segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A difícil passagem do tecnozóico ao ecozóico


Leonardo Boff
 
Teólogo, filósofo e escritor - Adital

As grandes crises comportam grandes decisões. Há decisões que significam vida ou morte para certas sociedades, para uma instituição ou para uma pessoa.
A situação atual é a de um doente ao qual o médico diz: ou você controla suas altas taxas de colesterol e sua pressão ou vai enfrentar o pior. Você escolhe.
A humanidade como um todo está com febre e doente e deve decidir: ou continuar com seu ritmo alucinado de produção e consumo, sempre garantindo a subida do PIB nacional e mundial, ritmo altamente hostil à vida, ou enfrentar dentro de pouco as reações do sistema-Terra que já deu sinais claros de estresse global. Não tememos um cataclismo nuclear, não impossível mas improvável, o que significaria o fim da espécie humana. Receamos isto sim, como muitos cientistas advertem, por uma mudança repentina, abrupta e dramática do clima que, rapidamente, dizimaria muitíssimas espécies e colocaria sob grande risco a nossa civilização.
Isso não é uma fantasia sinistra. Já o relatório do IPPC de 2001 acenava para esta eventualidade. O relatório da U.S. National Academy of Sciences de 2002 afirmava "que recentes evidências científicas apontam para a presença de uma acelerada e vasta mudança climática; o novo paradigma de uma abrupta mudança no sistema climático está bem estabelecida pela pesquisa já há 10 anos, no entanto, este conhecimento é pouco difundido e parcamente tomado em conta pelos analistas sociais”. Richard Alley, presidente da U.S. National Academy of Sciences Committee on Abrupt Climate Change com seu grupo comprovou que, ao sair da última idade do gelo, há 11 mil anos, o clima da Terra subiu 9 graus em apenas 10 anos (dados em R.W.Miller, Global Climate Disruption and Social Justice, N.Y 2010). Se isso ocorrer conosco estaríamos enfrentando uma hecatombe ambiental e social de conseqüências dramáticas.
O que está, finalmente, em jogo com a questão climática? Estão em jogo duas práticas em relação à Terra e a seus recursos limitados. Elas fundam duas eras de nossa história: a tecnozóica e a ecozóica.
Na tecnozóica se utiliza um potente instrumental, inventado nos últimos séculos, a tecnociência, com a qual se explora de forma sistemática e com cada vez mais rapidez todos os recursos, especialmente em benefício para as minorias mundiais, deixando à margem grande parte da humanidade. Praticamente toda a Terra foi ocupada e explorada. Ela ficou saturada de toxinas, elementos químicos e gases de efeito estufa a ponto de perder sua capacidade de metabolizá-los. O sintoma mais claro desta sua incapacidade é a febre que tomou conta do Planeta.
Na ecozóica se considera a Terra dentro da evolução. Por mais de 13,7 bilhões de anos o universo existe e está em expansão, empurrado pela insondável energia de fundo e pelas quatro interações que sustentam e alimentam cada coisa. Ele constitui um processo unitário, diverso e complexo que produziu as grandes estrelas vermelhas, as galáxias, o nosso Sol, os planetas e nossa Terra. Gerou também as primeiras células vivas, os organismos multicelulares, a proliferação da fauna e da flora, a autoconsciência humana pela qual nos sentimos parte do Todo e responsáveis pelo Planeta. Todo este processo envolve a Terra até o momento atual. Respeitado em sua dinâmica, ele permite a Terra manter sua vitalidade e seu equilíbrio.
O futuro se joga entre aqueles comprometidos com a era tecnozóica com os riscos que encerra e aqueles que assumiram a ecozóica, lutam para manter os ritmos da Terra, produzem e consomem dentro de seus limites e que colocam a perpetuidade e o bem-estar humano e da comunidade terrestre como seu principal interesse.
Se não fizermos esta passagem dificilmente escaparemos do abismo, já cavado lá na frente.

