terça-feira, 27 de março de 2012

Celso Furtado: Economia para a liberdade


No momento em que Brasil debate sua (des)industrialização, vale assistir à cinebiografia do grande pensador que sonhou além dos números



Por Arlindenor Pedro no OUTRAS PALAVRAS|Imagem: Diego Rivera,Pintura de um afresco 

Gosto muito do gênero cinebiografia, a que muitos cineastas brasileiros e estrangeiros vêm-se dedicando nos últimos tempos. Registram a vida e produção de escritores, políticos, militares, artistas – gente que de alguma forma desenvolveu atividades que despertam interesse de muitos.
São produções mais apropriadas para DVDs: devem ser assistidas devagar, com atenção, em ambiente próprio para rever trechos e refletir sobre eles. Neste aspecto, diferem dos filmes do cinema de ficção – que requerem o calor emotivo das grandes casas de exibição.
Assisti recentemente a obra cinebiográfica que o diretor José Mariano fez sobre o economista Celso Furtado. Teve o nome de O Longo Amanhecer, título de uma de suas obras – um livro de ensaios sobre a formação do Brasil, publicado em 1999.
Relata vida e pensamento desse grande brasileiro, paraibano de Pombal e um dos grandes intelectuais do século XX, como diria o professor Francisco de Oliveira, seu amigo e colaborador de longa data. “Celso Furtado está no panteão dos demiurgos do pensamento nacional, dos inventores do que a gente pensa hoje sobre o Brasil”, escreveu ele. Já a professora Maria da Conceição Tavares, consideram Furtado “o único grande pensador brasileiro do século XX”.
Uma entrevista com Celso, realizada quatro meses antes de sua morte (em 2004), serve como roteiro e fio condutor do documentário. Também comparecem, em depoimento, pensadores que conviveram com ele. Levantam problemas que subsistem depois de longas décadas e exigem reflexão mais acurada.
Sugiro, ao leitor que ainda não viu o filme, começar pelos extras, onde essas questões são apresentadas de forma a compor um pano de fundo, um cenário onde as ideias e ações de Celso Furtado se desenvolveram. Está organizado na seguinte ordem: 1.Sobre Celso Furtado; 2. A Revolução de 1930; 3. O pós-guerra; 4. Segundo governo Getulio Vargas; 5. O governo JK; 6. A Sudene; 7. O governo João Goulart; 8. A revolução de 1964 e 9. Sobre a Ciência Econômica. Intelectuais e políticos como Francisco de Oliveira, Helio Jaguaribe, Maria Ieda Linhares, Alzira Abreu, Bresser Pereira, José Serra, Leite Lopes, Pedro Malan, Otavio Rodrigues e Ricardo Bielschowsky opinam sobre tais temas, abordando-os de forma crítica e contextualizando-os em seu quadro histórico e político.
Além das intervenções desse conjunto de pensadores sobre momentos decisivos da vida nacional, destaco um debate sobre o caráter da Economia – se é ciência, ou não; e sobre a posição de Celso Furtado a esse respeito.
Embora possa parecer bizantina, a discussão reveste-se de extrema importância, devido à influência cada vez mais vasta da Economia sobre nossas vidas. Ao contrário de muitos pensadores da atualidade, Celso Furtado a encarava como uma ciência – social e histórica. Ele a via, portanto, com olhar ideológico muito definido, dentro de um determinado contexto histórico. Servia-se dela para intervir na realidade social. Sua maior obra, Formação Econômica do Brasil, é considerada um clássico nas ciências econômicas. Publicada em janeiro de 1959, analisa a economia brasileira num contexto histórico em movimento, onde não se chega nunca a um final. E é ele mesmo quem o diz, em sua entrevista: “nunca procurei chegar a um final no meu livro. Trata-se de uma obra inacabada, própria da economia, própria da história”.
Nas ultimas décadas, em um mundo totalmente globalizado e interdependente, a Economia desenvolveu estruturas tão poderosas de intervenção na vida social que teria subjugado as demais ciências, moldando o mundo às suas concepções. Perdeu, então, seu caráter histórico transformador, realizando-se como instrumento perpetuador e maximizador do mundo articulado pela burguesia liberal contemporânea.
Nesse quadro, o homem contemporâneo está totalmente dominado pelos preceitos econômicos. Não pode viver sem levar em conta os caminhos traçados pelos economistas. Uma oscilação em bolsa de valores, do outro lado do mundo, pode alterar completamente a sua vida. O mercado rege sua postura. Desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, está submetido aos seus desígnios, abrindo mão de uma existência criativa em troca de um vida-não-vivida, de um mundo artificial.
Mais do que isso: mesmo os seus sonhos serão moldados pelas estruturas econômicas. Todo o processo de vida social e individual é submetido à banalidade terrível do dinheiro e do seu desenvolvimento tautológico. Em sua superfície, está a famosa economia de mercado. Exige profissionais altamente qualificados para decifrar e operar suas estruturas, num processo técnico anti-histórico, repetitivo que não busca chegar a lugar algum. Tais profissionais, súditos de uma máquina infernal, não teriam, pois, qualquer sentimento ou paixão, operando apenas para a reprodução do capital na sua escala mais transcendental: de forma mecânica e definida globalmente.
