segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Belo Monte, Lula e o Monstro







Escrito por Rodolfo Salm

A apropriação dos minérios e dos rios da Amazônia é um projeto antigo do capital internacional. Neste contexto, o PAC, com Belo Monte no topo das suas grandes obras, é uma reedição da ALCA, mas de maneira indireta. Se sua energia fosse realmente pensada como suporte para o sistema hidrelétrico nacional, as linhas que permitiriam a transmissão dos alegados 11.000 MW para o resto do país já estariam orçadas e incluídas no projeto. Mas, embora isto possa parecer um total absurdo a qualquer pessoa minimamente razoável, não estão. Não estão, pois seriam economicamente inviáveis dada a sua ociosidade em boa parte do ano, como nesta época, quando o nível do Xingu é extremamente reduzido, e a produção projetada de energia tende a zero.

Então está claro que, além dos interesses imediatos das empreiteiras e da burocracia corrupta, a pressa na mobilização dessa energia é mesmo para a exploração mineral da Amazônia para a exportação, atendendo a demandas do capital internacional. Isso fica claro na declaração recente de José Antonio Muniz, presidente da Eletrobrás, que já admite que "não será preciso uma linha de transmissão somente para Belo Monte, porque a idéia é de que parte da energia da usina fique no Pará"... "Como existem no Pará inúmeros projetos minero-metalúrgicos, é possível que parte da energia da usina fique no estado". Ou seja, esta energia será "internacionalizada" na forma de minerais beneficiados.

A interpretação da figura do presidente Lula e de suas conseqüências para a "história deste país" ainda será por muitos anos um tema para calorosos debates. Especificamente como ele conseguiu, sem prejudicar sua popularidade e seu apelo popular (na verdade fazendo ambos crescerem), subverter o programa histórico do partido de cuja criação foi um dos principais artífices. Em seu primeiro discurso como presidente eleito, em 2003, Lula declarou que seu governo seria "um guardião da Amazônia e da sua biodiversidade" e que seu programa de desenvolvimento, em especial para a região, seria "marcado pela responsabilidade ambiental".

Num artigo que escrevi na época (e que hoje me constrange pela ingenuidade), concluí que Lula poderia ser um dos "cinco presidentes inteligentes e amantes da natureza", necessários "para salvar a Amazônia". Isso, segundo o pensamento do professor Warwick Kerr, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em referência à destruição então prevista para os vinte anos seguintes. Por outro lado, o que ali se manifestava desde o início era uma das principais características de Lula, presentes até hoje: sua tão comentada capacidade de permanecer em campanha depois da posse e, especificamente na área ambiental, de adotar um discurso progressista, mas incompatível com as práticas do governo no mundo real. Com o decorrer do tempo, foi ficando cada vez mais clara sua opção pela internacionalização da região, através do apoio inconteste ao agronegócio exportador, às mineradoras e às grandes hidrelétricas, tudo em detrimento da nossa diversidade cultural e biológica.

Recentemente, apesar de desiludido com o presidente Lula no que se refere à problemática ambiental, fiquei intrigado quando soube que o bispo da Prelazia do Xingu, D. Erwin Krautler, fora atendido no pedido de uma audiência com o presidente em 22 de julho (ver Belo Monte: Carta a Lula) dirigida ao presidente). Seria uma oportunidade para que as lideranças do movimento pela preservação do rio expusessem seus motivos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte (ou "Belo Monstro", como é conhecida entre os diretamente afetados pelo projeto). O Correio da Cidadania também publicou uma mensagem do professor de engenharia mecânica da Unicamp, Oswaldo Sevá, entregue ao presidente Lula durante a audiência. Nela, Sevá relembrou as conseqüências nefastas dos projetos hidrelétricos previstos para o rio Xingu. Conseqüências, bom que se repita, mais do que suficientes para que Belo Monte "não deva ser licenciado nem implantado pelo seu governo, nem em nenhum outro".

