quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Educar para um novo poder


Marilza de Melo Foucher

O poder existe desde que o planeta Terra foi habitado. E é exercido em todos os tipos de organização social, em toda a relação humana. Não existe sociedade sem poder, mesmo nas formas que a antropologia política chama de primitivas. As relações de poder nascem naturalmente dentro de toda sociedade. O poder político vai surgir de modo universal com o nascimento do Estado, e ele terá a responsabilidade de definir as regras sociais que estabelecem as relações entre os concidadãos. Ele repousa na vontade de organizar, proteger e assegurar a vida em sociedade. Anteriormente, o poder pertencia exclusivamente a alguns homens. Com o Estado, nascem as instituições e os regimes políticos modernos que, por princípio, foram criados para por fim ao sistema de poder pessoal.
 
O poder é uma palavra completamente rebelde para se definir, ela pode se apresentar como um nome comum que se esconde atrás de um nome próprio PODER. O Poder designa uma capacidade de agir direta e indiretamente sobre as coisas ou sobre as pessoas, sobre objetos, sobre as vontades. O Poder de ter a capacidade de fazer alguma coisa, o Poder de como fazer. O filósofo e psicólogo francês Michel Paul Focault, foi quem melhor analisou como os mecanismos de poder operam na sociedade. Sua reflexão sobre o poder vai muito mais além da esfera publica e política, ele aprofunda a discussão sobre o poder em outros âmbitos da vida social, seja na família, na vida de um casal, na relação com os companheiros (as), nos distintos espaços da vida como no trabalho, no partido político, numa organização social, enfim em qualquer espaço de interação sócio-individual. Para resumir, segundo Foucault o poder estar na base de todas as nossas práticas sociais.
 
O poder não é algo que possuímos, é uma relação entre duas ou mais pessoas. Logo que as relações se estabelecem – por exemplo, entre dois pareceiros – as forças de que cada um dispõe geram um campo de poder, que pode ser exercido por meio do enfrentamento ou do diálogo, criando-se uma correlação de forças. O poder está presente numa multitude de relações microsociais e jamais será exercido sem resistência. Mas o poder obedece também a regras sociais, umas são institucionais outras sócio-culturais e por vezes interiorizadas pelos indivíduos. Daí certos comportamentos podem ser adotados espontaneamente pela sociedade que passa a julgar normal, por exemplo, certo abuso do poder. O Brasil está cheio de exemplos!
 
O poder político no Brasil
 
A sociedade brasileira já foi caracterizada como uma estrutura autoritária de poder. Durante séculos, os governantes bloquearam a participação e criação de direitos. A burocracia brasileira nunca foi uma forma de organização no sentido de agilizar o funcionamento da maquina estatal. Ao contrário, ela instala uma forma de poder altamente hierarquizado. Tal como uma cadeia de comando, quem está no nível superior detém os conhecimentos – que devem permanecer ocultos para seus subordinados, que também têm seus subalternos. Privados de conhecimentos, eles não inovam e nem fazem uso de criatividade, tendo em vista que foram contratados para obedecer às ordens dos escalões superiores. Assim se caracterizou o poder dos altos funcionários públicos, na lógica de que quem detém o saber detém o poder. Quanto mais ignorante é o povo, mas fácil será de manipulá-lo.
 
O poder burocrático exercido pela hierarquia é dificilmente assimilado com o poder democratizado, no qual, o cidadão funcionário age em função da igualdade dos direitos e se torna um defensor do bom funcionamento da máquina estatal. Infelizmente, essa concepção de burocracia como forma de poder vai se instalar também em alguns partidos políticos.
 
O poder na historia política do Brasil vai ser praticado como uma forma de tutela e de favor, sem mediações políticas e sociais. O governante é sempre aquele que detém o poder, o saber sobre a lei e sobre o social, privando os governados dos conhecimentos, criando-se assim uma relação clientelista e de favor.
 