A inveja segundo Rubem Alves

A inveja segundo Rubem Alves
           Mestre em desnudar as paixões humanas, o escritor Rubem Alves já escreveu sobre todas elas. Especificamente em relação à inveja, este mineiro de Boa Esperança teceu considerações que suscitam algumas reflexões.
           Ele associa a inveja ao "olhar torto", advindo do latim "in videre". Exatamente aí se origina a palavra "inveja" - o olhar torto, enviesado, que se opõe ao olhar franco, direto. "Sei que olhos agitados revelam um coração perturbado. Quando o coração está tranquilo, tranquilos também ficam os olhos. Mas eu não sabia que a inveja tem o poder para agitar o olhar", ressaltou Rubem Alves em "A Inveja" - uma das crônicas do livro "O Retorno e Terno".
           Nessa perspectiva dá para afirmar que o olhar do invejoso é exatamente como o seu coração: intranquilo. Mais até: tudo nele ronda a intranquilidade. Ao mesmo tempo em que seu ego é mais inflado do que seu espirito (ao ponto de ofuscá-lo), ele não consegue olhar para si sob o prisma da contemplação dos sábios.
            O invejoso olha para si à procura do que falta, do vazio que precisa ser preenchido de qualquer jeito. Se ele acha o que está procurando, guarda para si - somente para si - a sete chaves. Ele se sente realizado por isto e até orgulhoso da conquista. No entanto, no momento em que percebe que alguém mais possui o que ele conseguiu, ou que este alguém conseguiu o que ele não possui, seus olhos saltam para fora, e é como se fossem imensas bocas cheias de caninos. É assim mesmo o olhar do invejoso: uma boca pronta para devorar o outro.
            Num determinado momento de sua crônica, Rubem Alves lembra de uma história na vertente das fábulas de As Mil e Uma Noites. Um homem encontra uma garrafa que estava enterrada e, ao abri-la, surpreende-se com a saída de um gênio, que se coloca ao seu serviço. O gênio diz ao homem que pode transformar em realidade todos os seus sonhos. Tão logo percebe que aquilo era mesmo possível, o felizardo começa a imaginar tudo o que poderia pedir: a juventude, uma beleza física irresistível, palácios deslumbrantes nos quatro cantos do mundo, serviçais, as mais belas mulheres, os melhores vinhos, as comidas mais saborosas, os amigos fiéis. Seus olhos brilham, pois ele sabe que tem nas mãos a chave para a felicidade.
            Os rumos dessa história mudam quando o gênio diz que havia se esquecido de mencionar apenas um detalhe: tudo aquilo que o homem pedisse para si o seu pior inimigo receberia em dobro. Como que por encanto, a face do sortudo muda de expressão, tornando-se mais séria e mais sombria. Ele para, pensa e, novamente com um sorriso de realização, dirige-se ao gênio para fazer seu único pedido: "quero que me fure um olho".
            De fato, o invejoso não quer a própria felicidade; deseja tão-somente que o outro não seja mais feliz do que ele. Por isso o seu olhar é torto, inquieto. Na sua ótica a realidade será sempre uma imagem distorcida, que ele jura ser a certa e a única possível. Para ele o céu (do outro) é sempre o limite...
(publicado no Jornal TRIBUNA LIVRE, Viçosa-MG, em 29 de outubro de 2010)

Nota em repúdio ao desmonte da TV Cultura

 
A Frente Paulista pelo Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão (Frentex) vem a público repudiar o desmonte da RTV Cultura promovido pelo governador do Estado de São Paulo.

A notícia das 150 demissões ocorridas na RTV Cultura de São Paulo na última segunda-feira, dia 7, só confirma a intenção do PSDB de desmonte da única emissora pública paulista, que faz parte do patrimônio do povo.

A emissora enfrenta uma das maiores crises de sua história. Já foi amplamente divulgado na mídia que o projeto da atual gestão da Fundação Padre Anchieta, ligada diretamente ao governo de São Paulo, é reduzir o quadro de funcionários e efetuar corte de verbas em algumas de suas produções. Com isso, pretendem economizar as custas dos empregos e da qualidade da programação da emissora, alterando inclusive o papel social da Fundação, gestora da TV Cultura.

Para honrar o Estado democrático que conquistamos após anos de arbítrio, é necessário que a TV Cultura propicie programação de qualidade, jornalismo independente e ético, participação da sociedade em seu Conselho Administrativo e condições de trabalho dignas a todos os funcionários.