Eu soube pelos presentes à reunião que foram admitidos na sala oito representantes da oposição ao barramento do Xingu. E mesmo assim eles não puderam entrar com celulares, gravadores ou qualquer coisa que pudesse registrar o que aconteceria ali. Além do próprio D. Erwin Kräutler, participaram do encontro a senhora Antonia Melo (da Fundação Viver, Produzir e Preservar), uma das principais lideranças da resistência à construção da barragem e ligada a vários movimentos sociais, o professor do Instituto de Energia e Eletrotécnica da USP, Célio Bermann, e os procuradores da República e do Ministério Público Federal do Pará Felício Pontes e Rodrigo Costa e Silva. Além das lideranças indígenas presentes ao encontro (Ozimar Juruna e José Carlos Arara), que rechaçaram novamente e com veemência o empreendimento, diante de um presidente da Funai constrangido.

Com o apoio de slides, os quais transcrevo integralmente abaixo, Bermann fez uma apresentação focada na inviabilidade técnica e econômica do projeto visando chamar a atenção do presidente para alguns dos nossos argumentos:

"O projeto da Usina de Belo Monte é tecnicamente inviável, pois a potência instalada prevista, de 11.233 MW, só estará disponível durante três a quatro meses. O ganho de energia firme, de apenas 4.462 MW médios (1/3 do total), inviabiliza financeiramente o projeto.

1) Impacto humano bem maior do que vem sendo anunciado; mais de vinte e cinco mil brasileiros moradores de Altamira, da área rural da Transamazônica e barranqueiros do Xingu serão obrigados a se mudar, e isso os tornará ainda mais pobres;

2) A obra prevista é bastante complexa, com três grandes barragens de concreto, vários canais concretados, largos e longos, cinco represas nas terras firmes, entre a Transamazônica e a margem esquerda do Xingu, com dezenas de quilômetros de diques no seu entorno, mais uma grande represa na calha do rio, com a água entrando por bairros de Altamira - algo que custará entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões. A depender dos contratos feitos, poderá provocar na economia nacional uma sangria duas ou três vezes maior do que os prejuízos que amargamos com os contratos da usina de Tucuruí desde 1984.

3) Seria em parte destruído e em parte totalmente adulterado um dos locais mais esplêndidos do país, 100 quilômetros seguidos de largas cachoeiras e fortes corredeiras, arquipélagos florestados, canais naturais rochosos, pedras gravadas e outras relíquias arqueológicas - um verdadeiro monumento fluvial do planeta: a Volta Grande do Xingu".

Não são nada claros os resultados práticos do encontro. O professor da USP considerou que o presidente ficou impressionado com esses dados, pedindo "estudos mais aprofundados sobre o empreendimento". Um passo positivo, sem dúvida, mas estudos mais aprofundados não são necessários. As empresas do setor elétrico já fizeram seus estudos enviesados e garantem a aprovação da obra antes mesmo que o EIA-Rima esteja completo. Os ambientalistas já demonstraram inúmeras vezes a inviabilidade técnica, financeira, a falta de necessidade da obra, a possibilidade de fontes substitutas, os inúmeros crimes ambientais que seriam cometidos, a irreversibilidade dos impactos, as perdas com o turismo potencial etc. Diversos movimentos sociais e moradores das regiões afetadas já se manifestaram contrários à obra, mesmo com o enorme esforço de cooptação. As cartas já estão todas na mesa. A solução agora é política e, antes de tudo, ética.

D. Erwin avaliou a reunião como positiva, pois pela primeira vez conseguiram colocar para o presidente sua "angústia e indignação", e que Lula, segundo avaliou, teria ficado sensibilizado com os dados apresentados e com os relatos sobre os impactos da obra para as comunidades ribeirinhas e indígenas, ficando claro que os críticos da barragem se prepararam muito bem e entendem do assunto.

O presidente Lula garantiu ao pessoal ali presente que Belo Monte só sai após ampla discussão e se for viável. E garanto que não é. E prometeu ao bispo do Xingu que esta não foi a última reunião e que "o diálogo e o debate continuarão". O melhor que se pode falar do encontro, segundo os presentes, é que, ao ouvir os nossos motivos, o presidente afirmou que"jamais empurrará o projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte goela abaixo das comunidades envolvidas".

