sexta-feira, 1 de abril de 2011

FOLHA: “A GENTE SÓ APOIAVA E FINANCIAVA A DITADURA”


O que a falácia da ditabranda revela

Por Marco Aurélio Weissheimer, da Carta Maior

Em um editorial publicado no dia 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo utilizou a expressão “ditabranda” para se referir à ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Na opinião do jornal, que apoiou o golpe militar de 1964 que derrubou o governo constitucional de João Goulart, a ditadura brasileira teria sido “mais branda” e “menos violenta” que outros regimes similares na América Latina.
Como já se sabe, a Folha não foi original na escolha do termo. Em setembro de 1983, o general Augusto Pinochet, em resposta às críticas dirigidas à ditadura militar chilena, afirmou: “Esta nunca foi uma ditadura, senhores, é uma dictablanda”. Mas o tema central aqui não diz respeito à originalidade. O uso do termo pelo jornal envolve uma falácia nada inocente. Uma falácia que revela muita coisa sobre as causas e consequências do golpe militar de 1964 e sobre o momento vivido pela América Latina.
É importante lembrar em que contexto o termo foi utilizado pela Folha. Intitulado “Limites a Chávez”, o editorial criticava o que considerava ser um “endurecimento do governo de Hugo Chávez na Venezuela”. A escolha da ditadura brasileira para fazer a comparação com o governo de Chávez revela, por um lado, a escassa inteligência do editorialista. Para o ponto que ele queria sustentar, tal comparação não era necessária e muito menos adequada. Tanto é que pouca gente lembra que o editorial era dirigido contra Chávez, mas todo mundo lembra da “ditabranda”.
A falta de inteligência, neste caso, parece andar de mãos dadas com uma falsa consciência culpada que tenta esconder e/ou justificar pecados do passado. Para a Folha, a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” porque teria preservado “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”, o que não estaria ocorrendo na Venezuela. Mas essa falta de inteligência talvez seja apenas uma cortina de fumaça.
O editorial não menciona quais seriam as “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça” da ditadura militar brasileira, mas considera-as mais democráticas que o governo Chávez que, em uma década, realizou 15 eleições no país, incluindo aí um referendo revogatório que poderia ter custado o mandato ao presidente venezuelano. Ao fazer essa comparação e a escolha pela ditadura brasileira, a Folha está apenas atualizando as razões pelas quais apoiou, junto com a imensa maioria da imprensa brasileira, o golpe militar contra o governo constitucional de João Goulart.
Está dizendo, entre outras coisas, que, caso um determinado governo implementar um certo tipo de políticas, justifica-se interromper a democracia e adotar “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”. A escolha do termo “ditabranda”, portanto, não é acidental e tampouco um descuido. Trata-se de uma profissão de fé ideológica.
Há uma cortina de véus que tentam esconder o caráter intencional dessa escolha. Um desses véus apresenta-se sob a forma de uma falácia, a que afirma que a nossa ditadura não teria sido tão violenta quanto outras na América Latina. O núcleo duro dessa falácia consiste em dissociar a ditadura brasileira das ditaduras em outros países do continente e do contexto histórico da época, como se elas não mantivessem relação entre si, como se não integrassem um mesmo golpe desferido contra a democracia em toda a região.
O golpe militar de 1964 e a ditadura militar brasileira alimentaram política e materialmente uma série de outras ditaduras na América Latina. As democracias chilena e uruguaia caíram em 1973. A argentina em 1976. Os golpes foram se sucedendo na região, com o apoio político e logístico dos EUA e do Brasil. Documentos sobre a Operação Condor fornecem vastas evidências dessa relação.
