No momento em que Brasil debate sua (des)industrialização, vale assistir à cinebiografia do grande pensador que sonhou além dos números
Por Arlindenor Pedro no OUTRAS PALAVRAS|Imagem: Diego Rivera,Pintura de um afresco
Gosto muito do gênero cinebiografia, a que muitos cineastas brasileiros e estrangeiros vêm-se dedicando nos últimos tempos. Registram a vida e produção de escritores, políticos, militares, artistas – gente que de alguma forma desenvolveu atividades que despertam interesse de muitos.
São produções mais apropriadas para DVDs: devem ser assistidas devagar, com atenção, em ambiente próprio para rever trechos e refletir sobre eles. Neste aspecto, diferem dos filmes do cinema de ficção – que requerem o calor emotivo das grandes casas de exibição.
Assisti recentemente a obra cinebiográfica que o diretor José Mariano fez sobre o economista Celso Furtado. Teve o nome de O Longo Amanhecer, título de uma de suas obras – um livro de ensaios sobre a formação do Brasil, publicado em 1999.
Relata vida e pensamento desse grande brasileiro, paraibano de Pombal e um dos grandes intelectuais do século XX, como diria o professor Francisco de Oliveira, seu amigo e colaborador de longa data. “Celso Furtado está no panteão dos demiurgos do pensamento nacional, dos inventores do que a gente pensa hoje sobre o Brasil”, escreveu ele. Já a professora Maria da Conceição Tavares, consideram Furtado “o único grande pensador brasileiro do século XX”.
Uma entrevista com Celso, realizada quatro meses antes de sua morte (em 2004), serve como roteiro e fio condutor do documentário. Também comparecem, em depoimento, pensadores que conviveram com ele. Levantam problemas que subsistem depois de longas décadas e exigem reflexão mais acurada.
Sugiro, ao leitor que ainda não viu o filme, começar pelos extras, onde essas questões são apresentadas de forma a compor um pano de fundo, um cenário onde as ideias e ações de Celso Furtado se desenvolveram. Está organizado na seguinte ordem: 1.Sobre Celso Furtado; 2. A Revolução de 1930; 3. O pós-guerra; 4. Segundo governo Getulio Vargas; 5. O governo JK; 6. A Sudene; 7. O governo João Goulart; 8. A revolução de 1964 e 9. Sobre a Ciência Econômica. Intelectuais e políticos como Francisco de Oliveira, Helio Jaguaribe, Maria Ieda Linhares, Alzira Abreu, Bresser Pereira, José Serra, Leite Lopes, Pedro Malan, Otavio Rodrigues e Ricardo Bielschowsky opinam sobre tais temas, abordando-os de forma crítica e contextualizando-os em seu quadro histórico e político.
Além das intervenções desse conjunto de pensadores sobre momentos decisivos da vida nacional, destaco um debate sobre o caráter da Economia – se é ciência, ou não; e sobre a posição de Celso Furtado a esse respeito.
Embora possa parecer bizantina, a discussão reveste-se de extrema importância, devido à influência cada vez mais vasta da Economia sobre nossas vidas. Ao contrário de muitos pensadores da atualidade, Celso Furtado a encarava como uma ciência – social e histórica. Ele a via, portanto, com olhar ideológico muito definido, dentro de um determinado contexto histórico. Servia-se dela para intervir na realidade social. Sua maior obra, Formação Econômica do Brasil, é considerada um clássico nas ciências econômicas. Publicada em janeiro de 1959, analisa a economia brasileira num contexto histórico em movimento, onde não se chega nunca a um final. E é ele mesmo quem o diz, em sua entrevista: “nunca procurei chegar a um final no meu livro. Trata-se de uma obra inacabada, própria da economia, própria da história”.
Nas ultimas décadas, em um mundo totalmente globalizado e interdependente, a Economia desenvolveu estruturas tão poderosas de intervenção na vida social que teria subjugado as demais ciências, moldando o mundo às suas concepções. Perdeu, então, seu caráter histórico transformador, realizando-se como instrumento perpetuador e maximizador do mundo articulado pela burguesia liberal contemporânea.
Nesse quadro, o homem contemporâneo está totalmente dominado pelos preceitos econômicos. Não pode viver sem levar em conta os caminhos traçados pelos economistas. Uma oscilação em bolsa de valores, do outro lado do mundo, pode alterar completamente a sua vida. O mercado rege sua postura. Desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, está submetido aos seus desígnios, abrindo mão de uma existência criativa em troca de um vida-não-vivida, de um mundo artificial.
Mais do que isso: mesmo os seus sonhos serão moldados pelas estruturas econômicas. Todo o processo de vida social e individual é submetido à banalidade terrível do dinheiro e do seu desenvolvimento tautológico. Em sua superfície, está a famosa economia de mercado. Exige profissionais altamente qualificados para decifrar e operar suas estruturas, num processo técnico anti-histórico, repetitivo que não busca chegar a lugar algum. Tais profissionais, súditos de uma máquina infernal, não teriam, pois, qualquer sentimento ou paixão, operando apenas para a reprodução do capital na sua escala mais transcendental: de forma mecânica e definida globalmente.
