A cidade de El Alto viveu outro momento
histórico ao protagonizar fortes protestos, desta vez contra uma
proposta do governo Evo Morales. A mobilização foi contra o decreto 478
do presidente boliviano, apelidado de “gasolinazo” que, segundo os
setores sociais mobilizados, afetava gravemente suas magras economias ao
provocar um aumento de passagens de ônibus, de alimentos e outros
produtos entre 100 e 150%. Diante dessa mobilização, na noite de 31 de
dezembro de 2010, Evo Morales viu-se obriga a revogar o decreto.
O contexto e os fatos
Depois
daquelas históricas jornadas de outubro de 2003, quando se derrubou o
presidente neoliberal, Gonzalo Sánches de Lozada, e de maio-junho de
2005, quando se impediu que Hormando Vaca Diez (então presidente do
Senado e representante da oligarquia cruceña) assumisse a presidência da
República, nos dias 30 e 31 de dezembro, El Alto novamente protagonizou
outro momento histórico ao viver o terceiro dia de greve total para
derrotar o “gasolinazo” sem a prévia convocação de entidades como a
Federação de Juntas Vicinais (Fejuve-El Alto), a Central Obrera Regional
de Alto e os sindicatos. A mobilização foi contra o decreto 478 de Evo
Morales, apelidado de “gasolinazo”, que segundo os setores sociais
mobilizados afetava gravemente suas magras economias ao provocar um
aumento de passagens de ônibus, de alimentos e outros produtos entre 100
e 150%. Diante dessa mobilização, na noite de 31 de dezembro de 2010,
Evo Morales viu-se obrigado a revogar o decreto.
O decreto
governamental de 26 de dezembro autorizava a elevação do preço da
gasolina e do diesel em 83 e 72%, respectivamente, algo que não ocorria
há muito tempo, inclusive nos chamados governos neoliberais. O argumento
central do governo era que o aumento devia-se à necessidade de nivelar
os preços dos combustíveis aos praticados internacionalmente e, assim,
combater o contrabando desses produtos. Segundo o governo, a situação
atual estaria sangrando a economia do Estado em 380 milhões de dólares
anuais, dos quais 150 milhões seriam efetivamente produto de
contrabando. A gasolina e o diesel na Bolívia são efetivamente mais
baratos que em outros países vizinhos como Peru ou Brasil. Mas isso,
segundo os moradores mobilizados de El Alto e os movimentos indígenas,
não deveria ser enfrentado deste modo, tratando-se de um governo de
esquerda, reeleito com 64% de apoio da população e com 81% de apoio na
cidade de El Alto.
O discurso presidencial da noite de 29 de
dezembro foi qualificado por muitos setores de El Alto como falso,
demagógico e discriminador porque aumentava em 20% os salários de quatro
categorias apenas (magistério, saúde, polícia e militares), deixando de
fora os demais trabalhadores, os camponeses indígenas originários,
pequenos comerciantes e profissionais autônomos. Denunciou-se uma visão
classista do governo ao oferecer um aumento salarial a setores
assalariados, sem apresentar explicitamente nem um aumento ou benefício
para os setores não assalariados, apenas a criação de um seguro agrícola
para os pequenos produtores e camponeses e projetos de irrigação (300
mil dólares por município) para muitos lugares do país.
Em
síntese, muitos setores sociais de El Alto (como o Comitê de Emergência
contra o gasolinazo composto por organizações independentes de
diferentes setores não alinhados a organizações partidárias do governo) e
de outras regiões do país pediram a imediata revogação ou anulação do
decreto 748 (que finalmente acabou ocorrendo), sob o risco de
radicalização das medidas de pressão a partir do dia 3 de janeiro de
2011. Neste processo, é certo, também atuaram os interesses da direita e
dos grupos de poder que querem provocar o colapso do governo, movimento
este rechaçado pelos setores de El Alto.
“Repudiamos as ações
oportunistas do Partido Sem Medo (do ex-prefeito de La Paz), dos
representantes da oligarquia cruceña e paceña e do Comitê Cívico de
Santa Cruz, que distraem a opinião pública com suas marchas e discursos
em defesa dos setores sociais pobres e vilipendiados há mais de 518
anos...” (Comitê de Emergência contra o gasolinazo, 30/12/2010).
As
mobilizações sociais de 30 de dezembro envolveram marchas em La Paz e
em vários outros departamentos (Oruro, Potosi, Cochabamba, Santa Cruz e
localidades mineiras de Mmallagua, Uncia e na própria região de
Chapare-Ivirgarzama, onde ocorreu um bloqueio de estrada entre
Cochabamba e Santa Cruz pelos mesmos cocaleros de onde provem Evo
Morales), queima de alguns edifícios governamentais (como a
vice-presidência de Estado e alguns ministérios), de sedes de
organizações qualificadas de “oficialistas”, e do pedágio entre El Alto e
La Paz), gritos de “renúncia” do presidente e de anulação do mencionado
decreto.
