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sábado, 25 de junho de 2011

Para onde vai o Fórum Social Mundial?


Reunidos em Paris no fim de maio, os representantes das organizações membros do Conselho Internacional (CI)do Fórum Social Mundial refletiram sobre o futuro do FSM num novo contexto, marcado pela emergência dos movimentos populares nos países árabes. Em função de tudo isso, é permitido esperar que um FSM na Tunísia ou no Cairo em 2013 venha a ter um efeito realmente mobilizador, um pouco como teve no caso das primeiras edições do FSM na América Latina.

 
Agir no epicentro da crise
Há vários anos no Magreb e no Mashrek [1] os movimentos populares estão em marcha para elaborar novas estratégias. Sob a ameaça constante de regimes de ditaduras corrompidas ou pseudo-democracias (as “democraturas”, como as nomeou justamente o saudoso Abraham Serfati), esses movimentos também sofrem ataques das correntes reacionárias, que agem sob o manto da religião. Como nos lembraram os camaradas marroquinos, tunisianos, egípcios, cada situação é singular, caracterizada por configurações políticas, sociais, culturais, específicas. As contribuições de Kamal Labhib, de Gustave Massiah e de Samir Amin, notadamente, tem nos permitido compreender melhor a complexidade e os desafios que isso comporta para os movimentos populares num processo de longa duração.

É necessária uma intervenção

Enquanto isso, para as organizações sociais do mundo inteiro, a prioridade é resistir às diversas ofensivas imperialistas que visam reassegurar essa parte do mundo com vistas aos objetivos geopolíticos e geoeconômicos dos dominantes. O desmembramento em curso na Líbia, que se junta ao da Palestina, do Iraque, do Afeganistão, do Sudão e de outros países do “arco das crises” se inscreve numa estratégia de “gestão de crise” cujo fim é impedir toda mudança real. Para os partidos que compõem o FSM, tudo isso quer dizer dar atenção a essa situação e se solidarizar, bem como confrontar as classes dominantes nos países em que esses movimentos estão localizados, e enfim apoiar o duro trabalho de construção das redes estabelecidas pelo Fórum Magreb-Mashrek e uma miríade de organizações na região, há alguns anos.

Em função de tudo isso, é permitido esperar que um FSM na Tunísia ou no Cairo em 2013 venha a ter um efeito realmente mobilizador, um pouco como teve no caso das primeiras edições do FSM na América Latina.

Repensar o Processo do Fórum

Há pelo menos três anos que se sabe que há uma discussão em curso para reforçar o processo do FSM. Ao longo de todos os seus dez anos o FSM marcou os avanços do movimento popular, sobretudo na América Latina. Os “avanços” do FSM na Ásia, na África e na Europa também tiveram vários aspectos positivos. No entanto, está claro que a fórmula dos grandes encontros, que permitiram ao movimento popular “visualizar-se” deve ser retomada. Além disso, o último Fórum em Dakar demonstrou a vitalidade de um certo número de inovações. Pensa-se notadamente nos espaços de elaboração estratégica para os movimentos e das redes, que vão além dos diagnósticos da crise e que lançam luz sobre hipóteses estratégicas. Esses passos requerem muita preparação, por meio de pesquisas, de consultas, de diálogos cruzados entre vários movimentos. O processo implica também, além da organização de uma ou de conferências durante o Fórum, um trabalho de longa duração. As organizações e redes que participarão desse processo no próximo período serão as que agregarão valor ao FSM.

Retorno ao local

Por definição, a importância do FSM foi justamente a de tornar visível uma mundialização dos movimentos, via elaboração de uma plataforma de discussões e portanto de problemas comuns. Hoje, se esse objetivo permanece válido em várias partes do mundo, em que o processo do FSM está ainda embrionário, é menos prioritário para vários movimentos, especialmente na América Latina e na Europa, embora seja preciso distinguir as diferenças reais que separam a experiência nos diversos países. Contudo, desenvolve-se uma certa tendência a querer enraizar o Fórum em escalas locais, regionais e até municipais, onde a convergência dos movimentos pode ter um impacto imediato. Esses fóruns locais tem igualmente a vantagem de se focalizarem num certo número de temáticas que correspondem justamente às prioridades locais, o que facilita a tarefa dos movimentos que pretendem ir além no sentido da elaboração de estratégias.

Uma reorganização necessária

O FSM não foi concebido no início como uma “conferência” ou um “acontecimento”, mas como um processo facilitador de acumulação das experiências úteis aos movimentos populares na sua resistência ao neoliberalismo e na elaboração de alternativas. Certo, a importância de organizar grandes encontros era evidente nesse primeiro período, mas não é preciso fazer disso um princípio absoluto. É preciso também considerar os interesses divergentes que se expressam a esse respeito no fórum e que envolvem os movimentos altermundistas, os sindicatos, as ONGS, as redes feministas, os campesinos, os ecologistas, etc. O princípio da pluralidade e dos diálogos cruzados deve permanecer em primeiro plano. Igualmente central é a ideia de que esses diálogos cruzados devam “desembocar”, quer dizer, permitir uma melhor articulação das práticas, à luz de elaborações teóricas e isso, ao se integrar às culturas políticas diversas e às estratégias distintas postas desde o começo pelos movimentos populares.

Repensar os recursos

Ligado a esse debate está o dos recursos. O FSM é a emanação dos movimentos sociais e não um “projeto” proposto a fundações liberais, e menos ainda a estados talvez “acolhedores”, mas cujos objetivos são antinômicos aos dos movimentos. Um FSM que respire e que avance, por exemplo, deve integrar a dimensão ecológica alinhada à gigantesca batalha mundial por Pachamama, o que é contraditório com uma dependência financeira dos que preconizam o “desenvolvimento” por meio das fontes de energia fóssil. Dito isso, é preciso que as organizações sociais tomem as rédeas da organização e do financiamento do Fórum. É em todo caso possível, como demonstraram os camaradas dos Estados Unidos com a organização do Forum dos EUA no último verão em Detroit. Nesse sentido, as proposições do comitê internacional sobre os recursos permitiram identificar várias pistas promissoras para autonomizar o FSM nesse plano.

O FSM dos dez próximos anos

É muito provável que o processo do FSM seja relançado e reforçado em função das pistas oferecidas acima. De uma certa maneira, a liderança deve se renovar e passar a mão a uma nova “geração”. Os brasileiros e outros movimentos latino-americanos, que muito contribuíram sabem que essa “passagem” é necessária, mesmo que suas redes continuem ativas no Fórum, mas sem o mesmo peso e sem desempenharem o papel central que ocuparam nos últimos anos. Essa transição deve ser feita por etapas e ir de par com o desenvolvimento das redes nas diversas regiões. Enquanto isso, as novas iniciativas estão se desenvolvendo um pouco em toda parte para construir, no seio dos movimentos populares novos “intelectuais coletivos”, na tradição de Gramsci e de Bourdieu, de “intelectuais coletivos” enraizados nos movimentos, capazes de desenvolver os saberes inscritos nos movimentos e de produzir elaborações estratégicas que lhes permitam construir verdadeiras ferramentas contra hegemônicas.

Tradução: Katarina Peixoto

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

José Reinaldo: O espírito da nossa época é o anti-imperialismo


De volta ao Brasil depois de participar do Fórum Social Mundial em Dacar, o secretário Nacional de Comunicação do PCdoB, José Reinaldo Carvalho, falou ao Vermelho sobre os debates realizados no FSM. Entre os destaques das discussões – promovidas entre 6 e 11 de fevereiro, na Universidade de Dacar – estão o combate à herança de subdesenvolvimento do continente e a luta contra os mecanismos de espoliação da África, através do cancelamento da dívida externa.


Por Mariana Viel

José Reinaldo, que também é editor do Vermelho, ressaltou ainda o lançamento do livro “Grupons-nous, et demain!” (literalmente, “Agrupemo-nos, e amanhã! – verso do hino A Internacional ). O evento, realizado no último dia 14, na Assembleia Nacional Francesa (parlamento), palco de marcantes acontecimentos políticos históricos, tem grande significado para a esquerda progressista mundial.
Publicado pela Editora Les Temps des Cerises, o livro aborda a crise internacional e as alternativas da esquerda. Fruto do seminário realizado em São Paulo, em junho de 2009, sob os auspícios do PT, o PCdoB e suas respectivas fundações de estudos, a Perseu Abramo e a Maurício Grabois, e da Rede Corresponências Internacionais, a obra traz uma das abordagens mais completas e profundas sobre a crise do capitalismo, apontando a incapacidade desse sistema para satisfazer as atuais necessidades da humanidade.
Promovido pela bancada parlamentar do bloco Esquerda Democrata e Republicana, do qual fazem parte os comunistas franceses, e pela Fundação Gabriel Peri, o ato foi coordenado pela Rede Correspondências Internacionais e contou com as presenças do renomado economista francês de esquerda, Paul Boccara, do jornalista e escritor Henri Alleg, do embaixador de Cuba na França, Orlando Gual, dos dirigentes políticos Robert Griffiths, secretário-geral do PC da Grã Bretanha, Chris Mathlako,do Birô Político do PC da África do Sul, Sérgio Ribeiro, do Comitê Central do PCP, Lô Gourmo, da União das Forças pelo Progresso, da Mauritânia, Gyula Thurmer, do Partido dos Trabalhadores da Hungria e Valter Pomar, do Partido dos Trabalhadores. Presentes entre o público a embaixadora da Bolívia na França, o embaixador do Sri Lanka e representações diplomáticas do Brasil e da Venezuela.


Vermelho: Qual é o significado da realização de uma nova edição do Fórum Social Mundial no continente africano?
José Reinaldo Carvalho: Acho que um dos destaques do Fórum Social de Dacar é o próprio fato de se fazer – pela segunda vez – um fórum em terras africanas. Se contarmos com o fórum setorial, que coincidiu também com a realização do Fórum Mundial das Alternativas — realizado em Bamako, capital do Mali — essa é a terceira vez que a África acolhe um acontecimento desse tipo.

Como os próprios acontecimentos no norte da África estão demonstrando, essa é uma região muito importante no mundo de hoje. O continente africano herda grandes chagas econômicas e sociais do colonialismo. Essa herança pesa muito nas condições de vida miseráveis, nas dificuldades para o desenvolvimento econômico, na opressão e nas discriminações de toda natureza. A realização de um fórum desse tipo na África atrai as atenções do mundo progressista para o continente.