O Estado de São Paulo não pode ser mero espectador no processo de avanço da democratização dos meios de comunicação que está sendo discutido em nível nacional, idéia que se fortaleceu mais ainda após a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, da qual o movimento social paulista teve grande representação, apesar do boicote promovido pelo governo do Estado.

Nesse sentido, defendemos um amplo debate sobre o papel da TV Pública no Estado de São Paulo para que ela continue sendo um instrumento de fortalecimento dos valores e costumes do povo, que tenha diversidade de idéias e de opiniões e ajude no fortalecimento de nossa democracia.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2011.

Entidades que assinam a nota:

- Campanha pela Ética na TV

- Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé

- Cidadania e Saúde

- Ciranda da Informação Independente

- Coletivo Intervozes

- Conselho Regional de Psicologia de São Paulo

- Coordenação Nacional de Entidades Negras/Conen-SP

- CTB-SP

- CUT-SP

- Federação dos Jornalistas de Língua Portuguesa – FJLP

- Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo

- Movimento Sindicato é pra Lutar

- Observatório da Mulher

- Revista Debate Socialista

- Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo

- Sindicato dos Radialistas do Estado de São Paulo

- Sinergia/CUT (Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de SP)

- União Brasileira de Mulheres

- União Estadual dos Estudantes

- União de Mulheres de São Paulo.

A crise que se matura: do sub-imperialismo à bolha dos alimentos

  Fernando Marcelino   no Correio da Cidadania
 
Conjuntura internacional e o papel do Brasil
 
Hoje, o sentimento geral impulsionado pelas mídias, grandes corporações e governos é que vivemos num mundo "pós-crise". Afinal, pacotes econômicos na escala de trilhões de dólares foram feitos urgentemente para o salvamento de bancos e o restabelecimento do crédito.
 
Entretanto, num contexto amplo dos grandes países centrais, incluindo EUA, Europa Ocidental e o Japão, a recessão, o endividamento público, o colapso fiscal e os planos de austeridade têm se generalizado. Todos sabem que se cortarem os "auxílios estatais" aos bancos o fantasma da depressão reaparecerá e poderá ser muito pior que em 2008. Todos os presidentes e ministros estão atrapalhados e oscilam entre a continuidade do socorro e/ou a introdução de ajustes fiscais drásticos contra o povo.
 
Num panorama mais abrangente a crise global apresenta algumas tendências claras. Estamos vendo: 1) um processo em que o centro capitalista entra em recessão e em que as conquistas sociais do pós-guerra estão sendo – e têm que ser – destruídas; 2) um terrível empobrecimento da periferia mais pobre do planeta, com a multiplicação de desastres sociais que se generalizam, dentre outras razões, pelo encarecimento dos alimentos e a expropriação dos recursos naturais; 3) a ascensão de economias intermediárias (semi-periferia?) como China, Índia, Brasil, África do Sul e Rússia. São países com experiência prévia de dominação regional ou com grandes recursos demográficos e naturais. Existem diversas denominações para descrever estes novos atores (emergentes, BRICS), porém o mais importante é o aumento de seu poder de barganha geopolítica no sistema internacional.
 
De qualquer forma, esses países não atuam em sintonia com projetos de emancipação popular. Cada sub-potência destas tende ainda a privilegiar seus próprios interesses regionais em detrimento de uma ação conjunta e expressam, em última análise, os interesses de setores enriquecidos que aspiram a consolidar seus negócios e seu poder com ações no exterior.
 
Em síntese, na atual fase da crise existem três mudanças de largo alcance: uma reorganização geral das economias mais desenvolvidas, um maior empobrecimento da periferia e a ascensão de vários países intermediários com características sub-imperialistas. Ruy Mauro Marini costumava definir o sub-imperialismo como a "forma que assume a economia dependente ao chegar à etapa dos monopólios e capital financeiro", desdobrando-se em: 1) exercício de uma política externa expansionista relativamente autônoma; 2) uma composição orgânica média na escala mundial dos aparatos produtivos nacionais capazes de apontar nos mercados externos como forma de resolver as contradições internas; 3) contextos de luta de classes em que as alianças da burguesia se dão pela ampliação do mercado externo.
 