No que se refere à cidade de El Alto (a 4 mil metros
acima do nível do mar), alguns desceram para La Paz (sede política) no
dia 30 de dezembro e outros, como foi dito acima, tomaram e destruíram
com pedradas a chancela de pedágio da autopista El Alto – La Paz), que
ficou em escombros. Também incendiaram algumas instalações do governo.
Outro lugar atacado com muita força foi o edifício da Fejuve-El Alto e
da COR-El Alto, cujos dirigentes foram acusados de “vendidos” ao governo
e de “traidores” das lutas de outubro e também por estar divididos
entre a facção de Braulio Luna (MAS) e Fany Nina (MSN). O edifício da
Fejuve teve os vidros destroçados e as portas de ferro quebradas, do
mesmo modo que o edifício da COR-El Alto, que teve móveis e papéis
incendiados. No meio do tumulto apareceu um jovem encapuzado com um
velho fuzil Mauser nas mãos pedindo ao governo que revogasse o decreto.
Nestas
manifestações, escutaram-se gritos de “Evo e Goni, a mesma porcaria”,
“El Alto de pé, nunca de joelhos”, “renúncia de Álvaro Garcia Linera e
Evo Morales” ou “referendum revocatório”, “anulação do decreto 748”. Na
manhã do dia 30, também tentou se atacar a prefeitura de El Alto (hoje
dirigida por Edgar Patana, ex-dirigente da COR-El Alto); à noite, a
prefeitura foi incendiada, acusada de cúmplice do “gasolinazo”. Um
conjunto de grupos dispersos em diferentes lugares de El Alto se
juntaram neste dia para atacar o pedágio da autopista, como já
mencionado. Também se tentou tomar os escritórios do próprio prefeito
Edgar Patana, localizado na avenida 6 de março. Participaram ainda das
marchas setores como o Conselho Nacional de Ayllus e Markas de Qullasuyu
(Conamaq), que critica o governo no tema da mineração e contaminação
(caso de Corocoro), e também diferentes distritos da cidade de El Alto,
além de jovens das ladeiras de La Paz. Ou seja, foi uma jornada muito
tensa que faz parte de um crescente descontentamento da população ante o
gasolinazo e outras leis que foram aprovadas sem muito diálogo com
diferentes setores sociais.
Na noite do dia 30, todas as
mobilizações foram minimizadas pelo ministro Sacha Llorenti. No entanto,
a verdade é que ocorreram grandes mobilizações e atos de protesto em
diferentes lugares do país. Por outro lado, é preciso considerar as
diferentes naturezas das mobilizações na cidade de Santa Cruz, por
exemplo, onde existe uma férrea oposição ao governo de Evo Morales há
muito tempo, e onde nestes dias voltaram a se ouvir frases como “esse
índio não sabe governar”. Neste ponto, muitos setores, tanto nos Andes
como no Oriente, se diferenciaram dos discursos da liderança cruceña.
Algumas considerações finais
O
governo, com a medida tomada, estava dando uma clara guinada na direção
de um liberalismo de mercado com rosto índio, pois reaparecia de forma
oficial a lei de oferta e procura. Além disso, era um reconhecimento
explícito do fracasso da “nacionalização dos combustíveis”. Sobre esse
ponto, anunciava-se que se abririam incentivos a investimentos das
petroleiras transnacionais para atividades de perfuração e exploração, e
a venda de combustíveis no mercado nacional e internacional, ainda que
de forma mediada pelo Estado.
Também foi possível notar que o
governo favorecia setores do poder econômico do país, dado que
subvencionava os grandes empresários da soja, ainda que também tenha
sido anunciado um apoio a pequenos médios produtores deste produto.
Neste
sentido, fica claro que a descolonização do Estado está se convertendo
em uma falsa descolonização. Porque, de todos os modos, está vigente e
até ampliado o estado colonial e liberal dado que se mantém as matrizes
centrais do exercício do poder em uma lógica de mando – obediência que é
uma das características do estado liberal-colonial. É evidente, cabe
reconhecer, que há um grande reconhecimento dos setores mais
vilipendiados por mais de 518 anos. O Estado, no sentido anterior, se
ampliou, mas ao mesmo tempo estava retornando abertamente à lógica de
livre mercado, com o predomínio da oferta e procura dos produtos,
particularmente dos setores não assalariados. E os setores assalariados
estavam sujeitos aos aumentos autorizados pelo governo, particularmente
para o setor público. Para o setor privado se abriria uma negociação,
algo até pouco não reconhecido pelo governo, entre o empregador e o
empregado para aumentar ou não os salários.
Pelo que se percebeu,
predominou uma clara visão de classe média urbana, favorecendo setores
tradicionais da administração pública que, em 2011, teriam um duplo
benefício, enquanto os indígenas, camponeses e pequenos comerciantes
urbanos não gozariam destes mesmos duplos benefícios.
