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sábado, 22 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
Morre Juan Gelman, poeta argentino que lutou pela justiça e memória
Morre Juan Gelman, poeta argentino que lutou pela justiça e memória
Na ditadura militar, seu filho Marcelo Ariel e a esposa, María Claudia Iruretagoyena, foram sequestrados e mortos
Morreu nesta terça-feira (14/01), no México, o poeta argentino Juan Gelman, cuja obra -- apontada como uma das mais importantes da poesia latino-americana -- sempre esteve marcada pelo amor, apesar de sua trajetória ter sido pontuada por episódios muito dolorosos. Gelman, que faleceu aos 83 anos, lutou contra a ditadura militar argentina, responsável pelo assassinato do filho. e da nora
Cubadebate
Nos anos 1960, Gelman fez parte das Forças Armadas Revolucionárias e, posteriormente, do Movimento Peronista Montonero
“Não acredito que chegue aos 100 anos”, disse em entrevista ano passado ao jornal espanhol El País. “E ainda que queira ver casar os meus netos e ter algum bisneto, acredito que Deus, se existe, deve estar entediadíssimo com a sua eternidade", brincou. Gelman, que morreu tranquilamente, rodeado de familiares, sofria de uma disfunção ligada à medula óssea.
Na ditadura, seu filho Marcelo Ariel e a esposa, María Claudia Iruretagoyena, foram sequestrados. Após uma intensa busca que durou décadas, os restos de Marcelo foram identificados em 7 de janeiro de 1990, num rio de San Fernando dentro de um tonel de ferro cheio de cimento. Ficou comprovado que ele havia sido assassinado com um tiro na nuca.
Foi somente em 1998 que Gelman descobriu que a nora havia sidoi levada ao Uruguai por meio do Plano Condor -- rede de coordenação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul -- e que a havia mantido viva até dar a luz uma menina no Hospital Militar de Montevidéu. A neta de Gelman, Macarena, foi criada pela família de um policial uruguaio, que escondeu dela sua verdadeira identidade. Em 2000, ela foi encontrada e avô e neta se conheceram.
Cubadebate
Gelman e sua neta, Macarena, filha de Marcelo Ariel e María Claudia Iruretagoyena, mortos pelas ditaduras de Argentina e Uruguai
A última etapa de sua poesia reflete a dor por seus amigos desaparecidos, a terra distante e o desapego do exílio: Anunciaciones (1988), Carta a mi madre (1989), Salarios del impío (1992), La abierta oscuridad (1993), Incompletamente (1997) e Ni el flaco perdón de Dios (1997).
Em 1997, Gelman publicou a antologia pessoal Debí decir te amo e Prosa de prensa, livros que foram sucedidos por Tantear la noche (2000), Afganistán, Irak, el imperio empantanado (2003), País que fue, será (2004), Oficio ardiente (2005), Miradas (2006) e El emperrado corazón amora (2011).
Leia mais
Apesar de ter também assinado textos de prosa e até traduções, foi com a poesia que Gelman se afirmou: El Juego en que andamos, Velorio del solo, Cólera e Violín y otras cuestiones estão entre os seus títulos mais populares, num percurso que lhe valeu vários prêmios, como o Cervantes, o mais importante das letras espanholas, o Neruda ou o Rainha Sofia de Poesia Latino-americana.
Ditadura
Nos anos 1960, Gelman fez parte das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e, posteriormente, do Movimento Peronista Montonero (MPM), na Argentina. Ameaçado pela Aliança Anticomunista Argentina (Triple A ou AAA), o poeta foi obrigado a se exilar em 1975 e a trocar seu trabalho de jornalista, sua cidade e seus amigos por novas situações: Itália, França e México.
A "Triple A" era um esquadrão da morte de extrema direita que atuou principalmente durante a Presidência de Isabel Perón (1974-1976), e tinha como principal objetivo desestabilizar o governo através do assassinato de políticos e partidários de esquerda, como artistas, intelectuais, escritores, estudantes e historiadores, entre outros.
Leia abaixo, em espanhol, alguns poemas de Gelman:
Alza tus brazos…
Alza tus brazos,
ellos encierran a la noche,
desátala sobre mi sed,
tambor, tambor, mi fuego.
Que la noche nos cubra con una campana,
que suene suavemente a cada golpe del amor.
Entiérrame la sombra, lávame con ceniza,
cávame del dolor, límpiame el aire:
yo quiero amarte libre.
Tú destruyes el mundo para que esto suceda
tu comienzas el mundo para que esto suceda.
El juego en que andamos
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.
Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.