A respeito de tal fenômeno, Francisco de Oliveira, em seu depoimento, diz: “Os modernos cientistas sociais, entre os quais se incluem os economistas, não têm paixão por causa nenhuma. Eles são inteiramente de-solidários com os destinos nacionais”. (…) Os teóricos dos anos do início da modernidade eram todos pensadores apaixonados. Estavam de um certo lado da história. Celso, a esse respeito, é um dos mais emblemáticos. Ele está decididamente no lado de alguma causa e não olha a história com a indiferença de um cientista normal. (…) Tensão entre teoria e história, é o que sua obra tem. Está presente em todos os outros clássicos, mas nele é permanente: a história é teoria e a teoria é a história. É diferente de um economista de hoje, que pega as variantes, modela e acha que dali sai algum resultado. Não tem história. Não tem especificidade. (…) Se você pegar a formulação de qualquer economista que está ai formulando política para o governo brasileiro hoje é igual a que se encontrará em qualquer país. Sumiu a história”.
No desenrolar do documentário, além da preciosa entrevista de um Celso Furtado já combalido pela doença que o irá vitimar mais adiante (mas que, a despeito disso, ainda mostra-se lúcido e capaz de desenvolver com maestria os fundamentos de sua teoria), destaca-se também a economista Maria da Conceição Tavares. Com a emoção que lhe é peculiar – ainda mais, tratando-se de um mestre por quem ela nutria profundo respeito – contagia e nos convida a mergulhar nos fundamentos teóricos de sua vastíssima obra. Além dela e de Chico de Oliveira, cientistas como João Manuel Cardoso de Mello, Antonio Barros de Castro e Oswaldo Sunkel opinam, num roteiro desenvolvido por Ricardo Bielschowsky, que nos leva a conhecer a profundidade teórica de um Celso Furtado entusiasta do desenvolvimento brasileiro.
João Manuel Cardoso de Melo sustenta que Celso Furtado sempre foi um reformista – isto é, acreditava que, por meio de reformas profundas nas estruturas brasileiras, seria possível vencer as condições que impediam o país de superar o subdesenvolvimento. Celso definia-se como um cientista. Pensava que seu forte era conseguir captar o essencial da realidade através da análise, teorizando-a para que fosse transformada, reformada.
Celso Furtado foi influenciado pela herança keynesiana, segundo a qual o estado era um ator decisivo na garantia do bem estar social. Após passar a guerra na Europa e presenciar a reconstrução do continente ao fim do conflito, ele retorna ao Brasil com grandes ideias de mudança da sociedade, tendo o estado como força motriz, e o planejamento como meio de ação. Agrega-se, então, à equipe da Cepal, dirigida por Raúl Prebisch. Este economista argentino, conhecido articulador do pensamento das economias periféricas, havia contextualizado a teoria da relação entre centro e periferia. Prebisch dizia: “o mundo está composto por países centrais, que (…) produzem manufaturas e controlam as inovações tecnológicas, que está consubstanciada com a manufatura; e os países periféricos, que exportam matérias-primas e consomem os bens manufaturados desses países”. Propunha superar essa dicotomia centro-periferia. Orientado por tal objetivo, criou o pensamento cepalino, que teve em Celso um dos mais brilhantes formuladores.
Furtado defendia a industrialização do Brasil, como forma de conter o fluxo de riquezas que se esvaíam para o exterior, mantendo-nos sempre na posição de subalternos. Conseguiu influenciar o segundo governo de Vargas e, mais adiante, os governos JK e João Goulart. Seu entusiasmo, e a clareza com que defendia suas ideias, contagiaram esses presidentes, que se esforçavam por tê-lo como elemento auxiliar em seus governos.
A ideias de Celso e de muitos de seus companheiros e seguidores foram esmagadas pela grande tragédia do golpe militar de 1964. O documentário dedica um capítulo à parte para esse episódio da vida nacional. É, ao lado da Revolução de 1930, um dos mais importantes da nossa história recente. Em 1930, libertaram-se as forças internas contidas pelo sistema agrário anacrônico, lançando-se o país na modernidade; em 1964, estas mesmas forças antes libertadas foram contidas e esmagadas, por acalentarem a utopia de conduzir o país a um processo desenvolvimentista independente, permitindo-lhe emergir, na terceira revolução industrial, em pé de igualdade com o chamado “primeiro mundo”.
Acredito que a tragédia de um assassinato não se dá em eliminar uma vida e o que ela foi, mas o que ela poderia ser. A morte prematura do governo João Goulart foi a ruptura com um futuro que poderia ser, mas não foi. Restou um vazio que até hoje não pode ser preenchido, a despeito das afirmações megalomaníacas dos últimos governos, que se apresentam como se a história brasileira estivesse começando agora. O prejuízo causado pelo golpe de 1964, não foi, até hoje, devidamente dimensionado. Não só pelas vidas ceifadas, mas por ter eliminado no nascedouro as utopias de um Brasil independente, solidário e criativo.
As ideias de Celso Furtado se perderam. Mesmo no processo de redemocratização, nos governos subsequentes, sua voz não foi mais levada em consideração. Por isso, o documentário pareceu-me denso mas, ao mesmo tempo, triste. Tanto os depoimentos apaixonados, a firmeza emotiva de Maria da Conceição Tavares, quanto as intervenções precisas de Francisco de Oliveira, lembram essa oportunidade perdida. O olhar do professor, circundado pela atmosfera da fotografia de Guy Gonçalves e música incidental de Aluisio Didier, ao abrir o filme, diz tudo. Uma bela obra para assistir e refletir!