Essa prática de poder vai contribuir para propagação do vírus da corrupção em todos os níveis de poder. Infelizmente, no imaginário popular o poder político vai ser assimilado como sinônimo de corrupção. O abuso de uso da máquina pública faliu o Estado Brasileiro. Há muitos anos, tenta-se restaurar um verdadeiro Estado democrático e cidadão. Este é ainda o maior desafio para a República Brasileira.
 
Relação de poder
 
A questão é de saber o que queremos fazer com o poder que cada um de nós pode exercer sobre o outro(a). Como cada um de nós se relaciona com o poder. Hoje, já existem vários estudos sobre como aprofundar o sistema democrático no Brasil. Entretanto, não se analisa como o poder é distribuído na sociedade. As desigualdades sociais expressam também desigualdades de poder.
 
Conquistamos cidadania civil (direito de votar), mas a cidadania política ainda é restrita. Se ampliarmos os espaços para exercer nossa cidadania, estaremos contribuindo para a emergência de uma sociedade civil mais organizada e combativa. Com isto, teríamos a capacidade de um maior controle social sobre o Estado. Este poder dos cidadãos organizados e legitimamente representados na esfera publica pode ser fértil para o fortalecimento da democracia e quem sabe pode nos educar para mudar nossa relação com o poder e para o seu exercício. Eleger alguém quer dizer exercer um poder de escolher os ocupantes temporários do governo. Entretanto, não devemos esquecer que a democracia é fundada na noção dos direitos entre governados e governantes. Daí a exigência de vigilância do poder político.
 
O papel preponderante da educação
 
Vale relembrar o que o filósofo e psicólogo Foucault dizia: “Todo lugar de exercício do poder é ao mesmo tempo um lugar de formação do saber”. A construção do poder democrático e ético no Brasil é um desafio a ser vencido e deveria ser ensinado como educação cívica nas escolas públicas (do ensino fundamental até o ensino médio), para que desde cedo nossos jovens possam aprender o que é o Poder, qual a função do poder político, quais são as qualidades necessárias para o exercício do poder político. Se não somos educados para lidar com o poder, podemos ser facilmente contaminados pelo vírus da corrupção.
 
Daí a necessidade de os jovens brasileiros aprenderem o que representa o Estado, essa abstração teórica criada pela inteligência humana. O que é um Bem Público, qual a finalidade dos serviços públicos, e, como cidadão ou cidadã, quais são os deveres e obrigações frente à República e como exigir seus direitos. Apreender que é o Estado e sua relação com a sociedade civil é fundamental para construir um poder político democrático. O cidadão não é um consumidor dos serviços prestados pelo Estado, é um sujeito com direitos e deveres. Como concidadãos, eles devem pagar os impostos corretamente, e devem exigir que o orçamento público oriundo dos impostos possa ser aplicado com critérios e honestidade. Os governantes devem ser cobrados se as metas programadas nos planos não forem cumpridas, tendo em vista as verbas alocadas. A constituição brasileira assegura ao contribuinte-cidadão o direito de exigir transparência dos gastos públicos no plano municipal. “As contas dos municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei”.
 
Enquanto cidadãos (ãs), devemos guardar a capacidade de nos revoltar, de nos indignar frente ao poder corrompido e às injustiças ligadas ao modo de lidar com o poder. Educar-se para o exercício do poder é uma tarefa prioritária para todos que exercem, na esfera publica ou privada, algum poder. E para o cidadão e cidadã, uma boa formação de educação cívica para entender o poder político e a coisa pública passa a ser urgente e prioritário. Para poder decifrar a realidade em que ele vive, saber exercer seus direitos e cumprir com as obrigações face ao Estado democrático.
 