Límites
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí la sed,
hasta aquí el agua?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el aire,
hasta aquí el fuego?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el amor,
hasta aquí el odio?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el hombre,
hasta aquí no?
Sólo la esperanza tiene las rodillas nítidas.
Sangran.
Fidel
Del poemario “Gotán” (1962).
dirán exactamente de fidel
gran conductor el que incendió la historia etcétera
pero el pueblo lo llama el caballo y es cierto
fidel montó sobre fidel un día
se lanzó de cabeza contra el dolor contra la muerte
pero más todavía contra el polvo del alma
la Historia parlará de sus hechos gloriosos
prefiero recordarlo en el rincón del día
en que miró su tierra y dijo soy la tierra
en que miró su pueblo y dijo soy el pueblo
y abolió sus dolores sus sombras sus olvidos
y solo contra el mundo levantó en una estaca
su propio corazón el único que tuvo
lo desplegó en el aire como una gran bandera
como un fuego encendido contra la noche oscura
como un golpe de amor en la cara del miedo
como un hombre que entra temblando en el amor
alzó su corazón lo agitaba en el aire
lo daba de comer de beber de encender
fidel es un país
yo lo vi con oleajes de rostros en su rostro
la Historia arreglará sus cuentas allá ella
pero lo vi cuando subía gente por sus hubiéramos
buenas noches Historia agranda tus portones
entramos con fidel con el caballo
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domingo, 12 de janeiro de 2014
POESIA
Se se morre de amor
Gonçalo Dias
Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Gonçalo Dias
sábado, 21 de dezembro de 2013
poesia: Pablo Neruda
Morre lentamente – Pablo Neruda
Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projecto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projecto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade.
Pablo Neruda
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Reflexões brechtianas
Bertolt Brecht
Reflexões brechtianas
Bertolt
Brecht, poeta e dramaturgo alemão, nasceu na cidade de Augsburg, na
Baviera, em 1898, numa família de classe média -- seu pai era diretor
de uma fábrica de papel. Em 1917, matricula-se na Universidade de
Munique, para estudar Medicina, mas no ano seguinte é convocado pelo
exército e atua como enfermeiro numa clínica militar em sua cidade
natal.
Por Claudio Daniel
no vermelho
A
Europa vive então a I Guerra Mundial, conflito entre as principais
potências imperialistas, que resulta em 20 milhões de mortos. Em 1918,
a Alemanha é vencida, e as forças aliadas impõem, no Tratado de
Versalhes, uma série de compensações econômicas e territoriais ao país
derrotado, que mergulha em profunda crise.
Brecht, que vivencia esses trágicos acontecimentos, logo se entusiasma pela Revolução Russa e torna-se marxista, ao mesmo tempo que se interessa pelo teatro, participando do cabaré político do comediante Karl Valentin, em Munique. Durante o curto período democrático da República de Weimar, na década de 1920, que antecedeu a ascensão do nazismo, Brecht realiza os seus primeiros trabalhos dramáticos, como as peças Baal (1918) e Tambores da noite (1922).
Nesse período surge uma nova geração de poetas, cineastas, músicos, arquitetos, fotógrafos e artistas visuais, interessados na renovação estética e na denúncia da realidade social, como Fritz Lang, diretor do filme Metrópolis, o poeta August Stramm, os pintores do grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul) e músicos como Paul Hindemith e Kurt Weill (este último, futuro parceiro de Brecht em canções de conteúdo político e social). Os artistas da vanguarda alemã afastavam-se dos modelos clássicos, românticos e realistas e criavam novas formas estéticas que retratassem a miséria social, a crise de valores espirituais, a incerteza quanto ao futuro e a fragmentação da sociedade, cada vez mais sacudida por conflitos entre a classe operária e a burguesia alemã -- cujo ponto máximo foi a tentativa de revolução socialista liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, em 1918.
O estilo artístico que sobressai nessa época, especialmente no cinema,
na poesia e no teatro é o Expressionismo, que incorpora a paisagem
urbana, o mundo das máquinas e da indústria, a caricatura grotesca de
tipos sociais e o humor negro, mesclados à herança das lendas medievais
e do romantismo alemão, à temática sobrenatural, exótica ou perversa. O
Expressionismo não é um espelho do real, mas uma deformação voluntária
das formas (por exemplo, a geometria irregular dos cenários do filme O gabinete do dr. Caligari,
de Robert Wiener), expressão subjetiva do artista, que observa o mundo
com angústia e revolta. Frank Wedekind e Georg Buchner foram dois
autores teatrais expressionistas que influenciaram a concepção
artística de Brecht, assim como as peças populares da era vitoriana, o
teatro chinês e os musicais de cabaré. Frederic Jameson aponta ainda
ressonâncias de James Joyce, Eisenstein e do cubofuturismo russo na
obra dramática do autor alemão, que desenvolveu uma nova forma de
teatro, que integrava cenografia, montagem, poesia, narração, dança,
música e a interpretação dos atores para envolver os sentidos e a
inteligência do público (in Jameson, 1999: 110).
Comentando a peça Santa Joana dos Matadouros, Roberto Schwartz observa que “o ritmo da dicção é submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidade específica, a qual vai primar também sobre a musicalidade da palavra” (in Brecht: 2009,12). Anatol Rosenfeld, no posfácio que escreveu para a edição brasileira de Cruzada das crianças, observa: “O que Brecht exige é a transformação produtiva das formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais” (in Campos, 1997: 139). Conforme o estudioso brasileiro, “isto explica a pesquisa incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte”.
A estratégia criativa de Brecht aproxima-se da concepção do poeta russo Vladimir Maiakovski, para quem “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária”. Para os dois autores, comprometidos com a transformação estética e com a transformação do mundo, “a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram inseparáveis” (idem).
Brecht não quer causar impacto emocional na platéia, mas levá-la a uma reflexão política, incentivando o seu espectador a tomar o partido dos oprimidos contra os opressores. É um teatro épico, revolucionário. Anatol Rosenfeld afirma: “Foi desde 1926 que Brecht começou a falar de ‘teatro épico’, depois de pôr de lado o termo ‘drama épico’, visto que o cunho narrativo da sua obra somente se completa no palco" (Rosenfeld, 1985, p. 146). O primeiro texto teórico de Brecht sobre o teatro épico aparece no prefácio à montagem de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, sátira política com texto de Brecht e música de Kurt Weill, encenada pela primeira vez em Leipzig, em 1930, e depois em Berlim, em 1931. Ao contrário do teatro dramático, fundamentado na Poética de Aristóteles, o teatro épico rompe com as noções lineares de tempo e espaço e deixa de lado a catarse, o envolvimento emocional do público, e a mimese, ou imitação fiel da realidade, que na opinião de Brecht deixariam o homem passivo em relação ao mundo. O drama épico, que deixa explícita a diferença entre a peça representada e o mundo, quer provocar uma reação intelectual no espectador, motivá-lo a questionar os valores e estruturas vigentes no mundo, que podem e devem ser transformadas.
Uma peça que se destaca na dramaturgia brechtiana é Santa Joana dos Matadouros (1929-31), cujo tema, segundo Roberto Schwartz, é “a crise do capitalismo, cujo ciclo de prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração do capital determina as estações do entrecho” (in Brecht: 2009, 9). Os personagens dessa obra insólita, continua o autor, são “a massa trabalhadora, empregada ou desempregada, os magnatas da indústria da carne, os especuladores e – disputando as consciências – os comunistas e uma variante do Exército da Salvação (os Boinas Pretas)”.
Brecht retrata a luta de classes e a situação miserável das camadas mais pobres da população sem cair numa estética de tipo naturalista, mais frequente nas peças de agitação política. Podemos observar, em sua técnica narrativa, uma semelhança com o cinema de Eisenstein, como o filme Encouraçado Potemkin, em que a montagem das cenas obedece a uma ordem associativa, metafórica, analógica, como acontece na estrutura do ideograma japonês. A este respeito, observa Haroldo de Campos: "A influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica" (Campos, 1997: 140).
A estrutura das peças de Brecht, ao romper com a linearidade de tempo e de espaço e adotar uma ordem analógica, produz um efeito anti-ilusionista. Conforme Walter Jens, no posfácio aos Poemas Escolhidos do autor alemão, citado por Campos, "este efeito se encontra especialmente em poemas escritos no exílio (...), no fim da década de 1930. Nessas composições lacônicas (Hollywood é um exemplo paradigmal), o poeta, trabalha preferencialmente com reduções, com rarefações e abreviaturas estilísticas, de uma tal audácia que o contexto omitido compensa a dimensão escrita do texto".