Arlindenor Pedro é professor de história e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.
Contato: arlindenor@newageconsultores.com.br

Stratfor dentro do Palácio: que é isso, Dilma?


 
Por Natalia Viana, Willian Vieira, Luiza Bodenmüller e Jessica Mota, da Pública

Atual diretora de análise da Stratfor, a americana Reva Bhalla não precisou gastar um tostão, grampear telefones ou pagar propinas para conseguir fácil acesso ao alto escalão da inteligência brasileira.
Em 6 de janeiro de 2011, segundo documentos internos da empresa analisados pela Agência Pública e pela Carta Capital, Bhalla foi recebida com entusiasmo pelo gabinete do ministro-chefe do GSI, o general José Elito Siqueira, menos de um mês depois de chegar ao País para sua missão em nome da Stratfor.
Mais do que ser bem recebida, Bhalla obteve informações confidenciais de funcionários do GSI que são negadas até mesmo aos brasileiros.
No seu relato, ela diz ter sido levada à chamada “sala de situação”, local onde militares e agentes de inteligência se reunem com a presidência em caso de crises de segurança nacional. “Eu tive a impressão de que o Brasil não tem que lidar com esse tipo de questão com muita freqüência. Eles disseram que durante o governo Lula eles se reuniram 64 vezes. Havia mapas muito legais por todo o lugar. Eles me deram de presente um lindo mapa do mundo com Brasilia ao centro (muito ambicioso? Ahaha)”, escreve.
O contato, segundo ela, teria sido armado por um “amigo diplomata” que estaria trabalhando no escritório da própria presidenta, diz ela, sem identificar o nome. “Todos, inclusive o General Elito Sequeiro (sic) -  o chefe do GSI, o qual eu encontrei mais tarde no seu escritório, conhecem e lêem os relatórios da Stratfor regularmente. Eles estavam, literalmente, me dizendo sobre as notícias da Stratfor que haviam lido nesta manhã, e que quase todos ali eram membros”.
Animada com o “tour completo” que recebeu do palácio presidencial, Bhalla chegou à sala da presidenta Dilma Rousseff – mas ela estava numa reunião. “Eu queria dizer ‘olá’ em nome da Stratfor”.
A analista relata ter conversado longamente com o secretario-adjunto José Antônio Macedo Soares, cujo nome chegou a ser cotado pelo Palácio do Planalto para assumir a direção da Abin. Segundo seu relato, ele lhe explicou tranquilamente que o Brasil se esforça para não atrair atenção para si mesmo como palco de ações ligadas ao terrorismo. “Como Macedo Soares me disse, nós capturamos vários ‘terroristas’ em São Paulo – pessoas da Al Qaeda, Hezbollah, e até pessoas ligadas aos ataques de 11 de setembro. Mas nós não queremos nos vangloriar por isso e  não queremos atenção. Isso não serve aos nossos interesses e não queremos que os EUA nos empurre para esse assunto’”, escreve.
A informação, prontamente repassada para a rede de analistas da Stratfor, confirma uma revelação feita pelo WikiLeaks em 2010, nos primeiros documentos diplomáticos sobre o Brasil publicados pela organização. Os despachos traziam o então embaixador dos Estados Unidos em Brasília, Clifford Sobel, a dizer, ainda em 2008, que a Polícia Federal “frequentemente prende pessoas ligadas ao terrorismo, mas os acusa de uma variedade de crimes não relacionados a terrorismo para evitar chamar a atenção da imprensa e dos altos escalões do governo”. O mesmo telegrama de Sobel cita dois exemplos. Em 2007, a PF teria capturado um potencial facilitador terrorista sunita que operava primordialmente em Santa Catarina sob acusação de entrar no País sem declarar fundos – e estaria trabalhando pela sua deportação. A operação Byblos, que desmantelou uma quadrilha de falsiftcação de documentos brasileiros no Rio de Janeiro para os libaneses também é citada como exemplo de operação de contra-terrorismo.
