A direita, enfim, achou o seu candidato
Depois do Mercosul, o novo alvo de Serra é a Bolívia. Para azar
do pré-candidato tucano e sorte do Brasil e do mundo, a era Bush chegou
ao fim. Algum assessor com um mínimo de lucidez e informação bem que
poderia avisá-lo das mudanças que estão em curso no mundo. Mas se o
ex-governador de São Paulo decidiu abraçar por inteiro a agenda da
direita no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos, faz sentido
ele lutar pela restauração da velha ordem. Pode-se dizer, então, que,
enfim, a direita achou um candidato à presidência do Brasil.
Editorial – Carta Maior
“A questão”, ponderou Alice, “é saber se o senhor pode fazer as
palavras dizerem tantas coisas diferentes”.
“A questão”, replicou Humpty Dumpty, “é saber quem é que manda. É
só isso”.
Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas (cap.6).
Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas (cap.6).
As declarações do ex-governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB
à presidência da República, José Serra, acusando o governo boliviano
de ser “cúmplice de traficantes”, além de levianas e irresponsáveis,
podem acabar se voltando contra o próprio autor. Pela lógica da
argumentação de Serra, não seria possível a exportação de cocaína a
partir da Bolívia sem a conivência e/ou participação das autoridades
daquele país. Bem, se é assim, alguém poderia dizer também que Serra é
cúmplice do PCC (Primeiro Comando da Capital), da violência e do
tráfico de drogas em São Paulo. “Você acha que toda violência e tráfico
de drogas em São Paulo seria possível se o governo de lá não fosse
cúmplice?” – poderia perguntar alguém, parafraseando Serra.
Neste mesmo contexto, cabe lembrar ainda as declarações do
traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia, preso em 2007 no
Brasil, que, em um depoimento à Justiça Federal em São Paulo, disse:
“Para acabar com o tráfico de drogas em São Paulo, basta fechar o
Denarc (Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos)”. As
denúncias de um traficante valem o que ele vale. Neste caso valeram, ao
menos, o interesse da Justiça Federal em investigar a possibilidade de
ligação entre o tráfico de drogas e a corrupção policial,
possibilidade esta que parece não habitar o horizonte de Serra. O
pré-candidato foi governador de São Paulo, mas afirma não ter nada a
ver com isso. A culpa é da Bolívia.
Há método na aparente loucura do pré-candidato do PSDB. O fato de
ter repetido as acusações levianas contra o governo de um país vizinho –
e amigo, sim – do Brasil mostra que Serra acredita que pode ganhar
votos com elas. Trata-se de um comportamento que revela traços
interessantes da personalidade do pré-candidato e da estratégia de sua
candidatura. Em primeiro lugar, mostra uma curiosa seletividade
geográfica: em sua diatribe contra governos latino-americanos, Serra
esqueceu de acusar a Colômbia como “cúmplice do narcotráfico”.
Esquecimento, na verdade, que expõe mais ainda o caráter leviano da
estratégia. Trata-se, simplesmente, de atacar governos considerados
“amigos” do governo brasileiro.
Em segundo lugar, mostra uma postura irresponsável do pré-candidato,
tomando a palavra aí em seu sentido literal, a saber, aquele que não
responde por seus atos. Antes de apontar o dedo acusador para o governo
de um país vizinho, Serra poderia visitar algumas ruas localizadas no
centro velho de São Paulo que foram tomadas por traficantes e
dependentes de drogas. Serra já ouviu falar da Cracolândia? Junto com a
administração Kassab, um governo amigo como gosta de dizer, fez alguma
coisa para resolver o problema? Imagine, Sr. Serra, 200 pessoas sob o
efeito do crack gritando sob a sua janela, numa madrugada interminável …
Surreal? Na Cracolância é normal. E isso ocorre na sua cidade, não na
Bolívia. Ocorre na capital do Estado onde o senhor foi eleito para
governar e trabalhar para resolver, entre outros, esse tipo de
problema. Mas é mais fácil, claro, acusar outro país pelo problema,
ainda mais se esse outro país for governado por um índio.
E aí aparece o terceiro e mais perverso traço da estratégia de
Serra: um racismo mal dissimulado. Quem decide apostar na estratégia do
vale-tudo para ganhar um voto não hesita em dialogar com toda sorte de
preconceito existente em nossa sociedade. Acusar o governo de Evo
Morales de ser cúmplice do tráfico, além de ignorar criminosamente os
esforços feitos atualmente pelo governo boliviano para combater o
tráfico, aposta na força do preconceito contra Evo Morales, que já se
manifestou várias vezes na imprensa brasileira por ocasião das disputas
envolvendo o gás boliviano. Apostando neste imaginário perverso, acusar
um índio boliviano de ser cúmplice do tráfico de drogas parece ser
“mais negócio” do que acusar um branco de classe média que sabe usar
boas gravatas. Alguém com Álvaro Uribe, por exemplo…
E, em quarto, mas não menos importante lugar, as declarações do
pré-candidato tucano indicam um retrocesso de proporções gigantescas na
política externa brasileira, caso fosse eleito presidente da
República. Mais uma vez aqui, há método na loucura tucana. Não é por
acaso que essas declarações surgem no exato momento em que o Brasil
desponta como um ator de peso na política global, defendendo o caminho
do diálogo e da negociação ao invés da via das armas, da destruição e
da morte. Como assinala José Luís Fiori em artigo publicado nesta página:
A mensagem foi clara: o Brasil quer ser uma potencia global e
usará sua influência para ajudar a moldar o mundo, além de suas
fronteiras. E o sucesso do Acordo já consagrou uma nova posição de
autonomia do Brasil, com relação aos Estados Unidos, Inglaterra e
França (…) O jornal O Globo foi quem acertou em cheio, ao prever – com
perfeita lucidez – na véspera do Acordo, que o sucesso da mediação do
presidente Lula com o Irã projetaria o Brasil, definitivamente, no
cenário mundial. O que de fato aconteceu, estabelecendo uma
descontinuidade definitiva com relação à política externa do governo
FHC, que foi, ao mesmo tempo, provinciana e deslumbrada, e submissa aos
juízos e decisões estratégicas das grandes potências.
As últimas linhas do texto de Fiori resumem o que está por trás da
estratégia de Serra de chamar o Mercosul de “farsa”, de acusar o
governo da Bolívia de cumplicidade com o tráfico, de criticar a
iniciativa do governo brasileiro em ajudar a evitar uma nova guerra no
Oriente Médio. Curiosa e tristemente, essa estratégia, entre outros
lamentáveis problemas, sofre de um atraso histórico dramático. Para
azar de Serra e sorte do Brasil e do mundo, a doutrina Bush chegou ao
fim. No dia 27 de maio, o governo dos EUA anunciou sua nova doutrina de
segurança nacional que abandonou o conceito de “guerra preventiva”
como elemento definidor da estratégia da política externa
norte-americana. Algum assessor com um mínimo de lucidez e informação
bem que poderia avisar ao pré-candidato tucano das
mudanças que estão em curso no mundo, especialmente do final da era Bush. Mas se ele decidiu abraçar por inteiro a agenda da direita no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos, faz sentido lutar pela restauração da velha ordem. Pode-se dizer, então, que, enfim, a direita achou um candidato à presidência do Brasil.
mudanças que estão em curso no mundo, especialmente do final da era Bush. Mas se ele decidiu abraçar por inteiro a agenda da direita no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos, faz sentido lutar pela restauração da velha ordem. Pode-se dizer, então, que, enfim, a direita achou um candidato à presidência do Brasil.