A verdadeira revolução é aquela que tem um papel construtivo e educador. As reformas não reformam quando os atores do desenvolvimento não estão preparados ao exercício da cidadania e do poder. Nesse sentido, o futuro governo de Dilma, deveria tirar aprendizado da metodologia de educação popular do saudoso Paulo Freire. A educação popular fornece instrumentos pedagógicos para que seja possível codificar e decodificar a realidade brasileira. A luta contra a exclusão começa quando o excluído vira sujeito-cidadão e acaba participando ativamente no processo coletivo de mudanças.

Homossexuais são da Terra

Por Urariano Motta no Direto da Redação
 
As recentes e documentadas agressões a homossexuais em São Paulo me obrigam a refletir, ainda que breve e superficial, sobre o tema. Mais de uma vez, homossexuais, travestis, têm cruzado o meu caminho no trabalho de repórter, de escritor ou como amigo.
Lembro de uma entrevista que fiz no V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, em 2008. À minha pergunta de se, num mundo ideal, Flávia Desirée seria travesti, ela assim me respondeu:  
- Não. Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”.
Em outra oportunidade, um funcionário do Ministério da Cultura me contou, numa mesa de bar, a história de Dona Maria, uma senhora prostituta que, na altura dos 84 anos, era cuidada por um casal de gays. E sobre o seu relato, assim escrevi:
Dona Maria é cuidada, penteada, lavada e medicada hoje por um casal de homens. José e Jeová, a quem chamaremos assim, em respeito à liturgia do nome da única mulher a quem se devotam, têm os ofícios de advogado e de enfermeiro. Jeová cuida dos assuntos mais altos, dos papéis, documentos e males gerais da vida exterior, pública, de Dona Maria.   José, cuida de sua vida mais privada, pois lhe dá remédios, arruma, lava e espana os móveis, e tem uma paciência infinda em tratar da erisipela, que hoje teima em marcar a mulher, a ‘ex-prostituta’, como corre na boca das mais virtuosas famílias do Edifício Califórnia...
 O funcionário conta a história até o ponto em que alguém na mesa, de forma elogiosa, afirma que somente um gay poderia despir, dar banho em uma mulher. E com um tom cínico, o elogiador completa:
- Só um gay poderia dizer pra ela, ‘abra as pernas’, sem nada sentir.
O morador do Califórnia, que conta o caso, a isso não responde. Ele olha de lado, como se procurasse algo mais concreto para além da mesa, em outro lugar, em outra terra, que expressasse um sentimento. Algo como, por que dividir assim a humanidade? Por que não ver nesse carinho a expressão de uma esperança? Por que não ver nisto algo tão simples quanto um afeto, afeto sem adjetivo, afeto, afeto, simplesmente? As pessoas na mesa riem diante do ‘abra as pernas’, mas o contador da história, não”.
Em outro dia, em uma entrevista com a escritora espanhola Rosa Regàs, ela me surpreendeu neste passo, quando lhe perguntei :
“- O que Proust escreveu sobre a homossexualidade, pra você, não foi uma revelação, uma descoberta?
- Não, não foi uma revelação nem uma anormalidade. Durante minha infância, à época do ditador Franco, quando reinava na Espanha a moral da Igreja Católica, minha mãe viveu com uma mulher uma bela história de amor. Isso durou cinquenta anos, até que ambas morreram, com meses de diferença, em 1999”.
E Rosa Regàs me surpreendeu de tal modo, que achei fosse erro de minha filha, que sabe espanhol e me ajudava na tradução. Ao que ela me respondeu: “Pai, se for erro, é do gravador. Escute”. Mas eu escutava e não entendia, até o momento em que a escritora me confirmou por email o que dissera.
E no entanto, eu não precisava ir tão longe. Todos os meus amigos no Recife lembram do nosso amigo mais brilhante, sobre quem soubemos da homossexualidade muitos anos depois da sua morte. Somente hoje sabemos: ele atravessou, naqueles anos difíceis da ditadura, além do terror que atravessamos, também a angústia de não nos revelar de quem gostava, mesmo nas maiores bebedeiras. É que esse grande companheiro possuía vergonha do próprio ser, porque todos nós teríamos tido vergonha dele também, se soubéssemos.
Na esquerda recifense da época,  ser homossexual era algo tão grave quanto entregar um companheiro à repressão. Como era difícil, para a nossa “dialética” nos anos 70, assimilar, por exemplo,  que Pasolini era comunista e gay. Isso era tão absurdo, que um dos nossos, mais exaltado, protestava: “Se ele é comunista, não é gay. Mas se for mesmo gay, então Pasolini é... uma parcela avançada”.
Essas lembranças nos vêm quando vemos jovens na televisão, tidos como normais, agredindo outros jovens tidos como anormais, apenas porque as vítimas se mostravam pouco viris. O quanto ainda temos por crescer, como homens e gente. Se houvesse um castigo que redimisse tal violência, creio que os agressores deveriam ler até o fim dos seus dias, como uma tarefa de casa, até que a evidência lhes entrasse no cérebro:
Homossexuais podem ser seus filhos, irmãos, tios ou pais, meninos. Homossexuais podem ser até vocês, que punem com fúria a diferença que não aceitam em sua própria pessoa. Homossexuais não são de Marte nem de Vênus, boys. Homossexuais são da Terra, feras. Não sabíamos que homossexuais, por essa condição, não poderiam ser de direita ou de esquerda,  assim como ninguém é comunista ou fascista por ter nascido homem ou mulher, ou por se chamar Antonio ou Elenice.