No caso do Brasil contemporâneo esse processo coincide com: 1) orientação da política externa brasileira de maior destaque internacional – busca pelo assento no Conselho de Segurança da ONU, comando das tropas MINUSTAH para a "estabilização social" do Haiti desde 2004; 2) a consolidação de uma fração local da burguesia que retoma o interesse no mercado externo por meio da exportação de capitais, principalmente na forma de investimentos diretos. O aumento da composição orgânica das empresas brasileiras transnacionais ampliou a escala da massa de valor em busca de valorização, recolocando a insuficiência do mercado interno para a continuidade do processo de acumulação.
 
Esse processo se reflete na brusca elevação dos Investimentos Diretos brasileiros no exterior, que acumularam entre 2000 e 2008 mais de sete vezes o volume de toda a década de 1990, tendo como espaço privilegiado a América do Sul. Essa internacionalização da burguesia concentra-se setorialmente em recursos naturais (Gerdau, Vale, Petrobrás, Votorantim), engenharia e construção civil (Odebrecht, Andrade Gutierrez) e manufaturas (Marcopolo, Sabó, Embraer, WEG e Tigre). A expansão das transnacionais brasileiras caracteriza-se por ganhar posições monopolistas.
 
Por exemplo, em 2006, a Petrobrás correspondia a 17% do PIB da Bolívia, e grandes produtores brasileiros controlavam 95% da produção de soja paraguaia; na Argentina, a Camargo Correa controla 50% do mercado de cimento e a FrigoBoi controla o mercado de carnes; no Peru, a Votorantim controla 62% da produção de zinco;
 
Por fim, temos o aumento dos conflitos envolvendo a burguesia brasileira em países da América do Sul – empresários da soja em terras paraguaias e bolivianas, Petrobrás na Bolívia, Odebrecht no Equador.
 
O governo Lula procurou trabalhar pelo fortalecimento das relações Sul-Sul a fim de diversificar os destinos das exportações brasileiras. Enquanto a burguesia industrial interna se beneficia com o aumento do acesso aos mercados de países periféricos, bem como da instalação das suas empresas nestes países, a burguesia agrária (agrobusiness) depende em grande medida dos mercados dos países centrais, tendo como destino os EUA, Europa e China. É uma condição contraditória de dependência e conquista, de servidão e imposição ao mesmo tempo.
 
Da crise imobiliária à crise dos alimentos
 
A população mundial é de 6,5 bilhões de pessoas. Desse total, utilizando uma noção de "fome" extremamente rasa, cerca de um bilhão está subalimentada. Cerca de três bilhões de pessoas vivem em áreas rurais e estima-se que deste contingente 800 milhões passam fome. De acordo com dados da FAO, a distribuição dos famintos do mundo se encontra da seguinte forma: 642 milhões nas áreas da Ásia e do Pacífico; 265 milhões na África Subsaariana; 53 milhões na América Latina e Caribe; 42 milhões no Oriente Médio e 15 milhões nos países mais desenvolvidos.
 
Desde 2002 estamos vendo o aumento do preço de diversas commodities no mercado mundial. Por trás desse aumento encontra-se o inter-relacionamento de diversas causas como a maior demanda por parte de grandes países asiáticos – China e Índia – e o deslocamento da produção de algumas culturas, como a do milho, para a produção de biocombustíveis.
 
O crescimento da China, Índia e outros países "emergentes" exerce uma enorme pressão de demanda, cujos principais sintomas se manifestaram pela elevação dos preços de matérias-primas minerais, do petróleo e, mais recentemente, dos alimentos. O Brasil entrou surfando nessa onda. Entre 2000 e 2007, por exemplo, as exportações brasileiras de soja passaram de 11,5 milhões para 25,5 milhões de toneladas. A exportação de milho passou de 700 mil toneladas para 11 milhões.
 
A trajetória de alta nos preços teve uma subida considerável em 2007 e no primeiro semestre de 2008. Os maiores incrementos foram nos preços dos metais, em especial do minério de ferro, cobre e estanho. No segundo semestre de 2007, petróleo e alimentos passaram a registrar fortes aumentos de preço e volatilidade. A partir do início da crise hipotecária norte-americana, em agosto de 2007, houve uma grande fuga de capitais das aplicações relacionadas aos derivativos dos contratos hipotecários em direção aos mercados internacionais de commodities, em busca de ganhos ou redução de perdas. 
 