Acontece que, apesar da aparente boa vontade do presidente, o Ministério de Minas e Energia sustenta que o processo de licitação terá início já em outubro e quatro audiências públicas estão previstas para a primeira quinzena de setembro. Curiosamente, os ministros do Meio Ambiente, das Minas e Energia e da Casa Civil, convidados para o encontro, não compareceram, como se o que o presidente fala não tivesse nada a ver com as suas atribuições. O que poderiam ter de mais importante para tratar do que o futuro da maior e mais controversa obra do PAC? Naquela data, Dilma Rouseff estava nos EUA em uma cúpula cópula com empresários. Ou seja, encontrando-se com os maiores interessados no empreendimento.

O mais sinistro é que você, leitor, contribuinte brasileiro, é quem pagaria, através de financiamentos do BNDES e da participação de estatais, por boa parte dos custos desta empreitada de conseqüências devastadoras. As empresas como Chesf, Eletronorte, Furnas e Eletrosul poderão entrar juntas ou isoladamente no leilão para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Resumindo, o povo brasileiro todo irá financiar o lucro imediato das empreiteiras e o lucro a longo prazo das empresas mineradoras, mas não receberá os benefícios, pois parte dos lucros será remetida ao exterior, e o restante estará concentrado na mão de poucos. De quebra, o povo brasileiro ainda arcará com os custos ambientais.

Num encontro de especialistas de diversas áreas reunidos recentemente na UFPA, em Belém, para a discussão do Estudo de Impacto Ambiental da barragem, o biólogo e pesquisador do INPA Philip Fearnside comparou a mentira institucionalizada de Belo Monte àquela montada nos Estados Unidos com relação à Guerra do Vietnã: os jovens que se opunham à guerra (e, agora, à barragem) eram tachados de inconseqüentes irresponsáveis. Os que não podiam ser desqualificados como tal por serem respeitados intelectuais eram acusados de "mal informados". Ainda em Belém, conversando com um burocrata do setor hidrelétrico defensor da barragem sobre as possibilidades de resistência ao barramento do rio, ele admitiu que somente um governo realmente autoritário, linha dura, "uma ditadura mesmo", conseguiria levar a cabo a construção desta hidrelétrica. Ao insistir nesta idéia, com a perspectiva da realização do leilão de Belo Monte ainda este ano, sob a complacência do presidente Lula, a ministra Dilma pode dar um importante passo neste sentido.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

Aquecimento global, um problema de todos....



Vídeo: Aquecimento Global - se nós desistirmos, eles desistem

Criada pela agência McCann Erickson Portugal e produzida pela Seagulls Fly São Paulo, esta campanha lançada pela Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza (Portugal) alerta para o problema do aquecimento global e como ele atinge todos os seres vivos.


(Envolverde/Ecoagência)

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O Alcorão e o papel da mulher.....

Reinterpretando o Alcorão com visão de gênero

Por Suad Hamada

Mulheres de Bahrein promovem a reinterpretação das leis islâmicas com perspectiva de gênero mediante uma série de painéis, este ano e no próximo, uma iniciativa nova para este país do Golfo Pérsico ou Arábico. A Associação de Mulheres para o Desenvolvimento de Bahrein começou em maio a realizar painéis com o objetivo de propiciar um debate sério sobre o “verdadeiro significado” dos versos do Alcorão, livro sagrado do Islã, nos quais se fundamenta a supremacia masculina.

“Não estamos contra o Islã e não queremos promover nossa perspectiva’’, explicou Asma Rajab, ativista e integrante da direção da associação. “Queremos que nossa sociedade considere as mulheres com seres humanos completos”, acrescentou. O avanço da condição feminina registrado em vários países, incluído Bahrein, indica que é o momento de reinterpretar os versos do Alcorão, afirmou. O Islã é uma religião capaz de adaptar-se a todas as situações e períodos. Suas normas devem ser reinterpretadas para se ajustarem à situação atual das muçulmanas”, disse Rajab.