Comunidades Negras Rurais e o Direito ao Território Étnico

As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado.

Após décadas de esquecimento, as comunidades quilombolas passaram, no período da redemocratização do país, na década de 1980, por um processo de afirmação de sua identidade e etnicidade. O auto-reconhecimento da condição de quilombola asseverou uma etnogênese ressaltada no vínculo visceral entre a identidade étnica e o território. Esse processo revestiu-se no pleito pelo reconhecimento oficial de seus liames de ancestralidade e mais precisamente pelo direito ao território étnico, que tradicionalmente ocupavam. Nesse contexto, o termo “Quilombo” foi ressemantizado, transcendendo o viés limitadamente historicista, de forma a abarcar outras territorialidades específicas, não mais voltadas para o passado, mas ressaltadas na perspectiva presente.

A Constituição de 1988, sob os marcos da plurietnicidade e multiculturalidade, garantiu no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva de seu território, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, e caracterizando-os enquanto sujeitos coletivos de direitos. O reconhecimento oficial da legitimidade dos territórios quilombolas foi firmado não apenas pelo art. 68 do ADCT, mas também por outros dispositivos e Tratados Internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que preconizam esse direito e que já foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.

Porém, a despeito das garantias constitucionais de preservação dos modos peculiares de criar, fazer e viver dessas comunidades e conseqüentemente de preservação dos seus territórios, são pouquíssimos os territórios quilombolas que já foram regularizados. Tendo em vista esse baixo número de titulações desde promulgada a Constituição, faz-se necessário identificar as dificuldades legais, operacionais e burocrático-administrativas no acesso ao território, bem como é necessário avaliar se as políticas públicas de titulação têm sido eficazes para cumprir com aquilo a que se destinam.

O direito humano ao território é condição imprescindível de povos tradicionais, como as comunidades quilombolas no Brasil, para consecução de seus demais direitos humanos. As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado. São os quilombos no Brasil; palenques na Colômbia; comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola. Em alguns desses países, acordos de paz foram firmados com os negros libertos e foram garantidas conquistas políticas e territoriais. No Brasil, apenas na Constituição Federal de 1988 a plurietnicidade do estado nacional viu-se refletida, bem como a garantia de povos tradicionais, dentre elas as comunidades negras rurais descendentes dos antigos escravos, dos seus modos peculiares de criar, fazer e viver e principalmente seus territórios étnicos, o que faz da articulação dessas comunidades, aqui, um fenômeno relativamente recente.

Advogada da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos.