quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maurício Caleiro: A greve dos professores das federais e os truques do governo

por Maurício Caleiro, no blog Cinema e Outras Artes

À medida que vêm à tona análises mais detalhadas da proposta do governo Dilma aos professores em greve, fica cada vez mais evidente que se trata não apenas de uma resposta insatisfatória em termos salariais e de estruturação da carreira. Depreendem-se do episódio aspectos preocupantes quanto às estratégias comunicacionais adotadas pelo governo no episódio, no modo como ele concebe e se relaciona com o professor universitário no Brasil e, sobretudo, no que toca à posição da Educação ante a área econômica do governo, tendo em vista seu planejamento e perspectivas futuras.

Ilusionismo financeiro

Quanto aos aspectos propriamente salariais, claro está que a proposta do governo é de tal ordem sujeita a variações de dados macroeconômicos futuros e à definição exata de datas de reajuste – deixadas em aberto – que não se pode falar categoricamente em aumento. Pois, a depender da inflação de 2012, 2013 e 2014 e de como o governo dividirá percentualmente entre tais anos os reajustes salariais, estes podem ser anulados ou mesmo superados pelo aumento do custo de vida.
Aumentos trienais sem garantia de percentual acima da inflação não significam a priori aumento real, mas uma aposta.

Plano de carreira

A atual greve dos professores prioriza duas reivindicações: plano de carreira e melhoria salarial. Se esta, como vimos, depende de uma aposta, o plano de carreira delineado pelo MEC – que, embora protocolado em abril de 2011, recende a improvisação – apresenta, infelizmente, aspectos que não apenas pioram as condições atuais como traem, de forma indubitável, a priorização das demandas da área econômica do governo em detrimento do planejamento sério e consequente do que deva ser a evolução profissional de um professor universitário.
Em meio a brechas e indefinições potencialmente danosas, o mais contraditório desses aspectos é a determinação de que mesmo mestres e doutores devem ingressar no magistério superior como Professor Auxiliar, e que só podem evoluir após os três anos de estágio probatório. Ora, isso, além de não fazer o menor sentido, é uma afronta à própria expectativa de direito anteriormente assegurada àqueles que ora cursam mestrado ou doutorado, para os quais ingressaram, em sua imensa maioria, justamente para ascender à (ou ingressar na) classe referente à sua titulação.

Papo reto

Se o governo realmente estivesse bem-intencionado e prezasse os professores das federais, não apresentaria uma aposta, mas uma proposta concreta de aumento salarial, superior à inflação projetada para este ano, e efetiva a partir de março de 2013 (pois um ano após o aumento de 2011). Simples assim.
Tivesse tomado essa medida trivial e apresentado um plano de carreira decente – obrigações básicas de qualquer governo, ainda mais de um que diz privilegiar a educação –, a greve já teria há tempos se encerrado.
Ao invés disso, após quase um mês de paralisação, rompe o silêncio e monta uma verdadeira operação de marketing para divulgar sua proposta – incluindo um texto em que dá destaque aos aumentos maiores, relativos à ínfima minoria dos professores titulares,e tabelas comparativas sui generis, que, numa manipulação injustificada e claramente mal-intencionada, contrapõem os salários de 2010 aos que os professores poderão vir a receber em 2015. Convém lembrar que estamos em 2012.

Marketing e mídia

Com estratagemas tais, e contando com a colaboração preciosa da mídia – que tantos alegam ser implacavelmente contrária à administração Dilma -, o governo tem sido parcialmente bem-sucedido em sua estratégia de jogar o público contra a greve. Basta ler os jornais e portais – e, neles, os comentários – para se ter a impressão de que os professores universitários estariam prestes a virar os novos marajás: “45% de aumento!”, “R$17 mil reais”, “Maior aumento da história”.
(Como se vê, a cobertura que a mídia destina à greve fornece mais um exemplo claro de que a oposição simplista entre PIG (Partido da Mídia Golpista) e governo Dilma não é efetiva, como querem alguns. E que havendo afinidade de interesses entre mídia corporativa e governo, a imprensa não se furta a se posicionar ao lado deste. Deixa de ser o malvado PIG e vira jornalismo amigo.)
Porém, a realidade fria dos números é bem outra. Para se aprofundar sobre os meandros da cobertura midiática, vale a pena ler os textos de Joana Tavares (no Viomundo), os de Sylvia Debassan Moretzsohn, “A lamentável cobertura da greve nas federais e “O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial” (no Observatório da Imprensa).

Equívocos e autoritarismo

Ao apresentar aos professores universitários uma proposta que mal disfarça o seu caráter de peça de ilusionismo monetário, o governo Dilma denota possuir uma visão estreita e subvalorizada do que seja o professor universitário, esse ente público que fatalmente tem e terá uma função essencial na formação das novas gerações de brasileiros e no redesenho futuro do país.
A impressão que fica é que o governo os toma por tolos, incapazes de fazerem contas financeiras ou de desvelarem truques de marketing de massas. Isso evidencia a existência de um erro de postura da administração Dilma, certamente menos decisivo e efetivo, na prática, do que as propostas que apresenta podem ser, mas denotadores, por um lado, de uma incompreensão profunda do que seja o professor universitário enquanto categoria profissional do Estado e, por outro, uma vez mais, da tendência a evitar o diálogo e a negociação ou a exercê-los em bases mínimas e restritas – a um passo do autoritarismo, como a autorização para o corte de ponto dos grevistas evidencia.