Vermelho: Quais foram os destaques dos debates do fórum?
JR: Duas grandes questões foram objeto de debates: a luta pelo desenvolvimento, para combater essa herança do subdesenvolvimento, e a luta contra os mecanismos econômicos e financeiros de espoliação da África, particularmente relacionados com o cancelamento e o não pagamento da dívida externa.

Também me chamou bastante atenção a quantidade de pessoas presentes no fórum. A Universidade de Dacar – local onde se realizou o fórum – estava permanentemente lotada, era uma verdadeira multidão. A presença africana era maciça, o que deu uma beleza e uma conotação humana e social especial evento. Havia ainda uma grande presença de europeus e latino-americanos – em particular brasileiros. A presença dos movimentos sociais brasileiros chamava a atenção. Do ponto de vista humano, cultural e antropológico foi uma experiência extraordinária.

Vermelho: Qual foi a importância dos debates das Assembleias dos Movimentos Sociais?
JR: Essas assembleias — realizadas nos dias finais do fórum — feitas para traçar plataformas de luta e calendários de mobilização também foram muito concorridas. Elas são resultado do acerto de uma posição justa que considera que o fórum deve ser voltado para as lutas. Esse pensamento se contrapõe a uma corrente que defende que o fórum seja apenas um marco de debates, onde pontificam apenas as organizações não-governamentais e um grupo de intelectuais – muitos dos quais impregnados de ideologia anti-comunista e anti-socialista. Esses intelectuais e essas ONGs se opõem ao que chamam de “movimentos sociais tradicionais”, para desqualificar as organizações sindicais e de massas que têm raízes históricas e ligações mais profundas com as lutas dos trabalhadores e dos povos. Foi sobre a base dessas falsas concepções que surgiram os chamados “altermundialismo” e “movimentismo”. A luta pelo socialismo certamente se atualiza com as dinâmicas novas das lutas políticas e sociais e a incorporação de novos sujeitos e atores políticos, mas não carece desses modismos para se desenvolver. Em especial na América Latina e no Brasil devemos estar vigilantes com certas posturas que, embora posando de “modernas” e “originais”, macaqueiam, arremedam ou mimetizam os cacoetes europeus. Obviamente o fórum é um espaço para o pluralismo e o debate de ideias, mas é importante fazer deste debate um veículo para a luta. As Assembleias dos Movimentos sociais foram combativas e concorridas e tiraram importantes indicações de luta contra o neoliberalismo, as bases militares e as guerras imperialistas.

Vermelho: Após o Fórum de Dacar, você participou do lançamento do livro “Grupons-nous, et demain!” (“Agrupemo-nos, e amanhã!”), na França. Fruto do seminário realizado em junho de 2009, em São Paulo, através de uma parceria entre as Secretarias Internacionais do PT e do PCdoB, suas respectivas fundações de estudos, a Perseu Abramo e a Maurício Grabois e da Rede Corresponências Internacionais, o livro traz ainda grandes contribuições de economistas, intelectuais e dirigentes políticos. Como ele se apresenta no atual cenário progressista?
JR: O livro não se limitou ao seminário. A versão francesa incorpora contribuições de intelectuais, escritores, analistas e críticos que não puderam ter presença direta, participaram com seus textos. Entre eles está Paul Boccara, que é um dos maiores economistas franceses e o maior nome dentre os economistas progressistas de esquerda da França. Posso citar também o Samir Amin, que é um dos maiores intelectuais da atualidade, crítico do imperialismo e do capitalismo, organizador do Fórum Mundial das Alternativas e do Fórum do Terceiro Mundo e um dos nomes mais conhecidos do pensamento econômico marxista contemporâneo. O grande mérito desse livro é sistematizar uma série de pontos de vista progressistas, marxistas e anti-capitalistas sobre a crise do capitalismo. É uma das abordagens mais completas e profundas que conheço sobre a crise.

Vermelho: Como os textos reunidos no livro se apresentaram para o universo teórico-econômico da atual esquerda progressista?
JR: A maioria dos ensaios nele publicados refutam algumas teses que de maneira insidiosa e oportunista penetraram no pensamento da esquerda. Quando a crise começou a se instalar surgiu uma corrente de pensamento que dizia que ela era apenas uma crise financeira e passageira. Esta corrente defendia que essa não era uma crise do sistema capitalista e não nega os fundamentos do capitalismo. Tentaram até mesmo usar o Lênin para sustentar essa tese esdrúxula de que o capitalismo não estaria em decadência, mas sim em plena expansão. Ao mesmo tempo, dizia-se também que mesmo com o epicentro da crise nos Estados Unidos, sua economia era inabalável e sua hegemonia inamovível.

Eles não admitiam que os Estados Unidos são uma potência declinante no mundo. Assim como o seminário, o livro ajuda a fazer essa luta de idéias. Mostra que a crise é profunda, duradoura, de difícil saída, estrutural, sistêmica e põe em cheque os próprios fundamentos do sistema capitalista e imperialista. Isso não significa dizer que o capitalismo e o imperialismo vão cair de podre como resultado automático da crise. A superação revolucionária do capitalismo e do imperialismo depende também do fator subjetivo, da mobilização e luta dos trabalhadores, da revolução social e política. Ao mesmo tempo, ao desnudar suas dificuldades estruturais, o capitalismo revela também que é um sistema que não serve mais para satisfazer as necessidades da humanidade.

Ligado a isso, o livro discute o socialismo. Não pensando em voltar ao modelo antigo do socialismo. Sabemos que aquele modelo que vigorou no século 20 jogou um papel transformador na história, mas tal e qual ele era não volta mais. Não se pensa em restaurar aquele modelo, mas apresentamos a questão do socialismo olhando para o futuro.

Vermelho: Durante o lançamento do livro, Lô Gourmo, da União das Forças Progressistas da Mauritânia, afirmou que “a revolução bate à porta, mas não são ainda os revolucionários que a abrem”. O que isso significa no contexto de luta atual?
JR: Ele fez essa afirmação durante sua análise dos acontecimentos do Egito, onde houve uma revolta popular – com caráter revolucionário – que fez com que a revolução batesse à porta, mas o resultado é que as forças da grande burguesia, aliadas ao imperialismo, impedem que ela aconteça. Isto no caso do Egito, que seria uma espécie de revolução inacabada.

Pensando em termos mais globais, por toda a parte amadurecem as condições para a realização de transformações sociais e políticas, para a revolução social. Continuo achando que o espírito da nossa época é a luta antiimperialista. O espírito da nossa época é o anti-imperialismo.

Considero esta uma época promissora, de otimismo histórico, de luta e esperança. Mas as condições que dizem respeito à subjetividade dos atores sociais como a consciência política e ideológica, o nível de organização, a capacidade de mobilização, de ação coletiva, de formulações estratégicas e táticas e de elaboração teórica ainda deixam muito a desejar. Enquanto essas condições não amadurecerem, os movimentos revolucionários vão colher vitórias e derrotas, avanços e retrocessos.

Vermelho: Apesar dessas observações, as insurreições populares – iniciadas na Tunísia e Egito – e que se estenderam por uma série de países do mundo árabe jogam um papel importante na atualidade?
JR: Apesar do processo ainda estar truncado, este é um grande passo adiante. O fato das massas se colocarem em movimento e das ideias democráticas avançarem é um passo adiante.

Encarando uma experiência que tem outra forma de se manifestar, devemos citar a América Latina. Não estamos tendo explosões revolucionárias, mas experimentamos mudanças, sobretudo políticas, que também são passos adiante no sentido revolucionário. O fato de você ter um continente com classes dominantes tão poderosas e reacionárias, oligarquias cruéis que fabricaram ditaduras fascistas e governos neoliberais, hoje possuir um grande número de países que estão avançando nos processos democráticos, populares e antiimperialistas – alguns até se proclamando pelo socialismo – tem um grande significado histórico.

Vermelho: O que ainda impede o nosso desenvolvimento do ponto de vista econômico e social?
JR: Acho que não avançamos suficientemente nessas áreas pela força que o imperialismo e as classes dominantes ainda têm. No caso do Brasil, demos passos importantes com os dois governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acho que podemos dar novos passos com a presidente Dilma Rousseff, mas do ponto de vista econômico e social o processo ainda é muito lento porque as classes dominantes brasileiras não permitem a realização de mudanças profundas. São classes dominantes na sua essência reacionárias, como a grande burguesia financeira, verdadeira oligarquia antinacional e antipopular; a grande burguesia monopolista nacional, associada ao imperialismo, e o grande latifúndio. Setores dessas classes dominantes bancam de progressistas, o que engana até muita gente de esquerda. Tudo isso ainda impede que o ritmo das reformas estruturais no Brasil seja mais veloz. Não vejo isso como motivo para ansiedade nem pessimismo histórico. O Brasil está avançando, assim como a América Latina.

Vermelho: Nesse aspecto, quais seriam os atuais desafios dos comunistas brasileiros?
JR: Do ponto de vista do Partido Comunista do Brasil, esses desafios foram sistematizados durante o nosso último Congresso – realizado em outubro de 2009 –, quando o nosso partido elaborou um novo programa político. Eu diria que o desafio da esquerda, das forças revolucionárias, dos comunistas é a acumulação revolucionária de forças, através da luta política e social pelas reformas estruturais que vão fazer do Brasil um país democrático, progressista, soberano e socialmente justo, o que passa neste momento pelo apoio ao governo da presidente Dilma, como fizemos em relação a Lula, para que o país avance nas mudanças. O governo de Dilma só terá êxito se avançar nessa direção. Numa perspectiva estratégica, a libertação nacional e social do povo brasileiro só vai se produzir através de um caminho de árdua luta contra a dependência externa, o domínio geral que o imperialismo norte-americano ainda exerce em toda a nossa região e o sistema econômico, social e jurídico-político da classe dominante brasileira. É preciso conduzir uma luta de longo fôlego contra essas classes dominantes e o imperialismo.

