primeiro era preciso travar o descalabro. Muitos milhares de milhões foram entregues pelos estados ao sector financeiro – o principal responsável pelo buraco. E o que mudou?”
Jorge Cadima* - odiario

Quando a grande crise económica do capitalismo eclodiu, governos e propagandistas do sistema apressaram-se a despir as camisas que até à véspera envergavam. De grandes arautos do capitalismo selvagem passaram repentinamente a críticos verbais da «ganância», da «cultura de risco», dos «excessos» que, diziam, estavam na raiz do colapso. Em declarações e cimeiras prometeram profundas mudanças. Mas – advertiam – primeiro era preciso travar o descalabro. Muitos milhares de milhões foram entregues pelos estados ao sector financeiro – o principal responsável pelo buraco. E o que mudou?

Uma das maiores instituições financeiras – e também um dos maiores viveiros de governantes – dos EUA é a Goldman Sachs. No ano passado recebeu 10 mil milhões de dólares de dinheiros públicos. Agora, proclama lucros recorde no segundo trimestre de 2009, e decidiu distribuir 6,65 mil milhões de dólares em gratificações aos seus 29 400 funcionários (Bloomberg, 14.7.09). Alguns indivíduos vão meter ao bolso milhões de dólares, só neste trimestre. Escreve a Bloomberg: a Goldman Sachs «está a reverter para um modelo de negócios que os analistas consideraram irremediavelmente falido durante a crise de crédito global», aumentando as suas actividades de risco. Isto é, os multimilionários de Wall Street continuam a fazer o que sempre fizeram – e que disseram ser a causa da crise. Agora tentam-nos fazer crer que a crise está a abrandar. Querem o business as usual. Aliás, para alguns a crise nem chegou a começar. O ex-CEO da Porsche, Wendelin Wiedeking foi despedido depois de uma tentativa fracassada de comprar a Volkswagen, que deixou a Porsche com uma dívida de 10 mil milhões de euros. Mas na despedida Wiedeking recebeu uma compensação de 50 milhões de euros (Bloomberg, 23.7.09), sem contar com a remuneração de 77 milhões de euros que recebera no ano anterior, quando andava entretido a afundar a Porsche. Vários grandes bancos estão a aumentar os salários dos seus quadros dirigentes (Financial Times, 24.7.09). São factos para recordar quando vierem com a cantiga de que «todos temos que aceitar sacrifícios para sair da crise».

Se a «ganância» e os «excessos» do grande capital continuam de boa saúde, para o resto da Humanidade a situação é bem diferente. Milhões de trabalhadores já ficaram sem trabalho e estão a cair na miséria. A taxa oficial de desemprego nos EUA aproxima-se dos 10%, mas uma medida mais real e menos manipulada (a “taxa U6”) ascendia em Junho a 16,5% (Bureau of Labor Statistics, www.bls.gov). O patronato e governos dos grandes países capitalistas estão lançados numa ofensiva para aumentar a exploração de quem ainda trabalha. O grande capital nunca acreditou no «fim da luta de classes». Há uma crise para o grande capital e outra para os trabalhadores. Nos EUA foi decretada a falência da General Motors. Essa falência só durou 40 dias, após os quais os trabalhadores bem podiam falar num «11 de Setembro»: até 2011 serão encerradas 11 fábricas, até ao final deste ano o número de trabalhadores vai baixar de 91 mil para 67 mil; os que ficaram viram as suas remunerações drasticamente reduzidas. As greves estão proibidas (Workers' World, 17.7.09). Um desastre parecido ocorreu em Abril na Chrysler, que decretou a bancarrota apesar dos trabalhadores aceitarem todas as concessões que lhes foram exigidas para evitar a falência (Avante!, 21.5.09). Factos para recordar quando vierem com a calúnia de que em Portugal as fábricas fecham por culpa da «intransigência do PCP».

A crise mundial do capitalismo está longe do fim. Em última análise, é uma enorme crise de sobreprodução. Forças produtivas imensas terão de ser destruídas. Mas ao destruir o poder de compra de quem trabalha, também se aprofunda a crise. Os efeitos da crise vão continuar a devastar a vida de muitos milhões de seres humanos. O défice orçamental dos EUA vai atingir este ano uns estonteantes 1,8 milhões de milhões («triliões») de dólares, e a dívida pública total está em cerca de 11,5 milhões de milhões (Bloomberg, 13.7.09). Quem vai pagar esta factura? A palavra de ordem do grande capital é: «A pilhagem continua! Os trabalhadores que paguem a crise!». Mas a crise económica e social já está a desencadear resistência e luta. Em que os partidos de classe dos trabalhadores são chamados a desempenhar um papel fulcral. É por isso que os nostálgicos do fascismo e do anticomunismo violento estão de novo a sair das sarjetas.


* Jorge Cadima é Professor da Universidade Técnica de Lisboa e analista de política internacional


Este texto foi publicado em Avante nº 1.861 de 30 de Julho de 2009

Ganhamos mais uma....