Recordando. A Operação Condor é o nome dado à ação coordenada dos serviços de inteligência das ditaduras militares na América do Sul, iniciada em 1975, com o objetivo de prender, torturar e matar militantes de esquerda no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia.
O pretexto era o argumento clássico da Guerra Fria: "deter o avanço do comunismo internacional". Auxiliados técnica, política e financeiramente por oficiais do Exército dos Estados Unidos, os militares sul-americanos passaram a agir de forma integrada, trocando informações sobre opositores considerados perigosos e executando ações de prisão e/ou extermínio. A operação deixou cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na Argentina, entre 3 mil e 7 mil no Chile e mais de 200 no Uruguai, além de outros milhares de prisioneiros e torturados em todo o continente.
Na contabilidade macabra de mortos e desaparecidos, o Brasil registrou um número menor de vítimas durante a ditadura militar, comparado com o que aconteceu nos outros países da região. No entanto, documento secretos divulgados recentemente no Paraguai e nos EUA mostraram que os militares brasileiros tiveram participação ativa na organização da repressão em outros países, como, por exemplo, na montagem do serviço secreto chileno, a Dina. Esses documentos mostram que oficiais do hoje extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ministraram cursos de técnicas de interrogatório e tortura para militares chilenos.
Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (30/12/2007), o general Agnaldo Del Nero Augusto admitiu que o Exército brasileiro prendeu militantes montoneros e de outras organizações de esquerda latino-americanas e os entregou aos militares argentinos. “A gente não matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso”, justificou na época o general. Humildade dele. Além de prender e entregar, os militares brasileiros também torturavam e treinavam oficiais de outros países a torturar. Em um dos documentos divulgados no Paraguai, um militar brasileiro diz a Pinochet para enviar pessoas para se formarem em repressão no Brasil, em um centro de tortura localizado em Manaus.
Durante a ditadura, o Brasil sustentou política e materialmente governos que torturaram e assassinaram milhares de pessoas. Esconder essa conexão é fundamental para a Folha afirmar a suposta existência de uma “ditabranda” no Brasil. A ditadura brasileira não teve nada de branda. Ao contrário, ela foi um elemento articulador, política e logisticamente, de outros regimes autoritários alinhados com os EUA durante a guerra fria. O editorial da Folha faz eco às palavras do general Del Nero: “a gente só apoiava e financiava a ditadura; não há crime nisso”.
Não é coincidência, pois, que o mesmo jornal faça oposição ferrenha aos governos latino-americanos que, a partir do início dos anos 2000, levaram o continente para outros rumos. Governos eleitos no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai passam a ser alvos de uma sistemática oposição midiática que, muitas vezes, substitui a própria oposição partidária.
A Folha acha a ditadura branda porque, no fundo, subordina a continuidade e o avanço da democracia a seus interesses particulares e a uma agenda ideológica particular, a saber, a da sacralização do lucro e do mercado privado. Uma grande parcela do empresariado brasileiro achou o mesmo em 64 e apoiou o golpe. Querer diminuir ou relativizar a crueldade e o caráter criminoso do que aconteceu no Brasil naquele período tem um duplo objetivo: esconder e mascarar a responsabilidade pelas escolhas feitas, e lembrar que a lógica que embalou o golpe segue viva na sociedade, com um discurso remodelado, mas pronto entrar em ação, caso a democracia torne-se demasiadamente democrática.