As commodities tornaram-se investimentos atraentes ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros, resultante tanto dessa depreciação como das turbulências dos mercados financeiros das economias centrais. A atratividade das commodities como forma alternativa de valorização da riqueza aumentou ainda mais com a redução da taxa de juros nos Estados Unidos, a partir de setembro de 2007. 
 
Assim, os fundos de investimento especulativos (os chamados hedge funds) e outros investidores institucionais (como os fundos de pensão) direcionaram suas apostas para os mercados de commodities e seus derivativos. Os investidores institucionais alocaram parcela crescente de suas carteiras em investimentos nos mercados futuros de commodities, que negociam 25 tipos de commodities (doze produtos agropecuários, seis tipos de petróleo e derivados, cinco metais básicos e dois metais preciosos).
 
De um lado, esses mercados de commodities oferecem possibilidade de retorno elevado ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros tradicionais, em razão tanto da queda dos juros americano como da depreciação do dólar. De outro lado, fornecem oportunidade de diversificação de risco, uma vez que esses mercados não estão historicamente correlacionados com os mercados de títulos e ações.
 
Os recursos alocados pelos investidores institucionais nos mercados futuros de commodities saltaram de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões entre o final de 2003 e março de 2008, enquanto os preços das 25 commodities subiram, em média, 183% nesses cinco anos. Essa crescente "financeirização" gerou hiperinflação nos preços dos ativos financeiros em tais mercados internacionais, em especial petróleo e alimentos.
 
As pressões inflacionárias tomaram as cotações de soja, milho e trigo, com forte impacto no preço de carnes, ovos e leite. O índice de preços de alimentos da ONU/FAO, que engloba 55 commodities agrícolas, apresentou alta de 57% entre março de 2007 e março de 2008.  Os preços globais dos alimentos ainda atingiram recorde de alta em janeiro de 2011. O índice subiu pelo sétimo mês seguido ultrapassando o recorde anterior alcançado em julho de 2008.
 
A bolha de ativos globais cresce diariamente. Um dia essa bolha vai estourar levando ao maior estouro coordenado de ativos já visto. A questão não é se a bolha vai estourar ou não, mas quando e como poderá impulsionar rebeliões populares capazes de apresentar uma alternativa ao funcionamento político da economia.
 
Poderá essa bolha deflagrar uma crise generalizada no capitalismo, atingindo EUA, Europa, China, Índia, Rússia, Brasil e outros países conjuntamente? Qual será o papel do Estado para socorrer a bancarrota capitalista e para reprimir os possíveis levantes sociais? Quais serão as medidas anti-crise articuladas pelos governos? Elas aumentarão a desigualdade social e internacional? E o imperialismo, terá que se intensificar? E as forças sociais do trabalho, conseguirão resistir a uma nova empreitada da "acumulação primitiva" do capital para "administrar a crise"?
 
A situação é alarmante: grosso modo, a divisão internacional do trabalho com crescente importância da China está impulsionando o Brasil a se retomar uma espécie de "vocação agrícola", a partir de uma ligação umbilical entre as finanças e o modelo exportador de commodities. É o agrobussiness da fração da burguesia brasileira que está fundindo os interesses do modelo primário-exportador com o mundo da especulação dos altos preços das commodities globais. É esse processo que sustentou o crescimento econômico e as políticas redistributivas de que o governo petista tanto se vangloria e que a nova presidente buscará aprofundar.
 
A falta de debate sobre esse modelo ainda é (quase) completa, principalmente na esquerda. De forma geral, tem se aceitado que este modelo é viável, possível e adequado para "seguir mudando" o país. O Brasil se apresenta como uma espécie de vanguarda da financeirização do capital primário exportador, mas tudo bem, isso já seria feito ‘para o crescimento econômico que iria redistribuir a riqueza’... ou não? É cada vez mais difícil não nos atentarmos para o caráter domesticador das políticas sociais que aliviam a pobreza – não é a toa que essa é uma recomendação do Banco Mundial. Por mais que menos pessoas passem fome, é incontestável que a desigualdade não pára de crescer.
 