Devemos fazer isso assumindo em nosso cotidiano aquelas lutas que correspondem aos anseios profundos das massas populares: a democracia, a justiça social, a independência e a soberania nacional e a paz mundial. Podemos fazer isso em melhores condições políticas atualmente porque o Brasil é um país democrático, com um governo que escuta o povo. Nossa palavra de ordem para a militância deve ser: “Onde há luta tem PCdoB”.

É indispensável também garantir a união de amplas forças políticas progressistas. É positivo que o Brasil seja governado por uma ampla coalizão, mas dentro dela é preciso que exista um núcleo de esquerda, democrático e popular, anti-imperialista, que tenha por objetivo a transformação socialista no país. Em segundo lugar, esta luta só vai dar certo com a ampla mobilização do povo. É por isso que os comunistas não vacilam em apoiar e participar de todas as lutas do povo. São elas que irão desempenhar um papel pedagógico para que o povo, através de suas próprias experiências, saiba quais são os passos que tem que dar no sentido da sua emancipação política e social. Do ponto de vista dos comunistas, o terceiro fator é ter um partido forte.

Vermelho: Com a política macroeconômica atual é possível mesmo o governo da presidente Dilma avançar para maiores mudanças?

JR: Em absoluto, não pode. A política econômica é conservadora e neoliberal. Tem que mudar. Mas, tal como o governo Lula, o da Dilma está em disputa entre os conservadores e os progressistas. Não devemos abandonar o barco. É um bom combate a travar.

Vermelho: Quais seriam os eixos para a construção de um partido comunista forte?
JR: Ter um partido comunista forte também significa enfrentar outros desafios. O primeiro é combater os experimentos que alguns alquimistas estão fazendo de reforma política que visam, entre outras coisas, colocar o partido comunista num gueto. A reforma política proposta por alguns setores da classe dominante e dos grandes partidos vai no sentido contrário do fortalecimento do partido comunista. Eles combatem o voto proporcional, defendem a imposição da cláusula de barreira, a proibição das coligações em eleições proporcionais e a manutenção do financiamento privado – que é a forma da grande burguesia mandar nos políticos. Também se fala no voto distrital, distrital misto e distritão. Tudo isso são experimentos de alquimistas a serviço de soluções anti-democráticas. Para fortalecer o partido comunista é preciso combater essa proposta de reforma política e propugnar uma reforma política democrática.

Vermelho: No quadro da reforma política, o que acha da anunciada fusão entre os dissidentes do DEM, sob a liderança do Kassab, com o PSB? Isto pode contribuir para o reforço das posições de esquerda no governo da Dilma?
JR: Falo em tese. Esse é um dos muitos paradoxos da vida política brasileira. A ida do Kassab para a base da Dilma poderá dar maior governabilidade numérica à presidente, nada mais. Qualitativamente acrescenta o quê? Não impulsiona o governo no sentido progressista, ao contrário. Não há dúvida de que toda cisão na direita deve ser explorada como reserva tática pela esquerda. Mas não vejo como esse movimento fortaleceria a esquerda. Não dou opinião sobre o que será do PSB se este partido se fundir com o bloco kassabista. Nem me refiro ao convite que o prefeito fez ao PCdoB em São Paulo para integrar sua administração. Insisto, falo em tese. Kassab e sua entourage constituem uma parte da direita brasileira. Em minha opinião, o fortalecimento da esquerda passa por outros caminhos. Estamos praticamente às vésperas de uma eleição municipal e seu governo sofre contestação de todos os lados no movimento social, além de ser mal avaliado pela população. Não vejo como a esquerda se unir em torno dele em 2012 nem em 2014. Outra coisa é a convivência política, que não é necessariamente sinônimo de aliança nem de composição orgânica.

Vermelho:Voltando ao PCdoB, como vê a sua transformação num partido forte?
JR:O partido precisa aumentar suas fileiras, adquirir maior densidade eleitoral, enraizar-se entre as massas trabalhadoras, a juventude, as mulheres, a intelectualidade progressista e atuar como força organizada. E acima de tudo, é preciso que o próprio partido reforce o seu caráter, sua identidade e sua ação como força política consciente, organicamente independente na luta pelo socialismo. O Partido Comunista do Brasil não vai crescer escamoteando seu caráter comunista. Nem rebaixando a perspectiva socialista ou ofuscando sua missão histórica. Ele só vai se fortalecer se tornar ainda mais nítida a sua identidade comunista e levantar cada vez mais alto a bandeira do socialismo. Além disso, deve colocar sua militância a serviço das lutas do povo e dos trabalhadores — que constituem o centro de gravidade da atuação do partido. Para nós, não há contradição entre estar na luta do povo e atuar em instituições parlamentares e governamentais. Se fizermos isso, iremos superar nossas metas de crescimento quantitativo, eleitoral e nos tornaremos um partido forte em todos os aspectos.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Palestra com Boaventura de Sousa Santos


Na avaliação do sociólogo português, protestos como os que ocorrem no norte da África e no Oriente Médio podem derrubar ditadores, mas para acabar com o capitalismo é preciso uma sinergia maior entre ações no âmbito global. “O desafio do FSM agora é se renovar e encontrar uma forma de dialogar com os cidadãos não organizados”, afirmou.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Entrevista com Taoufik Ben Abdallah


O senegalês de origem tunisiana Taoufik Ben Abdallah afirma, em entrevista à Carta Maior, a importância de se realizar o FSM pela segunda vez na África, destaca que todo povo é capaz de fazer sua revolução -- e que as contribuições com os valores universais não são monopólio dos países ricos.

Mudou Lula ou mudou o FSM?

Emir Sader na Carta Maior

Na reunião do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial de 2001 com Lula, este foi duramente interpelado por todas as intervenções, seja sobre o papel do Brasil na OMC, sobre as relações do governo brasileiro com as empresas de agronegócios, seja pelo lugar do governo na polarização politica mundial.

Neste Fórum de 2011, Lula foi aclamado como ninguém, aparece como um grande líder de projeção mundial. Naquela que deveria ser a reunião correspondente à de 2001, com o Ministro Secretario Geral do governo, Gilberto Carvalho, ninguém levantou nenhum questionamento – nem sobre Belo Monte, São Francisco, OMC, Haiti ou qualquer outra questão -, ao contrário, houve enorme congraçamento, especialmente entre ONGs e governo.

Mudou Lula e o governo brasileiro ou mudou o FSM?

Ambos mudaram. Basta dizer que a abertura deste FSM teve apenas duas intervenções – a do presidente da Bolívia, Evo Morales, e a do Ministro do governo Dilma, Gilberto Carvalho. Isto é, ao contrário dos Foros anteriores, incluído o de Belém, em que a presença de 5 presidentes latino-americanos teve que encontrar um espaço paralelo à programação do Fórum, desta vez dois representantes de governo ocuparam lugar central e – tirando a corda excessivamente para o outro lado - nenhum movimento social falou na abertura do FSM.

De qualquer maneira avançou-se de uma atitude de exclusão de governos, partidos, políticos, para a incorporação de representantes de governos progressistas da América Latina no corpo mesmo do FSM. Certamente mudou a situação politica e isto representa um reconhecimento de que os governos progressistas da América Latina estão construindo o outro mundo possível.

Lula, antes objeto de grandes críticas, aparece como um grande líder dos povos de Sul do mundo, engajado na construção de um mundo multipolar, na critica dura à dominação do mundo pelas potencias tradicionais, na crítica à forma como os países do centro do capitalismo geraram a crise atual e não conseguem sair dela, por se manterem no marco das posições neoliberais.

Mas certamente também mudou o FSM. Se vê uma participação relativamente menor dos movimentos sociais e mesmo das próprias ONGs. A situação destas ficou mais explicita em intervenções na reunião com Gilberto Carvalho, onde representantes das ONGs expressaram a crise financeira que as afeta, além da visão de que nunca teriam sido anti governamentais, mas contra governos neoliberais e aceitando a proposta do governo de uma comissão permanente de intercambio entre o governo do Brasil e o Comitê Internacional do FSM.

É bom que seja assim, mas sempre que o FSM fortaleça a presença dos movimentos sociais – sua forma central de existência.

Lula tampouco é o mesmo de 2003. Seu discurso foi se desenvolvendo conforme o mundo foi mudando e, com ele, a politica externa brasileira foi se tornando mais abrangente. O diagnóstico da crise feito por Lula aponta para responsabilidades centrais das potências capitalistas e sua forma de resgatar aos bancos, mas não a economia dos seus países e a massa da população – vitimas diretas da crise.

O Brasil foi desenvolvendo uma estratégia internacional centrada nas alianças com os países do Sul do mundo – sela na América do Sul, assim com os Brics -, trabalhando na direção de um mundo economicamente multipolar. Da mesma forma que o Brasil foi incorporando temas como a questão palestina e o conflito dos EUA com o Irã, no entendimento de que outros atores deveriam intervir, não apenas para buscar evitar novos focos de guerra, mas também para desarticular focos existentes, com soluções que contemplem todas as partes envolvidas.

São todos temas caros ao próprio FSM, que não teria mesmo como não se alinhar com os governos progressistas latino-americanos que, mesmo com matizes distintos, buscam a construção de alternativas ao neoliberalismo.

Desse ponto de vista, o Fórum de Dacar foi um avanço na superação das barreiras artificiais entre forças sociais e forças politicas, entre resistência e construção de alternativas. Pela evolução do FSM e de Lula foi possível a passagem das diferenças e dos conflitos de 2003 à convergência de 2011.
O próximo – que, ao que tudo indica, será realizado em Porto Alegre – pode permitir uma formatação distinta, talvez colocando no centro mesmo do FSM a relação desses governos com os movimentos sociais, especialmente nos temas em que existem diferenças e tensões – como as questões do meio ambiente, da reforma agrária, da exploração dos recursos naturais, da democratização dos meios de comunicação, entre outros. Assim o FSM assumiria um formato adequado às condições atuais de luta pela superação do neoliberalismo, que representam uma vitória das teses defendidas desde sua origem pelo Fórum e que, por isso mesmo, demandam a atualização de suas formas de existência, para estar à altura dos desafios atuais da construção do outro mundo possível.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Lula começa a desencarnar no FSM

Renato Rovai da Revista Fórum

A grande atração de ontem no Fórum Social Mundial foi a mesa da qual participaram o ex-presidente Lula e o presidente do Senegal Abdulaye Wade. Lula falou antes do senegalês. Sorte do público, que teve a liberdade de ir embora depois da fala do brasileiro sem ter de ouvir uma empolgada defesa do liberalismo econômico.
Lula deu sinais no discurso de hoje que começou a desencarnar. Na entrevista concedida aos blogueiros em dezembro ele disse que precisa de um tempo fora da presidência para poder começar a falar alguma coisas. Seu discurso voltou a ser mais petista. E de um petismo fora do governo. O que pode ser muito interessante para puxar o partido para uma linha menos recuada.
Lula falou sem meias palavras que a crise financeira de 2008 comprovou que o consenso de Washington e a agenda neoliberal fracassaram. Que os países ricos sempre trataram a periferia do mundo como problemática e perigosa e que só quando a crise atingiu o centro do capitalismo mundial é que eles buscaram dialogar com esse setor pra tentar resolver o problema deles.
Também deu pau na direita européia e estadunidense “que aponta a imigração como responsável pela corrosão do sistema econômico dos seus países”.
Chamou a elite africana na chincha e deu recados explícitos ao presidente senegalês. “Não há soberania efetiva sem soberania alimentar. As savanas africanas têm 400 mil hectares e só 10% disso é aproveitado para agricultura. Mesmo assim, 1/ 4 de toda a produção de alimentos do continente vem dali. É preciso começar a mudar essa situação”.
O futuro presidente de honra do PT também afirmou que “é fundamental a criação do Estado Palestino que tenha condições de se desenvolver e que conviva em paz com Israel”.
E lembrou que, em 2005, quando visitou a Ilha de Gore, pediu perdão em nome de todos os brasileiros pelo período de escravidão no seu país. Mas acrescentou: “a melhor maneira que temos de fazer essa reparação não é só pedir perdão, mas lutar por uma África justa”.
No âmbito das organizações internacionais, Lula disse que o G20 não tem sensibilidade para o problema da fome e para outras questões que deveriam ser prioridades no mundo. E que enquanto presidente do Brasil nunca foi chamado para uma reunião dos países ricos. “Só fomos chamados quando eles entraram em crise.”
Ao final Lula provocou os presentes dizendo que não bastava ser militante só durante o FSM, mas que era preciso sê-lo durante os 365 dias do ano. Depois desse discurso forte e posicionado de Lula, traduzido pelo sociólogo Emir Sader para o francês, o presidente do Senegal iniciou sua fala também de forma forte e posicionada.
Mas dizendo que era partidário da economia de mercado, porque a economia de Estado havia sido um fracasso onde tinha sido implantada. Mas que achava que a economia de mercado precisava de um regulação do Estado liberal. Para na seqüência perguntar à platéia: “Por que o liberal que eu sou abre as portas do seu país para um evento como Fórum? Para responder em seguida que é porque ele acha importante o debate de idéias.
A intervenção de Abdulaye Wade só não foi mais constrangedora, porque o público do FSM deu mais uma demonstração de grandeza e sabedoria política e não o deixeou falando literalmente sozinho. Algumas pessoas saíram do auditório durante sua “aula de neoliberalismo”, mas a maioria respeitou o contraditório. E ficou até o final.
Um pouco antes de terminar, Abdulaye Waded decidiu fazer uma pergunta meio boba à platéia, até de forma deselegante, dizendo que achava que nesses 10 ano o FSM não tinha conseguido nada de concreto e se tinha o que era?
Teve de ouviu um grito em uníssono de Lula, Lula, Lula que ecoou por uns 3 minutos na sala. Lula estava no 1º FSM, em 2001, antes de ser eleito presidente da República. E veio ao FSM de Dacar para fazer a seu primeiro discurso político público após deixar a presidência.
A provocação de Abdulaye Wade serviu para muitos altermundistas reivindicarem o ex-presidente Lula também como um símbolo internacional deste processo.
Aliás, não seria nada mal que Lula assumisse bandeiras do FSM e saísse por aí como um mascate de um outro mundo possível.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Marcha de abertura do FSM-2011

Salvar a humanidade e o planeta

Essa foi a principal mensagem de Evo Morales aos participantes da marcha da abertura do Fórum Social Mundial 2011, que aconteceu na tarde do dia 6. Para o presidente boliviano, que falou no encerramento da caminhada, é preciso “defender os interesses da mãe Terra para defender a todos”.
Ele criticou os resultados das últimas rodadas das reuniões sobre clima – realizadas em Copenhague e em Cancun – e chamou os movimentos sociais à mobilização sobre o tema. “Temos que nos preparar para o próximo encontro. Os povos da África devem forçar seus governos a se somar à luta pelo planeta. Para tanto, é preciso mudar o modelo de desenvolvimento econômico”, defendeu.

Mudança

Um dos símbolos da guinada progressista que a América Latina experimentou na última década com a eleição de governantes identificados com a esquerda, Morales saudou a realização de mais uma edição do FSM. “Essa grande mobilização é uma mensagem contra o imperialismo norte-americano. Sou aluno desta escola do Fórum Social Mundial e dos movimentos sociais do mundo, sou parte disso. Me eduquei no movimento sindical para me preparar e estar hoje na presidência.”
Esse importante passo, da resistência à emancipação, afirmou ele só é possível a partir de um programa social, econômico e cultural que venha do povo. “A partir de um dos setores mais discriminados, que são os povos indígenas, chegamos à presidência para mudar a Bolívia”, asseverou.
Entre as transformações já implementadas desde a primeira eleição em 2005, ele citou a garantia de que os serviços essenciais sejam públicos e não privatizados. Com a nova Constituição, destacou, a água tornou-se um direito humano. Com a nacionalização dos recursos naturais, a Bolívia ampliou o investimento de U$ 600 milhões para os atuais US$ 3,2 bilhões. Além disso, em 2005, havia reservar de US$ 2,7 bilhões, que saltaram para US$ 10 bilhões. “Se os recursos naturais são em favor do povo, outro mundo é possível”, afirmou.

Mensagem brasileira

Representando a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, o ministro Gilberto de Carvalho também se dirigiu aos participantes do FSM. Ele manifestou o pesar pela diáspora africana e a escravidão e lembrou que ainda hoje os afrodescendentes, cujos antepassados lutaram pela liberdade, ainda precisam enfrentar a discriminação, embora já sejam a maioria da população brasileira.
Carvalho propôs ainda a intensificação das relações entre o Brasil e as nações africanas. “Que se dê entre iguais e não entre dominados e dominadores”, enfatizou.
Foto: Hilde Stephanes

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A marcha dos povos no FSM do Senegal

Por Adriana Delorenzo, de Dacar na Revista Forum

Neste domingo, 6, teve início em Dacar o Fórum Social Mundial de 2011. Cerca de 50 mil pessoas participaram da marcha de abertura do evento, que partiu da sede da Radio Television Senegalaise (RTS) e foi até a Universidade Cheik Anta Diop, onde acontece o FSM. Ativistas e militantes altermundistas percorreram uma distância de cerca de quatro quilômetros sob um forte sol.

Como é tradicional em todos os Fóruns, a diversidade de organizações e bandeiras de luta marcou a marcha. Por ser na África, muitos movimentos e manifestações culturais locais fizeram a diferença. A marcha contou com refugiados da Mauritânia no Senegal, ativistas em defesa da independência do Saara Ocidental e senegaleses reivindicando paz em Casamance (região do país onde há conflito por conta de um movimento separatista), entre outros militantes do norte da África.

Em seu 10º aniversário, o FSM reúne participantes e organizações de 123 países, Palestina e Curdistão. A grande maioria é de países da África (45), seguidos dos europeus (29), asiáticos (22), centro-americanos e caribenhos (12), sul-americanos (10), norte-americanos (3) e países da oceania (2).

Movimentos

Segundo Taoufik Ben Abdallah, um dos organizadores do Fórum Social Africano, a realização do FSM de Dacar mobilizou cerca de mil pessoas nos processos preparatórios. Em torno de 200 organizações participam do Comitê do Senegal, além de outras mil organizações africanas que se empenham na construção do evento.

Para ele, um dos desafios do FSM na África é o de construir uma nova relação entre os intelectuais e os movimentos sociais locais. “Na África não existe essa aliança”, diz. “Já na América Latina, muitos intelectuais fazem parte dos movimentos sociais e vice-versa”, acrescenta.

Com a crise internacional, especialmente nos EUA e Europa, Taoufik avalia que se abriu um novo equilíbrio de poder global, onde há o crescimento do G-20 e novos atores, como os BRICs. Ele considera que a África precisa aproveitar essa nova oportunidade geopolítica de uma forma positiva, enfrentando os conflitos e a pobreza. Tanto a crise, como a África serão debatidas em muitas das quase mil atividades autogestionadas propostas pelas organizações que participam do Fórum.

Diversidade

O médico marroquino Abdelkebir Saaf deixou Rabat junto com 50 ativistas. Integrante do Fórum Civil Democrático de Marrocos, ele defende o direito à saúde e ao meio ambiente saudável para todos. “Na marcha, as pessoas exprimem seus desejos e grandes ideais. Depois teremos espaço para trocar experiências”, diz.

Outra ativista presente na marcha inaugural do FSM foi Josephine Irene Uwamariya, de Ruanda. Diretora da organização Actionaid, ela atua em defesa dos direitos das mulheres. Mas a idéia é dar voz a elas, para que elas mesmas lutem por seus direitos. Questionada pela reportagem sobre a situação política de seu país, Josephine analisa que não há comparação com aquela retratada por Terry George no filme Hotel Ruanda, de 2004. Segundo ela, na última eleição parlamentar as mulheres conseguiram fazer 56% do total de eleitos.

A colombiana Alexandra Patricia Jurado também traz ao FSM a bandeira das mulheres. Membro do Movimiento Social de Mujeres contra La Guerra y por La Paz, ela vem ao FSM para rechaçar todas as formas de violência. “Estamos congregados para ser um grito de protesto a todas as violações de direitos humanos, mas também para gritar ao mundo que estamos cansados de guerra e que continuam militarizando a vida e nossos corpos, como mulheres”, afirma. “Estamos cansados que os recursos sejam destinados cada vez mais a guerras e menos à educação, à saúde e à qualidade de vida justa e digna para todos os homens e mulheres do mundo.”