Histórias sobre prisões de suspeitos de terrorismo no Brasil haviam pipocado antes do vazamento dos documentos diplomáticos. Em maio de 2009, a PF prendeu um libanês acusado de propagar pela internet material racista. À época, o colunista da Folha Jânio de Freitas escreveu que, para preservar o sigilo, a PF atribuiu a prisão, inclusive internamente, a uma investigação sobre células de neonazistas, enquanto o libanês seria na verdade suspeito de ligação com a Al Qaeda. Quase um mês depois, o Gabinete da Segurança Institucional da Presidência criou um grupo de prevenção e combate ao terrorismo, com a finalidade oficial de exercer o “acompanhamento de assuntos pertinentes ao terrorismo internacional e de ações” para “a sua prevenção e neutralização”.
Foi exatamente no GSI e com funcionários do órgão que Bhalla teve reuniões pessoais que renderam relatórios de inteligência privada, para alimentar os boletins a clientes no mundo todo.
Naquele encontro, ela teria perguntado ainda sobre a capacidade do GSI em vigiar e capturar esses ‘terroristas’. “A resposta não me pareceu tão confiante assim. Ele disse basicamente que isso é muito difícil. São Paulo tem uma população estrangeira muito grande. Fronteiras são difíceis de controlar: essa é a atitude brasileira em relação a isso”. Segundo a analista, eles teriam reconhecido que há alvos de terrorismo no Brasil. E teriam citado uma misteriosa “casa noturna israelense” em São Paulo como um exemplo.
“Eu levantei a questão do terrorismo, já que Macedo Soares é basicamente o único brasileiro que foi citado pelo Wikileaks. Eu perguntei a ele se isso causou algum tipo de problema e ele riu e disse “só inveja”! Aparentemente, vários oficiais brasileiros ficaram seriamente com ciúmes de que ele tenha ficado com toda a fama, haha”, relata Bhalla no seu email. Macedo Soares foi interlocutor do ex-embaixador Sobel nos primeiros documentos diplomáticos vazados.

Amazônia e crack
 
A conversa não parou por aí. Bhalla chegou a ser convidada a visitar um posto militar na Amazônia na sua próxima visita, “coisa que eu definitivamente vou fazer”. Ouviu do alto escalão do GSI que “a corrupção nesses postos é mais concentrada na polícia do que nos militares”.
“Um deles levantou um ponto interessante, dizendo que uma coisa que o Brasil tem feito muito bem é controlar a qualidade dos precursores químicos que entram no país. Então, a cocaína produzida na Bolívia, por exemplo, não é ‘classe A’ que os compradores de NY querem. Ao invés disso, são de baixa qualidade, crack, que é vendido em São Paulo. Então essa é uma consequência não-intencional para eles: drogas mais baratas e de baixo valor permeiam o mercado brasileiro”, descreveu.
No fim da mensagem, a analista diz ter desgostado da capital federal, no mesmo tom informal que marca os demais emails da Stratfor publicados pelo WikiLeaks. E envia uma foto sua diante da catedral de Brasília.
A correspondência com Macedo Soares não terminou aí, como mostra a esfuziante mensagem sobre o mapa com o Brasil no centro, reenviado a Bhalla dois meses depois da visita.
A reportagem procurou o GSI através da sua assessoria de imprensa, mas recebeu como resposta que o ministro José Antônio de Macedo Soares está de férias no exterior e se disponibilizaria a esclarecer o assunto depois do dia 3 de março. A assessoria confirmou, no entanto, que o ministro-chefe José Elito Siqueira “recebeu, em 06 Jan 11, a Sra Reva Bhalla para cumprimento protocolar durante a sua visita ao GSI”.
Oficialmente, o governo sempre negou a existência de atividades terroristas no Brasil – e continua negando, mesmo depois das revelações do Wikileaks. Já os militares brasileiros parecem ficar bem mas à vontade quando falam do assunto com americanos – sejam eles diplomatas, militares, ou arapongas como os da Stratfor.
*Reportagem feita em parceria com a revista Carta Capital