As razões do golpe de 64

Emir Sader na Carta Maior

As visões descritivas dos grandes acontecimentos históricos tendem a reduzi-los a contingências – a Primeira Guerra, a um episodio menor – ou a idiossincrasias – a personalidade de Hitler. No caso do golpe no Brasil, a imprensa golpista da época se centrava nos supostos “abusos” do governo Jango, que teriam levado à intervenção dos militares para “salvar a democracia” – lugar comum nos editoriais da época.

O movimento que desembocou no golpe de 1964 na realidade vem de longe. Podemos remontá-lo ao começo da Guerra Fria, no fim da Segunda Guerra e no começo do segundo pós-guerra, quando os EUA reciclavam sua definição de inimigos do bloco derrotado na guerra, para a URSS. Não seria possível explicar a brutalidade das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, sem levar em conta a nova atitude norteamericana de mostrar para a URSS sua superioridade nuclear, que iria definir o começo do novo período. De capa da revista Times há poucos anos antes, como herói da luta pela democracia, Stalin se tornava a encarnação do mal que haveria que evitar: o “espectro do comunismo”.

Foi nesse momento que os EUA elaboraram a Doutrina da Segurança Nacional, que propunha que os Estados se transformassem em quarteis generais na luta contra a “subversão” e o “comunismo”. Todo tipo de conflito, de divergência, de expressão de descontentamento social seria classificado como “subversão”, expressão de interesses estrangeiros e deveria ser extirpado. A instalação de ditaduras militares, que blindassem os Estados, seria o objetivo ideal.

Da geração de militares brasileiros que foi à guerra da Itália, Humberto Castello Branco e Golbery do Couto e Silva, estreitaram ali laços com as tropas nortemamericanas e, na volta para o Brasil, fundaram a Escola Superior de Guerra, que passou a ser o lugar estratégico de formulação, difusão e formação de pessoal das FFAA baseado na Doutrina de Segurança Nacional.

Os anos 50 foram anos de ensaios de golpe, contra Getúlio e contra JK, depois na renúncia do Jânio. Enquanto isso o Brasil crescia, distribuía renda, afirmava uma politica internacional própria. Os investimentos norteamericanos foram voltando com força – depois do longo interregno desde a crise de 1929-, até que, com a chegada da indústria automobilística, deslocaram para si o eixo da economia e condicionaram fortemente o consumo de luxo. Mas ao mesmo tempo o mercado interno se expandia na direção do consumo de bens de consumo popular nas grandes cidades e também no campo, onde se estendia o processo de sindicalização rural, pela primeira vez.

As duas dinâmicas se chocavam: a da democratização do consumo e a do consumo de luxo junto à exportação. A ditadura resolveu o conflito a favor desta. Além da brutal repressão que desatou contra tudo o que significasse democracia, desde o começo o regime militar teve um caráter de classe muito definido: interveio em todos os sindicatos, perseguiu a seus lideres e determinou um arrocho salarial, o que significou uma situação extraordinariamente favorável à superexploração dos trabalhadores e à acumulação favorável ao grande capital nacional e estrangeiro.

Ao contrario do que alguns pensavam, a ditadura não significou o retrocesso da expansão economia e da industrialização no Brasil. O fim da democracia e a imposição da ditadura foram funcionais ao capitalismo. Brecaram as demandas populares mediante o arrocho, bloquearam as demandas salariais pela intervenção e repressão aos movimentos populares, enquanto abria a economia ao capital estrangeiro, liberava o envio de royalties ao exterior e favorecia de todas as maneiras a concentração em favor das grandes empresas nacionais e estrangeiras.

O chamado “milagre” tinha um santo: a ditadura, a repressão, os golpes ao movimento popular e à democracia. Foi uma ditadura articulada com os planos da guerra fria dos EUA e com o modelo de acumulação do grande capital – que se desenvolveu em base à concentração no consumo de luxo, na superexploração dos trabalhadores e na exportação. Avançou o Brasil desigual, injusto, de concentração de renda, de exclusão social, de prepotência, de terror, de poder do capital, dos latifundiários, dos donos da mídia privada. O Brasil que recentemente começamos a superar, daí a oposição dos herdeiros da ditadura.

Crise humanitária marfinense além da fronteira

Milhares de marfinenses fogem para a Libéria por causa da violência desatada no país, após as eleições de novembro que o deixaram à beira de uma guerra civil. O questionado presidente da Costa do Marfim, Laureng Gbagbo, não cede às pressões internacionais para que deixe o cargo após a vitória eleitoral, avalizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), de seu tradicional adversário, Alassane Ouattara.

Por Jessica McDarmind

Milhares de marfinenses fogem para a Libéria por causa da violência desatada no país, após as eleições de novembro que o deixaram à beira de uma guerra civil. O questionado presidente da Costa do Marfim, Laureng Gbagbo, não cede às pressões internacionais para que deixe o cargo após a vitória eleitoral, avalizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), de seu tradicional adversário, Alassane Ouattara. A disputa de poder que se seguiu à votação deixou centenas de mortos, quase um milhão de refugiados e uma economia deteriorada.