Já o vietnamita Tran Dac Loi conta que o principal desafio do movimento social daquele país é como manter o socialismo, num contexto de globalização capitalista. Vice-presidente da Vietnam Union of Friendship Organizations, ele afirma que os 25 anos de regime socialista no seu país trouxeram muitos benefícios ao povo. “Reduzimos a pobreza de 75% para 10%”, diz. “O socialismo visa o desenvolvimento da pessoa humana, já o capitalismo apenas o lucro”, defende ele, que ressalta o sentimento de solidariedade e fraternidade presente no FSM.

Hoje inicia o FSM de Dacar

Fórum Social Mundial reflete sobre a condição africana em tempos de globalização

 

Rui Felten no Sul21

Uma marcha de abertura, marcada para as 13 horas deste domingo (06), dá início às atividades de mais uma edição do Fórum Social Mundial (FSM), que este ano se realiza em Dacar, no Senegal — país da África Ocidental. Dacar é a capital senegalesa e abriga cerca de 2,6 milhões de habitantes. Durante os seis dias do FSM, deverão passar por lá representantes e organizações de 123 países.
Com presença já confirmada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve comparecer acompanhado do ex-ministro Luiz Dulci e do ex-presidente do Sebrae Paulo Okamotto. Lula é esperado para participar, na segunda-feira (07), junto com o presidente do Senegal, Abdou Layewade, do painel A África na Geopolítica Mundial, prevista para se iniciar às 12h30min e se estender até as 15h30min. Está confirmada também a presença de Evo Morales, presidente da Bolívia.
Temas como desigualdades, pobreza, discriminações, guerras e a ascensão de novos países à condição de potências mundiais vão conduzir os debates a respeito da crise. Também vão estar na pauta questões referentes à ecologia (como as mudanças climáticas e a ameaça de esgotamento das fontes naturais) e à ideologia — envolvendo, particularmente, segurança pública, liberdades, democracia e cultura, além de ciência e modernidade.
A situação da África no contexto mundial estará sempre no centro das reflexões, considerando a ideia de que ela não é pobre, e sim empobrecida. E de que também não é marginalizada, mas explorada. Essa análise é feita por Gustave Massiah, membro do Research and Information Center for Development (CRID), da França, e integrante do Conselho Internacional do FSM. Mas se a África é usurpada, ele não deixa de reconhecer, também, que existe uma “cumplicidade ativa” de uma parcela dos dirigentes de estados africanos para que a cobiça de países ricos ou emergentes pelas matérias-primas e pelos recursos naturais e humanos do continente seja satisfeita.
Outras questões a serem levadas ao Fórum são a crise da hegemonia norte-americana e do neoliberalismo e a descolonização como um processo histórico ainda por ser concluído. A programação reserva espaço, ainda, a debates sobre as migrações como fator decorrente da globalização.
Construção da solidariedade
O ex-governador Olívio Dutra, que estava à frente do Executivo gaúcho nas duas primeiras edições do FSM, avalia o evento como um processo de construção da solidariedade, da igualdade, da justiça e da democracia. Afirma que ainda há um enorme desafio pela frente, mas que o Fórum já se firmou como espaço de articulação da esperança de evolução para um mundo em que as decisões não sejam tomadas apenas pelos países mais fortes, por dominação.
“Todos devem influir nas decisões. E o Fórum Social Mundial, embora não seja um organismo formal, deve ser ouvido pelos organismos formais, como instância de representação no combate à miséria, à exploração, à guerra e à fome”, diz o ex-governador. Ele acredita que a força do FSM já pôde ser sentida no Fórum Econômico Mundial (FEM), que reúne anualmente em Davos, na Suíça, os principais líderes empresariais e políticos.
O Rio Grande em Dacar
A representação gaúcha que estará em Dacar a partir de segunda-feira vai participar do FSM com dois propósitos principais: confirmar a determinação de atuar na organização da edição descentralizada prevista para o FSM no ano que vem e tentar atrair o Fórum novamente para Porto Alegre em 2013. “Não será uma conquista simples, porque também concorrem como sedes a Europa e a China”, diz o assessor de Relações Internacionais do Governo do Estado, Tarson Nuñez, que vai participar em companhia do secretário estadual adjunto da Cultura, Jeferson Assunção.
Pesam a favor do Rio Grande do Sul, na opinião de Nuñez, o fato de os governos europeus serem mais conservadores e de os movimentos sociais não terem tanta força nos países da Europa, o que ocorre também com a China. Serão encaminhadas pela representação gaúcha manifestações de um grande número de segmentos governamentais e não-governamentais em prol da realização do FSM no Estado daqui a dois anos.
Nuñez defende que o FSM não deve mais ser somente um ambiente de debates, mas se transformar em uma dinâmica permanente de intercâmbio entre as nações participantes. “Deve haver um processo continuado, que não se esgote naqueles momentos de discussões, mas que expanda os seus efeitos de forma perene e propositiva”, afirma. É disso, na opinião dele, que poderá resultar o aprofundamento da reflexão sobre o modelo de desenvolvimento desejado pela humanidade. “Precisamos definir um paradigma desse modelo”, ressalta. Nuñez acrescenta que o FSM também já não deve mais estar preocupado apenas em criticar o sistema vigente, mas em formular um sistema alternativo.
Histórico
O primeiro FSM ocorreu em janeiro de 2001, em Porto Alegre. Participaram cerca de 20 mil pessoas. Realizada novamente na capital gaúcha, em 2003, a segunda edição atraiu mais de 50 mil pessoas. No ano seguinte, Porto Alegre recebeu em torno de 100 mil pessoas do mundo inteiro para o evento.
Em 2004, o Fórum foi promovido pela primeira vez fora do Brasil, por decisão de seu Conselho Internacional de fazer dele um evento internacionalizado. A cidade escolhida, naquele ano, foi Mumbai, na Índia. Em 2005, o FSM retornou para Porto Alegre. Já em 2006, teve uma edição descentralizada, com programações em Bamako (África), Caracas (Venezuela) e Karachi (Paquistão). O de 2007 ocorreu em Nairóbi (Quênia) e, em 2008, o Conselho Internacional decidiu que haveria não um fórum nos moldes anteriores, mas uma semana de mobilização e ação global, que culminou com o Dia de Visibilidade Mundial, em 26 de janeiro.
Belém, a capital do Pará, foi sede da nona edição, em 2009, quando participaram cerca de 120 mil pessoas de 150 países. E em 2010, houve novamente um fórum descentralizado, com programação desenvolvida ao longo do ano em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. No Rio Grande do Sul, o FSM teve atividades em Porto Alegre, Canoas e Santa Maria.

Uma breve história do Fórum Social Mundial


Nas origens do FSM estão o "grito zapatista" de 1994 e as manifestações em Seattle, em 1999, que impediram a realização da reunião da OMC. Na sequência, o movimento anti-neoliberal passou da fase de resistência à fase de construção de alternativas. Este FSM demonstrará se permanece na fase de resistência, de fragmentação de temáticas, de limitação à “sociedade civil” ou se se coloca à altura da etapa atual de disputa hegemônica, já não mais a nível nacional ou regional, mas a nível global. A análise é de Emir Sader.

O Fórum Social Mundial já tem história. Uma história que não pode ser entendida separada daquilo que lhe deu nascimento e a que ele está intrinsecamente vinculado: a luta contra o neoliberalismo e por um mundo posneoliberal – que é o sentido de seu lema central “Um outro mundo possível”.

Nas suas origens está o “grito zapatista” de 1994”, conclamando à luta global contra o neoliberalismo. Em seguida, veio o editorial do Le Monde Diplomatique, de Ignacio Ramonet, chamando à luta contra o “pensamento único”, seguida pelas manifestações em Seattle, que impediram a realização da reunião da OMC e as outras, em tantas cidades do mundo. Enquanto isso, se realizavam anualmente manifestações na Suiça, chamadas de anti-Davos.

Até que, com o crescimento da resistência ao neoliberalismo, se pensou no projeto de organizar um Forum Social Mundial em oposição ao Forum Economico de Davos. A idéia foi de Bernard Cassen, jornalista francês que naquele momento dirigia a Attac, que ao mesmo tempo propôs que a sede fosse na periferia do sistema – onde residem as vitimas privilegiadas do neoliberalismo -, na América Latina – onde se desenvolviam os principais movimentos de resistência, no Brasil – que tinha a esquerda mais forte naquele momento – e, em particular, em Porto Alegre – pelas políticas dos governos do PT, de Orçamento Participativo.

Depois do primeiro Fórum se constituiu um Conselho Internacional, com participação de todas as entidades que quisessem se incorporar, porém a direção continuou em um estrito grupo de entidades brasileiras, dominadas por ONGs. Este foi um limitante original do FSM, dado que o movimento se apoiava centralmente em movimentos sociais – de que a Via Campesina agrupa a parte significativa deles -, enquanto as ONGs – cujo caráter ambíguo, até mesmo neoliberal pela sua definição anti-governamental, mas também com várias delas com ações obscuras no seu sentido, no seu financiamento e nas suas alianças com grandes empresas privadas – se apoderava do controle da organização, imprimindo-lhe um caráter restrito.

Restrito, porque limitado a um suposta “sociedade civil”, o que já lhe imprimia um caráter liberal, oposto a governos, a partidos, a Estados, bloqueando a capacidade de construção de “um outro mundo possível”, que teria que ser um mundo global, com transformação das relações de poder, do Estado e da sociedade no seu conjunto. Também ficava fora um tema que passou a ser central no mundo conforme os EUA adotavam sua política de “guerras infinitas” – a luta pela paz -, que no entanto representou o momento de maior capacidade de mobilização dos novos movimentos populares no mundo, com as mobilizações de resistência à guerra do Iraque, em 2003.

O Conselho Internacional decidiu a alternância de sedes do FSM, que passou a se realizar em outros continentes, com o que se realizaram encontros na Índia e no Quênia. Também decidiu que os FSM seriam realizadosa cada dois anos, alternados por FSM regionais. No entanto o FSM passou realmente a girar em falso conforme a definição inicial de se limitar um espaço de troça de experiências entre entidades da “sociedade civil” foi limitando suas temáticas e sua capacidade de formular alternativas. Nem sequer balanços das maiores mobilizações populares jamais havidas, as contra a guerra do Iraque, foram feitas, para definir a continuidade da luta.