Entre as normas que violam os direitos femininos estão a tutela masculina, desigualdade hereditária, violência doméstica e o menor valor do testemunho das mulheres nos tribunais regidos pela shariá (lei islâmica), bem como a crença difundida de que não podem ser presidentes, juizas e nem legisladoras. Essas práticas são incompatíveis com os princípios islâmicos, assegura a Associação, que questiona as autoridades religiosas e outras pessoas para as quais as mulheres são inferiores aos homens.

Os painéis sobre “Mulheres, uma perspectiva renovável” pretendem corrigir séculos e séculos de malentendidos que sustentam que a discriminação de gênero tem o aval religioso. O segundo encontro aconteceu no último dia 15 e o terceiro está previsto para dezembro. “Para mudar as sociedades organizadas sobre a primazia masculina o mundo muçulmano deve aceitar a flexibilidade do pensamento islâmico e do Corão”, insistiu Rajab. As mulheres são discriminadas de muitas formas.

Os tribunais da shariá, para os quais o testemunho de duas mulheres equivale ao testemunho de um homem, “não são realistas e são degradantes para a mulher e suas conquistas”, disse à IPS o advogado Hassan Ismail, que também questionou a desigualdade dos direitos hereditários, tema que será objeto do último painel que acontecerá no próximo ano. “Antes as mulheres eram donas de casa e dependiam economicamente dos homens. Mas as coisas mudaram e agora compartilham essa responsabilidade. Então, por que eles podem receber o dobro de uma herança”, perguntou Ismail.

O religioso e xeque Ibrahim al Jufairi, que concorda com Ismail, disse que o Alcorão foi mal citado no tocante à questão do testemunho feminino nos tribunais da shariá. “Os versos que dizem que o testemunho de duas mulheres conta como um não é para todos os casos, mas apenas para quando um homem pede dinheiro a outro”, explico. “Uma delas é testemunha e a outra a ajuda lembrar algo que tenha esquecido”. Não passa disso. Al Jufairi integra há quase 10 anos a Sociedade Cultural Al Tajdid, cujos membros, pessoas com estudos e altos cargos públicos e privados, acreditam que o pensamento islâmico deve ser atualizado. “Infelizmente, a maioria dos eruditos não aceitam o testemunho das mulheres entre o aparecimento da lua no começo do mês sagrado do Ramada até seu termino, com a festividade de Eid”, afirmou. “É inaceitável. As mulheres são seres humanos com olhos e podem ver a lua como os homens”, acrescentou.

Quanto à tutela masculina, a professora da Universidade do Cairo Hiba Eizat assegurou que enquanto crente não pode aceitar que o Islã degrade as mulheres e as trate como objeto propriedade dos homens. “Muitos versos do Alcorão sofreram distorções e isso fica evidente quando os extremistas usam o livro sagrado para justificar seus atos desumanos”, disse Eizat. “Por que temos de deixar que os homens nos controlem. Só porque alguns negam às mulheres gozar de seus direitos, serem independentes e controlarem suas vidas”, ressaltou.

“O Islã promove seu desenvolvimento e por isso permite novas fatwas (decreto), mas, lamentavelmente, os que ditam essas ordens religiosas se opõem à evolução e às mudanças positivas”, disse Eizat. Se as mulheres não podem ocupar cargos de decisão, como presidente e juíza, “como é possível que nos primeiros tempos do Islã, antes da morte do profeta Maomé, foram aceitas suas fatwas e seus ensinamentos religiosos”, perguntou Eizat.

Os hádices (relatos atribuídos a Maomé) foram distorcidos propositalmente para controlar as mulheres, e muitos estudiosos muçulmanos são conscientes disso, afirmou o pesquisador de Barhein Jalal Al Ghasab. Em lugar de controlar as mulheres “para proteger a reputação do Islã, os muçulmanos devem questionar as velas fatwas e voltar a revisar as normas islâmicas e garantir o total poder feminino”, ressaltou. Mas, nem todos pensam igual. A conferencista Fatima Bosandal disse à IPS que o Alcorão e os hádices não podem ser separados.

“O Islã é claro a respeito da herança, da tutela e do peso do testemunho das mulheres nos tribunais, que se justifica pela frágil natureza feminina. Os homens são responsáveis por sustentá-las econômica e emocionalmente”, afirmou a conferencista. As tentativas de interpretações modernas do Alcorão obedecem a pressões do Ocidente sobre o mundo muçulmano com a intenção de frear a observância dos princípios islâmicos, ressaltou Bosandal.

Por IPS/Envolverde

Suad Hamada

Entrevista ao dirigente haitiano Henry Boisrolin


"O nosso povo continuará a resistir às tropas de ocupação das Nações Unidas"
Povo Hondurenho manifesta-se massivamente contra o golpe de estadoQue notícias há nos meios de comunicação sobre o Haiti e do seu povo mártir? Onde estão o respeito pelos Direitos Humanos e a pela soberania dos países? Que crimes têm praticado as tropas ocupantes agora comandadas pelo exército brasileiro? Quem julga os crimes delito comum dos soldados ocupantes?

Nesta entrevista de Carlos Aznarez com Henry Boisrolin, dirigente do Comité Democrático Haitiano, é dado um panorama da dramática situação do Haiti.


Carlos Aznárez* - Odiario.info

Há um país na América Latina, que não só foi o primeiro a libertar-se, como também ajudou que outras nações subjugadas pelos espanhóis acelerassem o caminho para a sua emancipação. Trata-se do mais esquecido e deplorado dos lugares do nosso continente: Haiti. É precisamente lá que se está desenvolvendo uma importante escalada de resistência popular, não só contra o mau governo de René Preval, mas também contra aqueles que afirmam estar em terra haitiana para colaborar com a sua população. Referimo-nos às tropas das Nações Unidas (MINUSTAH).

Mais concretamente, em finais de 2008, a MINUSTAH contava com a participação de 9.028 uniformizados (7.000 soldados e 2.019 polícias), apoiados por 502 funcionários internacionais, 1.197 funcionários nacionais e 205 voluntários da ONU, todos sob o comando de militares brasileiros.

Estas tropas mercenárias, entre as quais há argentinos, uruguaios, brasileiros, chilenos, bolivianos e de outros países, operam repressivamente contra a população haitiana e é por isso que vêm surgindo inúmeras denúncias que, geralmente, ficam pela total impunidade.

Um dos casos apresentados por organizações haitianas de direitos humanos, refere-se ao massacre ocorrido em 22 de Dezembro de 2006, na comunidade de Cité Soleil, depois de uma manifestação de cerca de dez mil pessoas, que exigiam o regresso do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide ao país e a retirada dos efectivos militares estrangeiros. Segundo relatos da população local e imagens de vídeos produzidos pela organização Haiti Information Project - HIP (Projecto de informação de Haiti) as forças da ONU atacaram a multidão e mataram cerca de 30 pessoas, incluindo mulheres e crianças.

Isto ocorre também num contexto de silêncio generalizado a nível informativo. O Haiti não conta para as crónicas dos jornais e muito menos para os écrans de televisão. O seu povo, não entra nas estatísticas populacionais. Todavia, apesar disso, o povo não se resigna a ser dominado, e luta.

Desta realidade e das suas consequências para a América Latina, falámos com o dirigente do Comité Democrático Haitiano, Henry Boisrolin, que recentemente chegou da capital haitiana onde esteve com a missão de reclamar a solidariedade urgente com quem hoje está à cabeça da resistência popular, os estudantes universitários e do secundário que se encontram, desde há meses, ocupando vários estabelecimentos de educação.

Carlos Aznárez (CA): - Qual é a situação do Haiti na actualidade?
Henry Boisrolin (HB): - O Haiti encontra-se ocupado, mas os media internacionais apresentam este facto com se se tratasse de «ajuda humanitária». Mesmo a própria Missão da ONU diz que é «para a estabilização do Haiti». Há um conjunto de 40 países que integram esta Missão e, infelizmente, temos tropas latino-americanas a ocupar o país. Como é sabido, o comando militar encontra-se sob a liderança do Brasil. Nós rejeitamos esta situação, porque entendemos que é uma violação da nossa auto-determinação, da nossa soberania e dignidade como povo.

A resistência vem de sectores distintos da população, mas ultimamente são os estudantes universitários, a que se juntam alguns das escolas secundárias, que têm ganhado as ruas para exigir a retirada das tropas e a promulgação duma lei sobre o salário mínimo, que foi votada pelo Parlamento. O que se passa é que o governo de Preval não a aceita, sob o pretexto de que se Haiti já tem 70% da sua população activa no desemprego, promulgar uma lei que significa aumentar de 1,7 a 4 ou 5 dólares o salário mínimo diário, «iria provocar uma avalanche de despedimentos que agravaria ainda mais a situação dos trabalhadores». Para os estudantes, esta resposta é uma nova falácia do governo, e vão lançar acções de resistência, ocupando várias Faculdades.

CA: - Como reagiu o governo de Preval?
HB: - Reprimindo os estudantes. Houve vários mortos e dezenas de detenções, professores perseguidos, lançadas bombas de gás lacrimogéneo e balas de chumbo sobre os manifestantes. A Missão das Nações Unidas foi acompanhar a polícia haitiana em toda essa tarefa repressiva. É isto que pretendemos denunciar e, ao mesmo tempo, pedir solidariedade para que os governos dos países sul-americanos percebam que não é essa a via, que Haiti não necessita de elementos militares. Do que nós precisamos é da ajuda que nos dão Cuba e Venezuela, é esse o modelo válido de apoio, de humanidade, de respeito pela nossa independência e soberania.

CA: - Vamos a ficar neste último tema. As tropas das Nações Unidas dizem que vão cumprir tarefas humanitárias. Pelo menos, é isso que explicam as chancelarias dos países que estão implicados nesta manobra, como a Argentina, o Uruguai, o Brasil e outros. Inclusivamente, alguns partidos progressistas encarregaram-se de explicar que «era melhor que se retirassem as tropas latino-americanas a que Haiti seja invadido pelos Estados Unidos». Que tem a dizer sobre essa questão?
HB: - Antes de mais nada, há que desmentir uma coisa: não houve nenhuma autoridade legítima do meu país que tivesse pedido a intervenção, isso é uma mentira. Em 2004, o ano do bicentenário da nossa independência, havia um presidente legítimo, que era Jean-Bertrand Aristide. Havia distúrbios no país e em nome dessa desculpa entrou um comando militar norte-americano, que sequestrou o presidente, meteram-no num avião e mandaram-no para o exílio na República Centro-Africana, e agora está na África do Sul. Uma acção muito semelhante aquilo que fizeram ao Presidente Zelaya. Não são casos isolados e abrem precedentes que ameaçam a segurança e a democracia no resto dos países latino-americanos.

Isto foi o que aconteceu, ninguém pediu tal intervenção. Impuseram um governo, que organizou as eleições e que deram a vitória a Preval, assim legitimando o golpe, igual ao que se passou agora nas Honduras.

É verdade que o presidente Preval, que venceu nos sufrágios, pediu a manutenção da MINUSTAH, mas, originalmente, não houve nenhuma autoridade haitiana que a tenha pedido.

Por outro lado, não porque Preval o tenha feito, tem que ser o sentimento do povo haitiano e essa é outra falácia. Há que ir a Haiti e andar nas ruas dos seus bairros mais populares, para compreender a recusa maioritária das pessoas à presença das tropas de ocupação.

CA: - Qual é a actuação das tropas invasoras?
HB: - A actuação das tropas das Nações Unidas ofende qualquer ser humano que tenha um pouco de sensibilidade. Num país, onde 70% da sua população activa não tem trabalho, onde temos uma taxa de mortalidade infantil superior a 80 por mil e uma taxa de analfabetismo, no campo, que supera os 70%, e que nas cidades é de 50%, e onde a esperança de vida não ultrapassa os 50 anos. Estamos a falar de um país com as suas estruturas económicas destruídas, onde 60% do seu orçamento provém de ajuda internacional e das remessas que enviam os haitianos que trabalham no estrangeiro. Por tudo isto, dizer que é preciso ir com tanques, aviões e helicópteros para resolver a situação, é totalmente falso e cruel.