A respeito de tal fenômeno, Francisco de Oliveira, em seu depoimento, diz: “Os modernos cientistas sociais, entre os quais se incluem os economistas, não têm paixão por causa nenhuma. Eles são inteiramente de-solidários com os destinos nacionais”. (…) Os teóricos dos anos do início da modernidade eram todos pensadores apaixonados. Estavam de um certo lado da história. Celso, a esse respeito, é um dos mais emblemáticos. Ele está decididamente no lado de alguma causa e não olha a história com a indiferença de um cientista normal. (…) Tensão entre teoria e história, é o que sua obra tem. Está presente em todos os outros clássicos, mas nele é permanente: a história é teoria e a teoria é a história. É diferente de um economista de hoje, que pega as variantes, modela e acha que dali sai algum resultado. Não tem história. Não tem especificidade. (…) Se você pegar a formulação de qualquer economista que está ai formulando política para o governo brasileiro hoje é igual a que se encontrará em qualquer país. Sumiu a história”.
No desenrolar do documentário, além da preciosa entrevista de um Celso Furtado já combalido pela doença que o irá vitimar mais adiante (mas que, a despeito disso, ainda mostra-se lúcido e capaz de desenvolver com maestria os fundamentos de sua teoria), destaca-se também a economista Maria da Conceição Tavares. Com a emoção que lhe é peculiar – ainda mais, tratando-se de um mestre por quem ela nutria profundo respeito – contagia e nos convida a mergulhar nos fundamentos teóricos de sua vastíssima obra. Além dela e de Chico de Oliveira, cientistas como João Manuel Cardoso de Mello, Antonio Barros de Castro e Oswaldo Sunkel opinam, num roteiro desenvolvido por Ricardo Bielschowsky, que nos leva a conhecer a profundidade teórica de um Celso Furtado entusiasta do desenvolvimento brasileiro.
João Manuel Cardoso de Melo sustenta que Celso Furtado sempre foi um reformista – isto é, acreditava que, por meio de reformas profundas nas estruturas brasileiras, seria possível vencer as condições que impediam o país de superar o subdesenvolvimento. Celso definia-se como um cientista. Pensava que seu forte era conseguir captar o essencial da realidade através da análise, teorizando-a para que fosse transformada, reformada.
Celso Furtado foi influenciado pela herança keynesiana, segundo a qual o estado era um ator decisivo na garantia do bem estar social. Após passar a guerra na Europa e presenciar a reconstrução do continente ao fim do conflito, ele retorna ao Brasil com grandes ideias de mudança da sociedade, tendo o estado como força motriz, e o planejamento como meio de ação. Agrega-se, então, à equipe da Cepal, dirigida por Raúl Prebisch. Este economista argentino, conhecido articulador do pensamento das economias periféricas, havia contextualizado a teoria da relação entre centro e periferia. Prebisch dizia: “o mundo está composto por países centrais, que (…) produzem manufaturas e controlam as inovações tecnológicas, que está consubstanciada com a manufatura; e os países periféricos, que exportam matérias-primas e consomem os bens manufaturados desses países”. Propunha superar essa dicotomia centro-periferia. Orientado por tal objetivo, criou o pensamento cepalino, que teve em Celso um dos mais brilhantes formuladores.
Furtado defendia a industrialização do Brasil, como forma de conter o fluxo de riquezas que se esvaíam para o exterior, mantendo-nos sempre na posição de subalternos. Conseguiu influenciar o segundo governo de Vargas e, mais adiante, os governos JK e João Goulart. Seu entusiasmo, e a clareza com que defendia suas ideias, contagiaram esses presidentes, que se esforçavam por tê-lo como elemento auxiliar em seus governos.
A ideias de Celso e de muitos de seus companheiros e seguidores foram esmagadas pela grande tragédia do golpe militar de 1964. O documentário dedica um capítulo à parte para esse episódio da vida nacional. É, ao lado da Revolução de 1930, um dos mais importantes da nossa história recente. Em 1930, libertaram-se as forças internas contidas pelo sistema agrário anacrônico, lançando-se o país na modernidade; em 1964, estas mesmas forças antes libertadas foram contidas e esmagadas, por acalentarem a utopia de conduzir o país a um processo desenvolvimentista independente, permitindo-lhe emergir, na terceira revolução industrial, em pé de igualdade com o chamado “primeiro mundo”.
Acredito que a tragédia de um assassinato não se dá em eliminar uma vida e o que ela foi, mas o que ela poderia ser. A morte prematura do governo João Goulart foi a ruptura com um futuro que poderia ser, mas não foi. Restou um vazio que até hoje não pode ser preenchido, a despeito das afirmações megalomaníacas dos últimos governos, que se apresentam como se a história brasileira estivesse começando agora. O prejuízo causado pelo golpe de 1964, não foi, até hoje, devidamente dimensionado. Não só pelas vidas ceifadas, mas por ter eliminado no nascedouro as utopias de um Brasil independente, solidário e criativo.
As ideias de Celso Furtado se perderam. Mesmo no processo de redemocratização, nos governos subsequentes, sua voz não foi mais levada em consideração. Por isso, o documentário pareceu-me denso mas, ao mesmo tempo, triste. Tanto os depoimentos apaixonados, a firmeza emotiva de Maria da Conceição Tavares, quanto as intervenções precisas de Francisco de Oliveira, lembram essa oportunidade perdida. O olhar do professor, circundado pela atmosfera da fotografia de Guy Gonçalves e música incidental de Aluisio Didier, ao abrir o filme, diz tudo. Uma bela obra para assistir e refletir!
Arlindenor Pedro é professor de história e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.
Contato: arlindenor@newageconsultores.com.br