A fragmentação dos temas se acentuou conforme foi decidido que as atividades dos FSM seriam “autogestionadas”, sem definição política dos temas fundamentais, que deveriam ser financiados centralizadamente, promovendo um imenso privilegio das ONGs e outras entidades que dispõem de recursos contra os movimentos sociais – que deveriam ser os protagonistas fundamentais do FSM.

Hoje, o FSM tem em governos latinoamericanos progressistas os agentes de construção da agenda proposta pelo movimento. Os movimentos sociais que souberam rearticular de maneira criativa suas relações com a esfera política – de que a fundação pelos movimentos bolivianos do MAS – e disputar a criação de novos governos e a construção de projetos hegemônicos alternativos, avançaram significativamente na criação do “outro mundo possível”. Enquanto que os que seguiram refugiados na chamada “autonomia dos movimentos sociais” – como os casos dos piqueteiros argentinos ou dos zapatistas – perderam peso ou até mesmo tenderam a desaparecer politicamente.

Em 2009, o Fórum voltou ao Brasil, sendo realizado em Belém, no Pará. O encontro foi marcado, entre outras coisas, pela presença de 5 presidentes latino-americanos – Evo Morales, Rafael Correa, Hugo Chavez, Fernando Lugo e Lula, líderes de governos que, em distintos níveis, colocam em prática políticas que identificaram, desde o seu nascimento, o FSM: a Alba, o Banco do Sul, a prioridade das políticas sociais, a regulamentação da circulação do capital financeiro, a Operação Milagre, as campanhas que terminaram com analfabetismo na Venezuela e na Bolívia, a formação das primeiras gerações de médicos pobres no continente, pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, a Unasul, o Conselho Sulamericano de Segurança, o gasoduto continental, a Telesul – entre outras. A cara nova e vitoriosa do FSM, nos avanços da construção do posneoliberalismo na América Latina.

O FSM 2009 foi marcado também pela forte presença d os povos indígenas e pelo Forum PanAmazonico, com os movimentos camponeses e a Via Campesina, os sindicatos e o Mundo do Trabalho, os movimentos feministas e a Marcha Mundial das Mulheres, os movimentos negros, os movimentos de estudantes, os de jovens.

O movimento anti-neoliberal passou da fase de resistência à fase de construção de alternativas. Este FSM demonstrará se permanece na fase de resistência, de fragmentação de temáticas, de limitação à “sociedade civil” ou se se coloca à altura da etapa atual de disputa hegemônica, já não mais a nível nacional ou regional, mas a nível global, quando a crise capitalista e o esgotamento do modelo neoliberal coloca para o FSM seu maior desafio: ser agente na construção concreta do “outro mundo possível” ou permanecer como espaço de testemunhos, ricos, mas impotentes.

O Fórum Social Mundial 2011, em Dakar, ganhou uma nova agenda com a onda de protestos populares que já atingiu a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Jordânia. O mais significativo de todos, sem dúvida, é o Egito, em função do que o país representa em termos geopolíticos no Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita são dois pilares centrais da aliança EUA-Israel na região. Uma mudança de regime político em um desses dois países pode significar um terremoto geopolítico de grandes proporções.
A aplicação da consigna do FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente Médio é possível?”. O que está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e sustentadas pelos EUA é menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas ruas dizendo que é possível, sim. E necessário.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O que está em jogo no FSM de 2011


 
O Fórum Social Mundial de Dakar está organizado em três grandes temas: a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial. A ideia é debater o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase de descolonização; o alcance político das mobilizações sociais; e a expressão política dos movimentos sociais e de sua relação com os governos.
Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano *

A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista. As quatro dimensões da crise (social, geopolítica, ambiental e ideológica) serão abordadas em Dakar. A crise social será enfrentada em particular sob os pontos de vista da desigualdade, da pobreza e da discriminação, enquanto a crise geopolítica será discutida em particular da perspectiva da guerra e do conflito, do acesso às matérias primas e da emergência de novas potências. A crise ambiental será debatida, em particular, sob a perspectiva da mudança climática, enquanto a crise ideológica será discutida da perspectiva de ideologias seguras, da questão das liberdades e da democracia e da cultura, presentes desde o Fórum Social de Belém, que serão analisadas em profundidade.
A evolução da crise lança luz sobre uma situação contraditória. Análises do movimento altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20. E mesmo assim ainda não foram traduzidos em políticas viáveis. Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.
A validação das agendas resulta na transformação das palavras de ordem dos movimentos em lugares comuns. É preciso refinar as perspectivas e conceder mais relevância ao debate estratégico, à articulação entre a resistência de curto prazo e a de médio prazo e à mudança em curso sob a superfície dos acontecimentos. A situação lança uma luz sobre a natureza dual da crise, tensionada entre a crise do neoliberalismo, que é a fase da globalização capitalista e a crise da própria globalização capitalista; uma crise do sistema que pode ser analisada como uma crise de civilização, a crise da civilização ocidental, estabelecida desde princípios do século XV.
Nesse contexto, alianças estratégicas devem obedecer a duas exigências. A primeira está vinculada à luta contra a pobreza, a miséria e a desigualdade, o uso do trabalho precário e a violação das liberdades no mundo, para melhorar as condições de vida e a expressão da classe trabalhadora diretamente afetada pela economia dominante e pelas políticas públicas. A segunda exigência prioriza o fato de que outro mundo é possível; um mundo necessário envolve um rompimento definitivo com os modos de produção e consumo da economia e da sociedade, bem como a redistribuição ambiental, com o equilíbrio geopolítico do poder estabelecido nas décadas recentes nos modelos democráticos proeminentes do ocidente.
Três propostas emergem como respostas à crise: o neoconservadorismo, que propõe a continuação do atual padrão dominante e dos privilégios que os acompanham às custas das liberdades, da continuidade das desigualdades e da extensão dos conflitos e das guerras; uma reestruturação profunda do capitalismo defendido pelos militantes do “New Deal Verde”, que propõe regulação global, redistribuição relativa e uma promoção voluntarista das “economias verdes”; e uma alternativa ambiental e social radical, que corresponde a uma superação do atual sistema dominante. O Fórum Social Mundial reúne todos os que rejeitam a opção neoconservadora e a continuação do neoliberalismo, constituindo um fórum pela mudança vigorosa da discussão entre os movimentos que fazem parte de uma perspectiva de avanço de um “New Deal Verde” e os que defendem a necessidade de alternativas radicais.
A REFERÊNCIA AO CONTEXTO AFRICANO
O Fórum Social Mundial de Dakar vai enfatizar questões essenciais que aparecem com mais nitidez com as referências ao contexto africano. A ênfase estará no lugar da África no mundo e na crise. A África é objeto privilegiado de análise, ao tempo em que exemplifica a situação global. Não é pobre; é empobrecida. A África não é marginalizada; é explorada. Com suas matérias primas e recursos humanos cobiçados pelos países do Norte e pelas potências emergentes, e com a cumplicidade ativa dos líderes de alguns estados africanos, a África é indispensável para a economia global e para o equilíbrio ambiental do planeta.
A ênfase também estará na descolonização como um processo histórico incompleto. A crise do neoliberalismo e a crise de hegemonia dos Estados Unidos são indicativos da possibilidade de uma nova fase de descolonização, e do enfraquecimento das potências coloniais europeias. A representação Norte-Sul está mudando, uma situação que não elimina a realidade geopolítica e as contradições entre o Norte e o Sul.
O Fórum priorizará as diásporas e as migrações como uma das questões centrais da globalização. A questão será enfrentada com base na situação atual dos imigrantes e seus direitos, numa análise de longo termo, com o comércio de escravos posto sob a perspectiva do crescimento do papel das diásporas culturais e econômicas.
O Fórum debaterá as mudanças no sistema internacional, nas instituições multilaterais e nas negociações internacionais. Em particular, vai focar nas questões que tornam clara a necessidade de regulação global: equilíbrio ambiental, migração e diásporas, conflitos e guerras.
A SITUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E COMUNITÁRIOS
A convergência dos movimentos de que o Fórum Social Mundial se constitui está comprometida com a resistência ambiental e democrática. Com as lutas sociais presentes nos combates cívicos pelas liberdades e contra a discriminação. A resistência é inseparável das práticas emancipatórias específicas levadas a cabo pelos movimentos.
A direção estratégica dos movimentos está voltada para a acessibilidade universal ao direito, pela igualdade de direitos e pelo imperativo democrático. Os movimentos trazem consigo um movimento histórico de emancipação que são extensão e renovação de movimentos anteriores. Será em torno da definição, da implementação e da garantia de direitos que um novo período de emancipação possível será definido. Essa definição exige que essas concepções de diferentes gerações de direitos sejam revisitadas: direitos políticos e civis formalizados pelas revoluções do século XVIII, reafirmados pela Declaração Universal de Direitos Humanos, complementadas pelos desafios do totalitarismo dos anos 60; os direitos dos povos que o movimento de descolonização promoveu, com base no direito da autodeterminação, o controle dos recursos naturais, o direito ao desenvolvimento e à democracia; direitos sociais, econômicos e culturais especificados pela Declaração Universal e estipulados pelo Protocolo Adicional adotado pelas Nações Unidas na Assembleia Geral em 2000.
Uma nova geração de direitos está em gestação. Direitos que correspondem à expressão da dimensão global e dos direitos definidos com vistas a um mundo diferente da globalização dominante. A partir desse ponto de vista, duas questões serão as mais proeminentes em Dakar: direitos ambientais para a preservação do planeta e os direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo. O Fórum Social Mundial de Belém enfatizou os benefícios para os movimentos de abarcarem a agenda ambiental em todas as suas dimensões, do clima à destruição dos recursos naturais e da biodiversidade, e da preservação da água, da terra e das suas matérias primas. O FSM de Dakar priorizará um novo tratamento da questão da migração, com a ligação entre migrações e diásporas e a Carta Mundial dos Migrantes.
O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase descolonização. É nesse contexto que a relação entre o Norte e o Sul está mudando. Considerando que a representação Norte/Sul está mudando na perspectiva da estrutura social, há um Norte no Sul e um Sul no Norte. A emergência do poder de grandes estados está mudando a economia global e o equilíbrio de forças geopolíticas, e é reforçado pelo crescimento de mais de trinta estados que podem ser chamados de economias emergentes. Para tudo isso, contudo, as formas de dominação continuam a ser cruciais na ordem global. O conceito de Sul continua a ser altamente relevante. O Fórum Social Mundial enfatiza uma nova questão: o papel histórico e estratégico dos movimentos sociais nos países emergentes como um todo em relação ao seu Estado e o papel futuro desses estados no mundo. Essa questão, que já marcou os fóruns com o debate sobre o papel jogado pelos movimentos no Brasil e na Índia assume uma importância particular estratégica com a mudança geopolítica associada à crise.
O Fórum Social Mundial é o ponto de encontro para movimentos de vários tipos e de diferentes partes do mundo. Esses movimentos já começaram a se encontrar em redes que reúnem diferentes movimentos nacionais. O processo dos fóruns revela duas mudanças. A primeira delas é as conexões entre movimentos de acordo com suas regiões, características e contextos específicos unificam os movimentos da América Latina, América do Norte e Sul da Ásia (e em particular, a Índia), o sudoeste da Ásia, Japão, Europa e Rússia. O Fórum Social Mundial de Dakar terá dois impactos maiores. O ano de 2010 e os preparativos para Dakar foram marcados pela nova importância conquistada pelos movimentos da região do Magreb-Machrek.
O vigor dos movimentos sociais africanos será visível em Dakar, na forma de movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc. Esses movimentos são visíveis, com sua convergência diversidade em sub-regiões da África: no Norte da África e em particular no Magreb, no Oeste e na África Central, na África do Leste e na do Sul.
No Fórum Social Mundial de Dakar uma questão fundamental será a do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da expressão política dos movimentos e das extensões dos movimentos em relação às instituições, ao cenário político e aos governos dos estados. Com respeito aos movimentos como um todo, a análise avança sobre a importância da especificidade, via invenção de uma nova cultura política, da relação entre poder e política. O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante. Além disso, a tradução política dos avanços e das mobilizações dependem das instituições e das representações: num nível local, com a possibilidade de influenciar as decisões das autoridades locais; em nível nacional e internacional, com os governos dos estados, os regimes políticos e as instituições multilaterais; em nível regional e global, com alianças geoeconômicas e geoculturais e com a construção de uma opinião pública global e uma consciência universal.
O PROCESSO DOS FÓRUNS SOCIAIS MUNDIAIS
Depois de o Fórum Social Mundial de Belém ter tomado o ano de 2010 como o ano da ação global, mais de quarenta eventos demonstraram o vigor do seu processo. Isso incluiu as atividades dos 10 anos do FSM em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial dos Estados Unidos, o Fórum Social Mundial do México e o Fórum das Américas, vários fóruns na Ásia, o Fórum Mundial de Educação na Palestina, mais de oito fóruns do Magreb e Machrek, etc. Cada evento associado foi iniciativa do comitê local. Esse comitê se refere na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, que adota uma metodologia privilegiando as atividades autogestionadas e declara sua iniciativa no Conselho Internacional do FSM. Essa multiplicação de eventos abre espaço para projeções relativos à extensão do processo dos fóruns. Ele assumiu uma nova forma, “um fórum estendido”, que consiste no uso da Internet para ligar iniciativas locais em diferentes países, com um Fórum em cada. Assim, enquanto ocorria o Fórum Mundial da Educação na Palestina, mais de 40 iniciativas estavam em curso em Ramallah. As iniciativas associadas com “Dakar estendida” inovarão o processo dos fóruns.
A preparação para o FSM Dakar baseou-se nos eventos do ano da ação global, 2010, bem como numa série de iniciativas que asseguraram a convergência de ações e permitiram novos caminhos a serem explorados em termos de organização e metodologia dos fóruns. Assim, já se pode usar as caravanas convergindo para Dakar, dos fóruns de mulheres em Kaolack, das migrações e diásporas, dos encontros para convergência de ações, dos fóruns associados (Assembleia Mundial dos Povos, fóruns pela ciência e pela democracia, sindicatos, autoridades locais e da periferia, parlamentares, teologia e libertação, etc.).
Depois de Dakar, um novo ciclo no processo dos fóruns irá começar. O fortalecimento do processo dos fóruns sociais mundiais poderia ocorrer com a reunião com grandes eventos, como o Rio+20, G8, G20, cúpulas e outras poderiam acordar com sua perspectiva. Seriam reconhecidos como eventos associados ao processo do fórum, estabelecendo assim uma proximidade com os acontecimentos de Seattle, em 1999, que contribuíram para a criação do FSM.

* Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano SÃO representantes da Research and Information Centre for Development (CRID – France) no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. A tradução é de Katarina Peixoto. Artigo publicado pela Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br).

domingo, 30 de janeiro de 2011

A cidade que acolhe o FSM


Rita Freire
Dacar começa a compartilhar os primeiros espaços, atividades e expressões da sua cultura com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM.
Fotos: Antonio Pacor

Quem vier ao Fórum Social Mundial, com vontade de compartilhar idéias, experiências e propostas para um outro mundo possível, e tiver acolhida em alguma casa senegalesa, aprenderá também a compartilhar um cebu djen.
Ao meio dia de cada dia, famílias se reúnem em torno desse prato coletivo e popular, que consiste no preparo de um peixe com ervas, em cuja água de cozimento são imersos diferentes legumes, gerando o caldo a ser utilizado para o preparo do arroz. Tudo servido assim, com muitas colheres que avançam sobre os bocados do cebu dijen
Dacar começa a compartilhar as primeiras casas com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM. A casa de Lia, italiana que vive no Senegal a maior parte do ano, ensinando costura e estilismo em uma escola local, é uma delas. Procurada por outro italiano, o videomaker Paco, que facilita coberturas de video do Forum, assegurou estadia para vários colaboradores da comunicação.
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E foi assim que cheguei a Dacar, conhecendo Lia e seus alunos, que pensam em ir ao Fórum em busca de contatos de economia solidária, e com quem conheci Abi, a senegalesa da foto que motivou a reunião de todas essas pessoas em torno do prato mais apreciado do Senegal, preparado por ela para nos dar as boas vindas.
Enquanto almoçamos, são naturais algumas notícias sobre o FSM, como o informe de que Via Campesina trabalhará o tema da violência contra as mulheres no campo, ou a confirmação da Assembleia que debaterá perspectivas da comunicação. Reunirá gente da Africa, América Latina, Europa, e quiça da Asia e Oriente Médio. O programa com todas as atividades será impresso no domingo.
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É o segundo dia que eu e Paco passamos na cidade que acolherá o Fórum e já é possível sentir a ansiedade das pessoas encarregadas de organizar as bases do evento, com aquele sentimento de toda véspera de uma edição mundial, de que "tudo ainda está por fazer".
Nosso olhar esteve especialmente voltado para a comunicação, procurando as conexões potenciais entre as redes que compartilham informação sobre os temas do FSM e o trabalho local de cobertura e propagação do evento. Na Enda, organização de referência do FSM em Dacar, a equipe do escritório do FSM no Brasil já está ha mais dias e trabalha na organização de informações, na distribuição de atividades por eixos do FSM. No Centre Bopp, onde a comunicação se organiza, se formam e desfazem pequenas rodas multilingues de pessoas que chegam para ajudar.
Predominam no espaço os colaboradores locais do FSM e há uma certa ansiedade em relação à infraestrutura. Voluntários falam dos intervalos que algumas áreas da cidade enfrentam sem energia elétrica. Com os preços elevados do petróleo e gás, que estão na base do abastecimento local, o Senegal sofre. O problema afetará o FSM? Pessoas da organização acreditam que não, porque as instalações da universidade dispôem de geradores em caso de emergência.
A banda para internet é outra preocupação, que aliás se repete em todos os eventos centralizados do FSM. Para assegurar um bom fluxo de informações e pacotes audiovisuais do FSM para fora, é preciso garantir um mínimo de conexão e isso deve ser assegurado pela organização local junto à Universidade.
As coisas caminham, sob pressão e urgência, impulsionadas por lutas inadiáveis por outro mundo possível. As conversas sobre credenciamento e programa no Centre Bopp se misturam com outras, sobre gente que se levanta no mundo, e particularmente na Africa, como os jovens da Tunisia, com sua revolução Jasmin, a resistencia sarawi, ou a revolta da Costa do Marfim. Também se fala de uma Diáspora africana que terá no FSM uma oportunidade de voltar para casa. Um dia inteiro do FSM será dedicado à Diápora.
Os jovens de Dakar sentem o peso da responsabilidade e se expressam especialmente pela participação em atividades culturais - grande parte delas terá lugar naquele mesmo Centre Bopp, segundo participantes da Comissão de Cultura.
Neste sábado, haverá um concerto na capital senegalesa. Estarão no palco músicos de várias áreas da cidade para lançar um cd que gravaram em conjunto. A obra foi feita especialmente para acolher o FSM. Mil cópias serão vendidas durante o fórum.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O que está em jogo no Fórum Social Mundial 2011

As questões do Fórum Social Mundial de Dakar estão organizadas em três grandes temas: a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial. O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase descolonização. No Fórum de Dakar uma outra questão fundamental será a do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da expressão política dos movimentos sociais e de sua relação com os governos.

A conjuntura global e a crise
A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista. As quatro dimensões da crise (social, geopolítica, ambiental e ideológica) serão abordadas em Dakar. A crise social será enfrentada em particular sob os pontos de vista da desigualdade, da pobreza e da discriminação, enquanto a crise geopolítica será discutida em particular da perspectiva da guerra e do conflito, do acesso às matérias primas e da emergência de novas potências. A crise ambiental será debatida, em particular, sob a perspectiva da mudança climática, enquanto a crise ideológica será discutida da perspectiva de ideologias seguras, da questão das liberdades e da democracia e da cultura, presentes desde o Fórum Social de Belém, que serão analisadas em profundidade.

A evolução da crise lança luz sobre uma situação contraditória. Análises do movimento altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20. E mesmo assim ainda não foram traduzidos em políticas viáveis. Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.