O conflito tem consequências sobre os países vizinhos, que se recuperam de seus próprios problemas. Os moradores do Butuo, a um par de quilômetros da fronteira com a Costa do Marfim, recebem dezenas de marfinenses em suas pequenas casas e, em alguns casos, literalmente lhes dão comida de seus pratos e a roupa que estão usando. Eles recordam o que é perder tudo e ter que fugir ao som dos disparos de armas automáticas. Não se esquecem dos que os ajudaram quando estiveram com problemas. Vários milhares de liberianos se refugiaram na Costa do Marfim durante os 14 anos da guerra civil que terminou em 2003.

Desde que refugiados da aldeia marfinense de Bin Houye, do outro lado da fronteira, começaram a chegar a Butuo, Titos Peter abrigou cerca de 60 pessoas, além da dezena de familiares com os quais convive. Muitas das pessoas que recebeu são parentes, mas também há estranhos que precisam de ajuda, disse Titos, que vive há anos neste povoado, depois de estar durante anos em Bin Houye, durante a guerra na Libéria. “Estamos todos relacionados”, explicou. “Se algo acontece deste lado, vamos para lá. Quando algo acontece lá, vêm para cá”, disse.

Há meses que chegam marfinenses a este povoado e isto esgota os escassos recursos de água e comida. As tensões começam a surgir com a propagação de doenças e da fome, que afeta cada vez mais pessoas. Os refugiados lotam as casas da população local e comem sua comida, sem importar se são convidados ou não, e a doença se espalha porque as pessoas defecam em espaços públicos por falta de instalações adequadas, lamentou a representante distrital Annie W. Kwaleh. “O pouco que têm dividem com os estrangeiros. Estes não querem ir para os acampamentos e não podemos abandoná-los. Comeram tudo, não nos resta nada. Não sabemos o que fazer”, acrescentou.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) desloca lentamente as pessoas para o acampamento de Bahn, a 60 quilômetros, por um caminho em mau estado. O lugar tem capacidade para 15 mil pessoas, mas só há 2.500. Há outro acampamento em construção e vários provisórios em todo o condado de Nimba, onde se concentra a crise humanitária neste momento.

O trabalho da organização se complicou a partir de 24 de fevereiro, quando eclodiu um forte enfrentamento na fronteira ocidental da Costa do Marfim entre forças de Gbagbo e ex-integrantes do exército rebelde, leais a Ouattara. “Aquele dia começou com um telefonema informando que havia duas mil pessoas na fronteira”, contou Dina Sinigallia, responsável de Relações Externas do escritório do Acnur em Saclepea, perto de Bahn.

O Acnur deve enfrentar uma crescente quantidade de pessoas na fronteira e a deterioração da segurança. Agora, seu objetivo é tirar as pessoas da região. A agência recomenda aos refugiados que se dirijam para Bahn ou a uma das 15 comunidades com áreas para alojá-los, explicou Dina. “Não haverá mais assistência na fronteira e é pouco provável que continuem sendo distribuídos alimentos”, acrescentou. No entanto, muitos refugiados se negam a ir para Bahn porque não querem se afastar de seus familiares que ficaram na Costa do Marfim. Além disso, dizem que o bulgur (alimento à base de trigo) entregue pelo Acnur faz mal. “Não podemos obrigar as pessoas a irem. Tem de ser voluntário”, ressaltou Dina.

O pouco alimento distribuído era inadequado, o mesmo bulgur que faz com que os refugiados não queiram ir para os acampamentos, e as condições de higiene se deterioram, disse P. Zoyeagbander D. Gberardeu, assistente do superintendente de Butuo. Desde que começou a afluência de refugiados, no final de fevereiro, morreram, pelo menos, sete pessoas de diarreia, afirmou. “Dizemos a eles que é melhor irem para os acampamentos porque nossa comida acabou. Se ficarem, todos teremos de partir ou morreremos de fome”, acrescentou.

A segurança também é motivo de preocupação. O distrito de 47 mil habitantes tem três policiais, 13 funcionários de fronteira e oito de migração. Os combates aconteceram tão perto que a população ouviu disparos e artilharia pesada, acrescentou Gberardeu. “Não queremos que nada de mal aconteça, mas se chegar a ocorrer estaremos em uma situação de extrema vulnerabilidade”, afirmou.

Por Envolverde/IPS. Foto por http://www.flickr.com/photos/fleshmanpix/.