sexta-feira, 29 de julho de 2011

Caí no Mundo e não sei como voltar


Eduardo Galeano por email do camarada Nei Senna

O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…

Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas.
E eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!

Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nemos defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.

O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.

Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!

É mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.
E acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes.

Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar.
Nada se arruma. O obsoleto é de fábrica.
Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para ostalabarteiros?

Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.

Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava..
Desse tempo venho eu.  E não que tenha sido melhor.... É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram com "guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já vem um novo modelo".
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus!
Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.

Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.

Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular a poucos meses de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?
Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo oque não fosse toalha ou talheres. E guardávamos...

Como guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!! Como, para quê?  Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.

Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.
E as pilhas! As pilhas das primeiras Spica passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos bem sese devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.

Os jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de borracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar.

Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que dizia "esta é um 4 de bastos".

As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!

E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos disseram: Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora, nós dizíamos que sim, mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa.

E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!
Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.

Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.
Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eternotornaram caduco e ao caduco fizeram eterno.
Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.

Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue...

Eduardo Galeano
* Jornalista e escritor uruguaio

Caingangue defende trabalho como camelô: “Não assaltamos bancos, como os brancos fazem”


"Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Felipe Prestes no Sul21

Felipe da Silva encontrou na Praça da Alfândega e na Rua da Praia o seu sustento. Na mais tradicional via de Porto Alegre, vende bijuterias, lenços e outros badulaques – no inverno, se destacam os gorros e as luvas. Sentado em uma cadeira de praia, aguarda pacienciosamente os transeuntes, ou joga conversa fora com amigos que trabalham por ali. Com os clientes, é monossilábico. Limita-se a responder o que perguntam. Em outra cadeira, a esposa, Rosalina, maneja cipós com uma faca, produzindo pequenos artigos de decoração.
Felipe é líder de uma comunidade caingangue que reúne 35 famílias e cerca de 190 pessoas no bairro Lomba do Pinheiro, na periferia da capital gaúcha. Como ele e a esposa, mais de uma dezena de famílias caingangues vive do comércio de rua no centro da cidade. Nos finais de semana, eles rumam para o Brique da Redenção.
Rosalina faz artigos para decoração com cipó e intervém: "Os índios são os donos do Brasil" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foi Felipe quem os aglutinou, há cerca de dez anos, em uma comunidade formada por caingangues de diferentes partes do Estado. “Os caingangues se conhecem. Eu fui chamando: ‘Quer morar comigo, meu primo? Quer morar comigo, meu irmão?’”. Felipe atualmente ocupa o posto de vice-cacique. Foi cacique durante bastante tempo, depois entregou o cargo para um de seus oito filhos, Claudir, mais conhecido como Preto. “Temos 23 casas de material, posto de saúde, escola estadual indígena”, gaba-se Felipe.
O vice-cacique veio do extremo norte do Rio Grande do Sul, região que os caingangues já habitavam desde os primeiros contatos com homens de origem europeia, onde ainda hoje vive a maioria deles, que são cerca de 30 mil em todo o sul do Brasil. Felipe nasceu há 63 anos em Tenente Portela e vivia em Nonoai quando decidiu se estabelecer de uma vez em Porto Alegre. Durante cerca de dez anos ele vinha sazonalmente à Capital como ainda fazem muitos caingangues. Na época de Páscoa, por exemplo, muitos dos que vivem em aldeias no norte do Estado viajam para grandes cidades para vender macela e artesanatos. Numa dessas visitas, há cerca de uma década, Felipe resolveu ficar.
“Aqui dá para tirar mais dinheiro”, ele explica. Nas aldeias, o trabalho com o plantio de feijão leva 90 dias para dar algum resultado, conta. Outra alternativa dos caingangues tem sido a criação de galinhas, mas os indígenas não costumam ter capital para que este negócio dê certo.
Lojistas e feirantes temem que indígenas como Felipe “ocupem toda a rua” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Muita coisa mudou e vai mudar mais”

Há quem não concorde com o trabalho dos caingangues no centro de Porto Alegre. Lojistas e integrantes de uma feira de artesanato na Rua da Praia temem que eles “ocupem toda a rua” e clamam por “igualdade”. Isso porque eles precisam regularizar seu trabalho, pagar impostos, mas os indígenas não. Também entendem que os indígenas só devem ter autorização para vender produtos feitos por eles, e não produtos industrializados. “Eles fugiram de suas características, são camelôs. O branco não pode botar uma banca para vender camelô. O índio pode”, diz o feirante Paulo. A prefeitura também tem se movimentado para que os indígenas trabalhem em outros locais que não as concorridas Praça da Alfândega, Rua da Praia e Brique da Redenção.
“Hoje, o índio está quase igual ao branco. Eu tenho que ter relógio para controlar o horário do ônibus, tenho que usar roupa de branco, porque não posso andar quase pelado no meio de vocês”, diz Felipe. Exatamente por este motivo defende que os caingangues não podem ficar apenas vendendo os artesanatos que produzem. “Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado”, diz.
O líder caingangue considera legal o trabalho que faz.“O índio trabalha legalmente. Não assalta bancos, como os brancos fazem”, diz. No comércio está justamente a opção, segundo Felipe, para que ele e seus companheiros tenham uma vida digna. “Leio o jornal todos os dias, sei das malandragens que existem. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha”, exemplifica. Quando diz que “a rua é pública”, Rosalina intervém. “Os índios são os donos do Brasil”.
Apesar da veemência com que defende seu trabalho, o próprio Felipe também fica ressabiado. Quando pedimos para tirar fotos, ele orienta que tiremos apenas dos produtos artesanais feitos por sua esposa, e por dois arcos e flecha que já estavam prontos.
"O índio trabalha legalmente. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sérgio, um amigo, negro, que estava batendo papo com Felipe quando chegamos, observa que os artigos de artesanato indígena não sustentam uma família em Porto Alegre, porque o turismo é fraco. “Não há turismo em Porto Alegre, não tem como ficar apenas vendendo flechas. Se fosse no Nordeste, venderiam como água”, projeta. “No interior, os índios têm as terras deles. Na capital trabalham vendendo as coisas deles, mas precisam mais, não é suficiente”, defende.
Em pouco tempo, o comércio deve deixar de ser a única opção para os indígenas que optaram pela vida em uma grande cidade. A universidade já é uma realidade para alguns integrantes da comunidade caingangue da Lomba do Pinheiro. Um dos caingangues que trabalha no comércio de rua estuda enfermagem em uma universidade particular e espera que o trabalho na Rua da Praia seja apenas temporário. Um dos filhos de Felipe cursa Odontologia. Na escola indígena da comunidade, o vice-cacique conta que todos os profissionais são caingangues. “Só o diretor da escola é branco, porque ainda não temos ninguém capacitado”.