Entretanto, a capacidade dos atores sociais de se lançarem ao conflito diminui numa clara tendência de "transformismo às avessas", não apenas de dirigentes, mas de organizações inteiras. Na realidade, a cooptação e a redistribuição são dois lados da mesma moeda.
 
Existem alternativas ao modelo social-liberal tão popularizado na América Latina e festejado pela esquerda de todo o mundo? Existem atores sociais capazes de combater esse modelo? Quais são as alternativas e pautas comuns para a refundação da esquerda diante do fracasso do governo Lula?
 
Fernando Marcelino é analista internacional e secretário de formação política do PSOL-Curitiba. 

JUREMIR MACHADO:Tambores menosprezados

<br /><b>Crédito: </b> Arte Pedro Lobo

Crédito: Arte Pedro Lobo
Juremir Machado da Silva no Correio do Povo
Vou falar de literatura brasileira. Sei que isso não dá muito Ibope. Muitas pessoas só se inflamam realmente com quatro assuntos: cachorros, carros, jogadores de futebol e reality shows. Se falo do "BBB", recebo 50 mensagens. Se trato do Ronaldinho Gaúcho, cem e-mails. Se abordo a origem do Fusca, 150 comentários. Se meto meu focinho com os cachorros, 300 torpedos. É a vida. Cada época com as suas preocupações e prioridades. O cronista deve humildemente perceber o que anda no espírito do seu tempo. Afinal, não passa de uma caixa de ressonância.

Mas vou falar de literatura brasileira. Tem autores que sofrem para usar uma expressão do querido professor de Cinema Aníbal Damasceno Ferreira, de "feiura de pajé". Não empolgam. Todo mundo debocha deles. Até eu. Josué Montello é um desses casos. Parece que escreveu 150 livros. Fez parte da Academia Brasileira de Letras. Nada que abone o currículo de um escritor por si. É comum rotular-se Montello de medíocre. Na melhor das hipóteses, mediano, se isso não for pior. Certo é que Josué Montello nunca abafou. Mas ele tem um livro, sua obra-prima, "Os Tambores de São Luís", que é melhor do que todos os livros da nova geração de escritores juntos. Certamente um dos melhores do século XX no Brasil. Acabei de reler.

"Os Tambores de São Luís" conta a saga da escravidão no Brasil através da história do negro Damião. Por que esse livro não alcançou a mesma repercussão de algumas obras de Jorge Amado, de "O Tempo e o Vento", de Erico Verissimo, ou "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa? Não há dúvida de que formalmente Guimarães Rosa foi muito mais escritor. "Grande Sertão" consegue malabarismos de linguagem altamente originais. "Os Tambores Silenciosos", no entanto, além de ser bem escrito, embora não tanto quanto "Grande Sertão", tem, se me permitem uma expressão fora de moda, maior relevância social. Aí está. Depois da fúria dos "cachorrólatras", despertarei a ira dos adoradores de Guimarães Rosa. Serei explícito: "Tambores de São Luís" tem mais conteúdo.

Outro escritor desprezado, Mario Palmério, publicou, sobre o sertão, um livro, "Chapadão do Bugre", que merecia rivalizar com "Grande Sertão". Guimarães Rosa, contudo, foi o homem certo na hora certa: o modernismo obcecado pela linguagem. Por que, por outro lado, Josué Montello, com seus "Tambores de São Luís", não ombreia com Jorge Amado e Erico Verissimo, que, do ponto de vista formal, são menos vanguardistas que Rosa? Por uma razão bem simples: Montello é da escola do nosso Cyro Martins. Não idealiza. É sem glamour. Os negros no seu livro são vítimas. Não há espaço para atos heroicos. O mito fica de fora. O sistema escravista tudo sufoca. Sem a positividade marqueteira, não há muito orgulho regional.

O livro de Montello é lindo e triste, desses de chorar. Quando a gente termina de ler, pensa assim: cotas para negros nas universidades? É muito pouco. Todo negro deveria ter lugar garantido, nos próximos 50 anos, em nossas universidades, sem vestibular, sem nada, como pálida compensação pela dívida impagável que temos com seus antepassados. Josué mostra a ferida. Aí é medíocre.