As mulheres e o narcotráfico: entre uma guerra delirante e a impunidade

Há centenas de milhares de mulheres - sem nome, sem idade, sem rosto - que por circunstâncias da vida ou por decisão própria somam-se às filas do narcotráfico


Gabriela Oliveros e Marcela Salas
Desinformémonos

Cidade do México. Carregam cartuchos, o mesmo que carregar bebês. Disparam, e amam também. Transportam drogas, às vezes em suas roupas, às vezes em seus corpos, às vezes em seus filhos. Lidam com sangue, com ossos. Explodem granadas, e algumas vezes são explodidas. São as mulheres do narcotráfico, as quais, no vai e vem da compra e venda de substâncias ilícitas, oscilam entre os limites da vítima ou do agressor. Seu papel se manteve velado durante décadas, mas, diante do crescimento do clima de violência que flagela o país, adquirem cada vez mais visibilidade. 
As mulheres também estão desaparecidas, raptadas com fins de exploração sexual pelas mesmas redes, torturadas e assassinadas. E, por outro lado e no mesmo âmbito, estão as mulheres jornalistas que mostram com valentia os bastidores das máfias, as defensoras de direitos humanos, as mulheres que combatem. Todo um mundo feminino que denuncia, se rebela e se defende.

No mundo do narco 
Digna rainha das rainhas 
diante da lei, não se inclina 
caminha com pés de gato 
domina a corda solta
entre a mais bela rosa 
mais perigoso o espinho 

Sandra Ávila Beltrán - Foto: Desinformémonos
Esse é um trecho da música “A rainha das rainhas”, que o grupo Os Tigres do Norte dedicou a Sandra Ávila Beltrán, mulher ligada ao narcotráfico cujo nome se soma ao de outras – todas elas com a característica em comum de serem mulheres bonitas – que estão relacionadas com o mundo do contrabando de drogas como Zayda Peña, Liliana Lozano, Alicia Machado, Dolly Cifuentes, Laura Zúñiga. 
No entanto, além da beleza e da fama, há centenas de milhares de mulheres – sem nome, sem idade, sem rosto – que por circunstâncias da vida ou por decisão própria unem-se às filas do narcotráfico. 
Recentemente a Central de Organizações Camponesas e Populares informou que existem cerca de 200 mil mulheres mexicanas que trabalham de forma direta ou indireta para quadrilhas de narcotráfico, e que sete em cada dez mulheres no norte do país estão ligadas ou são beneficiadas pelo dinheiro do narcotráfico. 
Dados da DEA mostram que há 10 mil mulheres encarceradas por crimes relacionados à fabricação, venda e distribuição de drogas, e que a porcentagem de detidas por esta causa aumentou 400% desde 2007. 
A participação feminina no negócio das drogas não é inédita, mas os papeis que ocupam dentro das organizações criminosas está mudando. Liliana Carbajal Larios, especialista em mulheres e segurança nacional, destaca os três principais papeis desempenhados atualmente nas fileiras do narcotráfico: articulação e mediação, administração e distribuição de recursos e agentes de reestruturação e coesão no núcleo familiar, quando morre o chefe da família. 
Elas, no entanto, têm o custo de muitas outras tarefas. Entre elas, Carbajal Larios destaca “as mulheres troféu, que desempenham o papel de ‘acompanhantes’ dos narcotraficantes, as ‘burreras’ ou ‘mulas’ que transportam drogas de uma fronteira para outra, carregando bebês mortos que também estão carregados com drogas, ou fazendo-se enxertos de cocaína e outras substâncias no busto; as ‘buchonas’, que são mulheres que estão em pontos estratégicos e informam os grupos de narcotraficantes quando policiais ou militares estão para prendê-los, e que não podem ser julgadas devido à impossibilidade de comprovar sua participação no negócio”. 
As mulheres também estão consumidoras, cuja atuação é indireta, e as mães, irmãs, filhas e esposas de narcotraficantes, que não participam ativamente, mas tampouco podem sair dessa situação – apesar de viverem na mais pródiga opulência – são focos de sequestros e ajustes de contas. 
Outras mulheres desempenham papeis que antes estavam destinados apenas aos homens, como as varejistas, diretamente relacionadas com a venda de substâncias ilegais em pequena escala, ou as mulheres mercenárias, que “se preparam para assassinar a sangue frio, veem como decapitar e logo reproduzem, o que tem ocasionado também que aumentem os assassinatos sangrentos de mulheres cometidos por mulheres”, pontua Liliana Carbajal. 
Em 2011, por exemplo, “Monterreu começou o ano com a notícia da “ruiva da ponte Gonzalitos’, uma mulher que apareceu enforcada em 31 de dezembro na zona de Linhares”, explica San Juana Martínez, jornalista especializada em violência de gênero, direitos humanos e narcotráfico. 
A jornalista assinala que, somente em Nuevo León, seu estado natal, os crimes contra mulheres aumentaram 689% de 2005 a 2011, com três feminicídios em 2005 e 211 em 2011. 
“Há mulheres desaparecidas que se enquadram como vítimas do tráfico ou de exploração sexual. Também ocorrem casos de os “arrastões do prazer”, onde os narcotraficantes recolhem as meninas que eles gostam e às vezes as devolvem, mas em outras ocasiões não”, explica Martínez e assinala que o “México é uma terra de feminicídios, produto do redemoinho da barbárie do narcotráfico que já não faz distinções de nenhuma classe”. 