Que fizeram estes «salvadores»? Violaram raparigas e mulheres haitianas, espancaram e torturaram os nossos jovens. Não somos nós que o dizemos, mas uma investigação da ONU confirmou esse facto, e a única coisa que se fez foi retirar alguns soldados e mandá-los para casa, porque segundo o Convénio da Resolução 545, que permitiu a entrada das tropas no dia 1 de Junho de 2004, Haiti não tem o direito de julgar nenhum militar estrangeiro, mesmo que tenha cometido crimes contra a humanidade. Mais submissão que isto não pode existir. E há que dizer, que há soldados do Sri Lanka, do Uruguai e de outros países, acusados destes abusos.

CA: - Ou seja, violações dos direitos humanos realizados no âmbito de uma "legalidade" imposta, que permite mais impunidade.
HB: - Exacto. Todavia há outro tema que desejo abordar e que às vezes fica postergado porque aprofundamos mais o estudo da realidade política ou económica de um país. Refiro-me à dignidade humana, o valor da relação e dos sentimentos humanos, o contacto entre os povos. Quer dizer, uma história em comum. Haiti, depois de se tornar independente, concedeu uma solidariedade efectiva a muitos povos latino-americanos, ajudou a Francisco Miranda, a Bolívar, em duas ocasiões, com espingardas, dinheiro e outros abastecimentos, mas, fundamentalmente, com voluntários. Centenas de haitianos morreram pela independência da Venezuela e de outros países. Por isso dizemos, que receber este tratamento actual é uma afronta à história. O nosso povo não cometeu nenhum crime, apenas pediu mais justiça. E sofremos o comportamento mercenário, pois muitos destes invasores vêm pelo dinheiro, ganham milhares de dólares sem gastar absolutamente nada. Em seis ou sete meses que ali permanecem, voltam aos seus respectivos países bem recheados de dinheiro, situação que não podem ter nos seus lugares de origem.

Então, aproveitando um momento de debilidade, de falta de capacidade do movimento popular haitiano para inverter a situação, vieram e avassalaram o Haiti…

Vemos, por exemplo, em Puerto Princípe, nalguns bairros menos pobres, como pela noite (não há praticamente vida nocturna em Haiti, não há luz, nem os serviços que há noutros países) se vê um contínuo desfilar de automóveis das Nações Unidas à frente dos melhores bares e restaurantes, gastando muitos dólares, e, nas redondezas, o povo a dormir nas ruas.

CA: - É realmente ofensivo e indigno...
HB: - Isto obriga à reflexão, porque temos ouvido dizer a alguns governos, quando passam os furacões ou acontecem outras acções climáticas, que as tropas estão lá precisamente para nos ajudar nos maus momentos. Mas isso não é determinante, nem mais ou menos. A ocupação de Haiti é um novo esquema para vergar a rebelião popular, num país onde as classes dominantes não têm alguma possibilidade de ganhar eleições através de processos limpos. Então, é preciso impor, pela força das armas, uma estratégia de domínio. É esse o verdadeiro papel dos ocupantes. E para aqueles que dizem que «é melhor essas tropas em vez das dos Estados Unidos», nós dizemos o contrário, pois dessa forma teríamos de frente o inimigo de maneira mais clara. Por outro lado, é duríssimo ver irmãos latino-americanos, enviados por governos que deveriam ter outro tipo de comportamento para com o drama haitiano. Estive em bairros populares que foram muito castigados por estas tropas e ouvi o que dizia o coração dessa gente. A indignação, com que contam como os bombardeiam de madrugada, nestes bairros, para querer apanhar supostos bandidos. Ou quando os soldados entram em tropel, e dão pontapés nas portas, arrastando para fora os aterrorizados habitantes. Por isso, não há lugar a mais mentiras: trata-se de uma ocupação desavergonhada e clara da República do Haiti e na medida que esta situação continue haverá mais resistência.


Este texto foi publicado em Resumen Latinoamericano


* Carlos Aznárez é jornalista argentino e director de Resumen Latinoamericano. Henry Boisrolin é dirigente do Comité Democrático Haitiano



Tradução de João Pinheiro