A validação das agendas resulta na transformação das palavras de ordem dos movimentos em lugares comuns. É preciso refinar as perspectivas e conceder mais relevância ao debate estratégico, à articulação entre a resistência de curto prazo e a de médio prazo e à mudança em curso sob a superfície dos acontecimentos. A situação lança uma luz sobre a natureza dual da crise, tensionada entre a crise do neoliberalismo, que é a fase da globalização capitalista e a crise da própria globalização capitalista; uma crise do sistema que pode ser analisada como uma crise de civilização, a crise da civilização ocidental, estabelecida desde princípios do século XV.

Nesse contexto, alianças estratégicas devem obedecer a duas exigências. A primeira está vinculada à luta contra a pobreza, a miséria e a desigualdade, o uso do trabalho precário e a violação das liberdades no mundo, para melhorar as condições de vida e a expressão da classe trabalhadora diretamente afetada pela economia dominante e pelas políticas públicas. A segunda exigência prioriza o fato de que outro mundo é possível; um mundo necessário envolve um rompimento definitivo com os modos de produção e consumo da economia e da sociedade, bem como a redistribuição ambiental, com o equilíbrio geopolítico do poder estabelecido nas décadas recentes nos modelos democráticos proeminentes do ocidente.

Três propostas emergem como respostas à crise: o neoconservadorismo, que propõe a continuação do atual padrão dominante e dos privilégios que os acompanham às custas das liberdades, da continuidade das desigualdades e da extensão dos conflitos e das guerras; uma reestruturação profunda do capitalismo defendido pelos militantes do “New Deal Verde”, que propõe regulação global, redistribuição relativa e uma promoção voluntarista das “economias verdes”; e uma alternativa ambiental e social radical, que corresponde a uma superação do atual sistema dominante. O Fórum Social Mundial reúne todos os que rejeitam a opção neoconservadora e a continuação do neoliberalismo, constituindo um fórum pela mudança vigorosa da discussão entre os movimentos que fazem parte de uma perspectiva de avanço de um “New Deal Verde” e os que defendem a necessidade de alternativas radicais.

A referência ao contexto africano

O Fórum Social Mundial de Dakar vai enfatizar questões essenciais que aparecem com mais nitidez com as referências ao contexto africano. A ênfase estará no lugar da África no mundo e na crise. A África é objeto privilegiado de análise, ao tempo em que exemplifica a situação global. Não é pobre; é empobrecida. A África não é marginalizada; é explorada. Com suas matérias primas e recursos humanos cobiçados pelos países do Norte e pelas potências emergentes, e com a cumplicidade ativa dos líderes de alguns estados africanos, a África é indispensável para a economia global e para o equilíbrio ambiental do planeta.

A ênfase também estará na descolonização como um processo histórico incompleto. A crise do neoliberalismo e a crise de hegemonia dos Estados Unidos são indicativos da possibilidade de uma nova fase de descolonização, e do enfraquecimento das potências coloniais europeias. A representação Norte-Sul está mudando, uma situação que não elimina a realidade geopolítica e as contradições entre o Norte e o Sul.

O Fórum priorizará as diásporas e as migrações como uma das questões centrais da globalização. A questão será enfrentada com base na situação atual dos imigrantes e seus direitos, numa análise de longo termo, com o comércio de escravos posto sob a perspectiva do crescimento do papel das diásporas culturais e econômicas.

O Fórum debaterá as mudanças no sistema internacional, nas instituições multilaterais e nas negociações internacionais. Em particular, vai focar nas questões que tornam clara a necessidade de regulação global: equilíbrio ambiental, migração e diásporas, conflitos e guerras.

A situação dos movimentos sociais e comunitários

A convergência dos movimentos de que o Fórum Social Mundial se constitui está comprometida com a resistência ambiental e democrática. Com as lutas sociais presentes nos combates cívicos pelas liberdades e contra a discriminação. A resistência é inseparável das práticas emancipatórias específicas levadas a cabo pelos movimentos.

A direção estratégica dos movimentos está voltada para a acessibilidade universal ao direito, pela igualdade de direitos e pelo imperativo democrático. Os movimentos trazem consigo um movimento histórico de emancipação que são extensão e renovação de movimentos anteriores. Será em torno da definição, da implementação e da garantia de direitos que um novo período de emancipação possível será definido. Essa definição exige que essas concepções de diferentes gerações de direitos sejam revisitadas: direitos políticos e civis formalizados pelas revoluções do século XVIII, reafirmados pela Declaração Universal de Direitos Humanos, complementadas pelos desafios do totalitarismo dos anos 60; os direitos dos povos que o movimento de descolonização promoveu, com base no direito da autodeterminação, o controle dos recursos naturais, o direito ao desenvolvimento e à democracia; direitos sociais, econômicos e culturais especificados pela Declaração Universal e estipulados pelo Protocolo Adicional adotado pelas Nações Unidas na Assembleia Geral em 2000.

Uma nova geração de direitos está em gestação. Direitos que correspondem à expressão da dimensão global e dos direitos definidos com vistas a um mundo diferente da globalização dominante. A partir desse ponto de vista, duas questões serão as mais proeminentes em Dakar: direitos ambientais para a preservação do planeta e os direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo. O Fórum Social Mundial de Belém enfatizou os benefícios para os movimentos de abarcarem a agenda ambiental em todas as suas dimensões, do clima à destruição dos recursos naturais e da biodiversidade, e da preservação da água, da terra e das suas matérias primas. O FSM de Dakar priorizará um novo tratamento da questão da migração, com a ligação entre migrações e diásporas e a Carta Mundial dos Migrantes.

O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase descolonização. É nesse contexto que a relação entre o Norte e o Sul está mudando. Considerando que a representação Norte/Sul está mudando na perspectiva da estrutura social, há um Norte no Sul e um Sul no Norte. A emergência do poder de grandes estados está mudando a economia global e o equilíbrio de forças geopolíticas, e é reforçado pelo crescimento de mais de trinta estados que podem ser chamados de economias emergentes. Para tudo isso, contudo, as formas de dominação continuam a ser cruciais na ordem global. O conceito de Sul continua a ser altamente relevante. O Fórum Social Mundial enfatiza uma nova questão: o papel histórico e estratégico dos movimentos sociais nos países emergentes como um todo em relação ao seu Estado e o papel futuro desses estados no mundo. Essa questão, que já marcou os fóruns com o debate sobre o papel jogado pelos movimentos no Brasil e na Índia assume uma importância particular estratégica com a mudança geopolítica associada à crise.

O Fórum Social Mundial é o ponto de encontro para movimentos de vários tipos e de diferentes partes do mundo. Esses movimentos já começaram a se encontrar em redes que reúnem diferentes movimentos nacionais. O processo dos fóruns revela duas mudanças. A primeira delas é as conexões entre movimentos de acordo com suas regiões, características e contextos específicos unificam os movimentos da América Latina, América do Norte e Sul da Ásia (e em particular, a Índia), o sudoeste da Ásia, Japão, Europa e Rússia. O Fórum Social Mundial de Dakar terá dois impactos maiores. O ano de 2010 e os preparativos para Dakar foram marcados pela nova importância conquistada pelos movimentos da região do Magreb-Machrek.

O vigor dos movimentos sociais africanos será visível em Dakar, na forma de movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc. Esses movimentos são visíveis, com sua convergência diversidade em sub-regiões da África: no Norte da África e em particular no Magreb, no Oeste e na África Central, na África do Leste e na do Sul.

No Fórum Social Mundial de Dakar uma questão fundamental será a do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da expressão política dos movimentos e das extensões dos movimentos em relação às instituições, ao cenário político e aos governos dos estados. Com respeito aos movimentos como um todo, a análise avança sobre a importância da especificidade, via invenção de uma nova cultura política, da relação entre poder e política. O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante. Além disso, a tradução política dos avanços e das mobilizações dependem das instituições e das representações: num nível local, com a possibilidade de influenciar as decisões das autoridades locais; em nível nacional e internacional, com os governos dos estados, os regimes políticos e as instituições multilaterais; em nível regional e global, com alianças geoeconômicas e geoculturais e com a construção de uma opinião pública global e uma consciência universal.

O processo dos Fóruns Sociais Mundiais

Depois de o Fórum Social Mundial de Belém ter tomado o ano de 2010 como o ano da ação global, mais de quarenta eventos demonstraram o vigor do seu processo. Isso incluiu as atividades dos 10 anos do FSM em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial dos Estados Unidos, o Fórum Social Mundial do México e o Fórum das Américas, vários fóruns na Ásia, o Fórum Mundial de Educação na Palestina, mais de oito fóruns do Magreb e Machrek, etc. Cada evento associado foi iniciativa do comitê local. Esse comitê se refere na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, que adota uma metodologia privilegiando as atividades autogestionadas e declara sua iniciativa no Conselho Internacional do FSM. Essa multiplicação de eventos abre espaço para projeções relativos à extensão do processo dos fóruns. Ele assumiu uma nova forma, “um fórum estendido”, que consiste no uso da Internet para ligar iniciativas locais em diferentes países, com um Fórum em cada. Assim, enquanto ocorria o Fórum Mundial da Educação na Palestina, mais de 40 iniciativas estavam em curso em Ramallah. As iniciativas associadas com “Dakar estendida” inovarão o processo dos fóruns.

A preparação para o FSM Dakar baseou-se nos eventos do ano da ação global, 2010, bem como numa série de iniciativas que asseguraram a convergência de ações e permitiram novos caminhos a serem explorados em termos de organização e metodologia dos fóruns. Assim, já se pode usar as caravanas convergindo para Dakar, dos fóruns de mulheres em Kaolack, das migrações e diásporas, dos encontros para convergência de ações, dos fóruns associados (Assembleia Mundial dos Povos, fóruns pela ciência e pela democracia, sindicatos, autoridades locais e da periferia, parlamentares, teologia e libertação, etc.).

Depois de Dakar, um novo ciclo no processo dos fóruns irá começar. O fortalecimento do processo dos fóruns sociais mundiais poderia ocorrer com a reunião com grandes eventos, como o Rio+20, G8, G20, cúpulas e outras poderiam acordar com sua perspectiva. Seriam reconhecidos como eventos associados ao processo do fórum, estabelecendo assim uma proximidade com os acontecimentos de Seattle, em 1999, que contribuíram para a criação do FSM.

- Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano, representantes da Research and Information Centre for Development (CRID – France) no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.

Tradução: Katarina Peixoto