Mulheres que combatem o narcotráfico 

Em meio ao aumento generalizado da violência, registra-se um aumento da presença feminina em forças policiais. Não somente há mais mulheres policiais, mas também agora elas querem ocupar chefias e altos postos, cargos em que anteriormente não podiam se posicionar. Esse fenômeno, no entanto, “não deve necessariamente ser considerado como um triunfo de gênero”, adverte a doutora em Sociologia Olivia Tena Guerrero, coordenadora do Programa de Investigação Feminista da UNAM.
Em alguns casos, destaca Olivia Tena, as mulheres conseguiram alcançar altos postos “somente porque os homens os recusaram”. Esse é o caso de Marisol Valles García, jovem de 20 anos que foi nomeada por alguns meios de comunicação “a mulher mais valente do México” depois de aceitar a chefia da polícia do violento município de Praxedis Guerrero, em Chihuahua. O cargo que ocupou ninguém mais quis, pois seu sucessor, Manuel Castro, havia sido sequestrado, torturado e decapitado. Dois meses depois de assumir o cargo – e de logo receber numerosas ameaças – Marisol foi tirada do posto por ausentar-se de seus trabalhos e solicitou asilo nos Estados Unidos. 
Apesar dos avanços no reconhecimento do direito que as mulheres têm de se empregar no que elas decidirem, as causas que levam muitas às instituições policiais não são precisamente a vontade de ajudar “os demais a servir a sociedade”. “Muitas delas”, reconhece Tena Guerrero, “aproximam-se desse trabalho porque se dão conta que – apesar do perigo que implica – podem ganhar mais sem ter muitos estudos, e porque buscam a obtenção de um poder que antes não conheciam”. 
A também diretora de um projeto de empoderamento de mulheres policiais na Cidade do México acrescenta que, por causa do aumento da violência e criminalidade, que se originam de não haver modificações da estratégia de combate ao crime organizado no momento oportuno, “a função das mulheres policiais é mais repressora que preventiva”. 
Seja qual for seu papel no narcotráfico, é claro que as mulheres têm adquirido paulatinamente poder e têm deixado de desempenhar tão somente papeis auxiliares ou de acompanhamento. “Escutamos e lemos histórias diariamente”, disse a jornalista Sanjuana Martínez, autora do livro “A fronteira do narcotráfico”. “Às vezes são difundidas e muitas outras ficam no esquecimento, mas é preciso ter em conta a situação em que estamos imersas como gênero. Devemos nos cuidar entre nós, fazer redes e nos protegermos, essa é a única maneira de nos defendermos diante dessa guerra delirante”, adverte a repórter de La Jornada.