Por outra
parte, o presidente acusou mulheres de serem grandes contrabandistas –
dizendo que usavam mamadeiras para tanto – e homens também, por meio de
cinturões de gasolina ou diesel. Esta acusação causou uma grande
indignação entre os setores mobilizados da população, porque voltou-se a
humilhar o povo pobre, sem que se notasse ou anunciasse sanções para os
grandes contrabandistas que são grandes empresários e políticos.
Neste
sentido, pode-se dizer que El Alto uma vez mais mostrou uma grande
capacidade de mobilização e, inclusive, de ações radicais, para fazer-se
escutar e deixar claro seu grande mal estar social, ainda que o
ministro Sacha Llorenti tenham minimizado e qualificado estas ações como
partindo de pequenos grupos e de vândalos. A mensagem deixada pelas
manifestações é clara: se não houver um redirecionamento nas políticas
públicas e nas leis propostas na Assembleia Plurinacional, poderemos
voltar a viver as mesmas jornadas de outubro de 2003 e 2005 nesta cidade
e no resto do país. Essa afirmação fundamenta-se no que foi observado
nos três últimos três dias de mobilizações, no que ocorreu em outras
cidades e nos anúncios de que no dia 3 de janeiro de 2011 as
mobilizações voltariam com grande força até atingir seu objetivo:
anulação ou renúncia.
Neste contexto, as lideranças ligadas ao
governo foram atropeladas pelos jovens estudantes, mães de família,
desempregados, profissionais autônomos e trabalhadores. Em meio a isso, o
Movimento Se Medo, do ex-prefeito de La Paz, e a Unidade Nacional (UN),
de Doria Medina (centro-direita e direita, respectivamente), em uma
clara disputa com o MAS, tentaram se aproveitar da situação. A respeito
do atropelo das lideranças mencionado acima, um dos documentos do Comitê
de Emergência sustenta que “se levanta o quarto intervalo das lutas de
outubro de 2003” para seguir lutando por uma verdadeira descolonização
ou, finalmente, a destruição do estado colonial-liberal.
Ante a
gravidade dos fatos não restava ao governo revogar o mencionado decreto.
Do contrário, as oligarquias de Santa Cruz, La Paz e Cochabamba estavam
dispostas a aproveitar este fato para tentar derrubar o próprio governo
de Evo Morales. Neste sentido, foram muito claros ao
kataristas-indianistas e o Comitê de Emergência de El Alto contra o
gasolinazo, marcando sua distância daqueles grupos de poder corporativo
que ainda não foram desmantelados pelo governo. Ainda que o governo
desclassifique taxando como de direita a qualquer crítica e ação de
mobilização. Fato este que produziu e produz uma indignação ainda maior
em muitos setores que não fazem parte de nenhuma direita. Isso é muito
claro, ao menos na cidade de El Alto. O fato somente obedece a um grande
mal estar social em seus diferentes níveis ou camadas sociais de El
Alto e de outras cidades. El Alto segue sendo uma grande referência da
luta social por maior justiça social, respeito à vida e por uma real ou
total transformação do estado colonial liberal.
Finalmente, com
os graves ocorridos em El Alto e em todo o país, aqui analisados, cai
por todos os lados a tese do vice-presidente Garcia Linera de que
acabaram os grandes problemas estruturais da Bolívia. E a anulação do
decreto é parte disso. Os acontecimentos dos últimos dias falam de uma
crise muito profunda do tipo de estado liberal-colonial vigente, ainda
que ele se apresente com uma “blindagem plurinacional”. Neste sentido,
pode-se dizer que não houve nenhuma bifurcação entre o modelo de “estado
aparente” e o “novo estado plurinacional”. Pelo contrário, ampliou-se
abertamente o estado liberal-colonial, mas com um discurso de esquerda
que é o mais chamativo. Como resultado desse processo, caiu a
popularidade de Evo Morales em apenas três dias e sua imagem de um
presidente honesto, popular e pró-indígena ficou gravemente arranhada,
assim como o chamado processo de mudança.
Neste sentido, o
projeto de “reforma do Estado” foi colocado sob grave questionamento,
fazendo renascer duas grandes visões e projetos históricos que foram
analisados em outros trabalhos nossos. A primeira é a conservadora,
oligárquica, colonial e liberal, que não quer nenhuma mudança. A outra é
a de uma total e verdadeira transformação do Estado, ou mesmo
destruição do estado colonial, que vem de setores populares e do
katarismo-indianismo e de outros setores ainda não muito visíveis. Pelo
que, pode-se dizer que a Bolívia segue sendo um grande campo de luta
pelo poder.
(*) Pablo Mamani Ramírez é aymara e sociólogo,
responsável pela revista Willka, e estudiante de pós-graduação em
Estudos Latinoamericanos da UNAM-México.
Tradução: Katarina Peixoto