Contradições óbvias

É altamente significante da posição subalterna e desprestigiada que tanto o servidor público federal como a educação como um todo ocupam atualmente no país o fato de que o Ministério do Planejamento foi quem efetivamente comandou e deu a palavra final aos termos da inaceitável proposta apresentada aos professores. Mercadante, se digladiando entre sua passividade conservadora e sua ânsia por holofotes características, limitou-se, se tanto, a barganhar, enquanto o ministro do Trabalho sequer foi chamado à mesa se negociações.
Mais: o mesmo governo que faz de tudo para irrigar a economia através da ampliação do crédito – portanto, de capital advindo de endividamento junto ao sistema financeiro, que acaba por se traduzir em lucro para os bancos – parece não querer irrigá-la com salário – capital originário das relações sociais do trabalho, que teoricamente beneficiaria o assalariado (e, ainda mais, quem o emprega), mas que, na visão economicista predominante, prejudica o governo por aumentar seus gastos.

Tire suas conclusões

Assim, no final das contas, apesar das inegáveis conquistas sociais representadas pela redução da pobreza no país, mesmo o investimento em áreas fundamentais como saúde e educação mantém-se submetido aos ditames ditados pelo setor financeiro, que tem na área econômica do governo o seu representante no Estado. Os bancos brasileiros são, atualmente, os que mais lucram no mundo. Já a educação oferecida no país ocupa posições vergonhosas em comparação com o contexto internacional. Diga o leitor qual é a prioridade do governo.

Dona Europa e suas filhas

Frei Betto no CORREIO DA CIDADANIA  

Dona Europa livrou-se, há séculos, da tutela do Senhor Feudal, ao qual esteve submetida ao longo de mil anos. Cabeça feita por Copérnico, Galileu e Descartes, casou-se com o Senhor Moderno Liberal e montou casa no bairro da Democracia.

Dona Europa puxou o tapete dos nobres, deu um chega pra lá no papa e elegeu governos constitucionais que trocaram a permuta pela moeda, evitaram fazer uso de mão de obra escrava, transformaram antigos camponeses em operários merecedores de salários.

Dona Europa passou a nutrir ambições desmedidas. Fitou com olho gordo no imenso mapa-múndi que enfeitava a sala de sua casa. Quantas riquezas naquelas terras habitadas por nativos ignorantes! Quantas áreas cultiváveis cobertas pela exuberância paradisíaca da natureza!

Dona Europa lançou ao mar sua frota em busca de ricas prendas situadas em terras alheias. Os navegantes invadiram territórios, saquearam aldeias, disseminaram epidemias, extraíram minerais preciosos, estenderam cercas onde tudo, até então, era de uso comum.

Dona Europa praticou, em outros povos, o que se negava a fazer na própria casa: impôs impérios, reinados e ditadores; inibiu o acesso à cultura letrada; implantou o trabalho escravo; proibiu a industrialização; internacionalizou normas econômicas que lhes eram favoráveis, em detrimento dos povos alhures.

Um dos povos de além-mar dominados por Dona Europa ousou rebelar-se em 1776, emancipou-se da tutela e se tornou mais poderoso do que ela – o Tio Sam.

O professor Maquiavel ensinou à Dona Europa que, quando não se pode vencer o inimigo, é melhor aliar-se a ele. Assim, ela associou-se a Tio Sam para exercer domínio sobre o mundo.

Dona Europa e Tio Sam acumularam tão espantosa riqueza que cederam à ilusão de que seriam eternos o luxo e a ostentação em que viviam. Tudo em suas casas era maravilhoso. E suas moedas reluziam acima de todas as outras.

Ora, não há casa sem alicerce, árvore sem raiz, riqueza sem lastro. Para manter o estilo de vida a que se acostumaram, Dona Europa e Tio Sam gastavam mais do que podiam. E, de repente, constataram que se encontravam esmagados sob dívidas astronômicas. O que fazer?

A primeira medida foi a adotada em turbulência de viagem de avião: apertar os cintos. Não deles, óbvio. Mas de seus empregados: despediram alguns, reduziram os salários de outros, deixaram de consumir produtos importados. Assim, a crise da dupla se alastrou mundo afora.

Dona Europa e Tio Sam não são burros. Sabem onde mora o dinheiro: nos bancos. Tio Sam, ao ver o rombo em sua economia, tratou de rodar a maquininha da Casa da Moeda e socorreu os bancos com pelo menos US$ 18 trilhões.

Dona Europa tem várias filhas. Segundo ela, algumas não souberam administrar bem suas fortunas. A formosa Grécia parece ter perdido a sabedoria. Gastou muito mais do que podia. O mesmo aconteceu com a sedutora Itália, a encantadora Espanha e a inibida Irlanda.

Como o cofre da família é de uso comum, Dona Europa se cobriu de aflições. Puniu as filhas gastadoras e apelou à mais rica de todas, a severa Alemanha, para ajudá-la a socorrer as endividadas.

A Alemanha é manhosa. Disse que só socorre as irmãs se puder controlar os gastos delas. O que significa cortar as asinhas das moças – o que em política equivale a anular a soberania.

Soberana hoje, na casa de Dona Europa, só a pudica Alemanha. O resto da família é dependente e está de castigo. A mais cheirosa das filhas, a França, anda rebelde. Após aparecer de mãos dadas com a Alemanha, agora que arrumou namorado novo encara a irmã com desconfiança.

Nós, aqui do sul do mundo, que ainda não cortamos o cordão umbilical com Tio Sam e Dona Europa, corremos o risco de ficar gripados se Dona Europa continuar a espirrar tanto, alérgica ao espectro de um futuro tenebroso: a agonia e morte do deus Mercado, cujos fiéis devotos mergulharam em profunda crise de descrença.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
Twitter: @freibetto.

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