O método poético adotado por Brecht nestas composições, continua Jens,
consistiria em “enfileirar frases justapostas, entre as quais o leitor,
para compreender o texto, deve inserir articulações”. Anatol Rosenfeld,
analisando esse procedimento à luz do Verfremdungseffekt (“efeito
de alienação”), típico do teatro brechtiano, acrescenta: “O choque
alienador é suscitado pela omissão sarcástica de toda uma série de elos
lógicos, fato que leva à confrontação de situações aparentemente
desconexas e mesmo absurdas. Ao leitor assim provocado cabe a tarefa de
restabelecer o nexo” (idem, 140-141). Um bom exemplo desta técnica é o
poema O primeiro olhar pela janela de manhã, traduzido por Haroldo de Campos:
Haroldo de Campos, no livro O Arco-Íris Branco, apresenta um interessante ensaio – O duplo compromisso de Bertolt Brecht – acompanhado de várias traduções da poesia do autor alemão, com ênfase nas peças mais elípticas, enigmáticas e lacunares, como estas, de nítidas ressonâncias da poética chinesa e japonesa:
Claro – esta é uma das facetas da obra poética de Brecht, que é bastante variada na temática e na arquitetura estilística, embora seja menos conhecida e estudada do que o conjunto de suas peças para o teatro. Otto Maria Carpeaux, no livro A literatura alemã, declara: “Muitos o consideram como o maior dramaturgo do século XX. Enquanto isso, fala-se muito menos de sua poesia lírica que, sendo dificilmente traduzível, pouco se conhece no estrangeiro. É, porém, necessário salientar que Brecht foi antes de tudo um grande poeta (...). É um dos poetas mais tipicamente alemães da literatura alemã”. (Carpeaux: 1994: 285)
Willi Bolle considera que “Bertolt Brecht trouxe para a poesia urbana a proposta de uma nova sensibilidade, caracterizada por um olhar sóbrio sobre o cotidiano. Seus poemas falam do ritual de se lavar, da leitura do jornal ao fazer o chá, do pequeno aparelho de rádio, do dinheiro, do desemprego, do registro das ‘palavras que gritam aos outros’. A poesia de Brecht é política no sentido próprio da palavra: propõe elucidar as leis da convivência entre os homens na ‘polis’, a metrópole contemporânea, que já não é cidade-mãe, mas praça mercantil ‘onde se negocia o ser humano’.” (in Brecht, 2001). A lírica brechtiana também aborda temas como a natureza, a fuga, o exílio, a morte, o amor, o Oriente, mas, como adverte Willi Bolle, “há uma decidida ruptura com os moldes românticos. (...) O que o poeta diz do amor? ‘Do amor cuidei displicente’ – ao contrário do que pode sugerir este verso, que representa um papel, não uma confissão, Brecht dedicou muita atenção ao amor. Certamente mais do que os editores alemães, que retardaram a publicação dos poemas eróticos e os separaram do resto da obra”.
Brecht escreveu versos durante a vida toda. Seu primeiro livro de poemas, publicado em 1925, foi Hauspostille,
título de difícil tradução, que remete aos breviários, ou livros de
devoção, que os protestantes costumavam ler em casa (recordemos que a
mãe de Brecht era luterana devota). Esta obra, como ressalva Carpeaux,
“é evidentemente o contrário de um livro de devoção. São baladas em
estilo popular sobre crimes célebres da época, sendo invariavelmente os
criminosos elogiados e a Justiça e a moral burguesa vilipendiadas.
(...) Essa poesia de cabaré engagé é, como disse um crítico católico, o
‘breviário do diabo’. Mas não é poesia revolucionária, apesar de todos
os ataques às convenções religiosas, apesar de todos os ataques às
convenções religiosas e políticas. É a expressão de um niilismo total”
(Carpeaux, 1994: 285-286).
Um poema que se destaca no livro de estreia de Brecht é A infanticida Marie Farrar, que vamos ler agora, na tradução de Paulo César de Souza:
Este poema tem notável semelhança formal com a Balada dos Enforcados,
de François Villon, também composta em estrofes de dez versos – mas, ao
contrário do autor francês, que compôs o seu poema em notáveis
decassílabos, Brecht preferiu o verso livre, em ritmo de balada. A
principal chave para a leitura intertextual está nos dois versos finais
que se repetem a cada estrofe, ou com ligeiras modificações, em ambos
os poemas. Brecht: “Por isso lhes peço que não fiquem indignados / Pois
todos nós precisamos de ajuda, coitados”. Villon: “Que de nossa aflição
ninguém se ria, / Mas suplicai a Deus por todos nós”.
O refrão, que no caso do poeta francês remete à compaixão universal ensinada pelo cristianismo, no caso de Brecht indica a solidariedade com os miseráveis, vítimas de um sistema econômico e social injusto, que condena, hipocritamente, o crime de Marie Farrar, ao mesmo tempo que fecha os olhos à situação que a levou a cometer o infanticídio. A inversão de papeis nas peças e poemas de Brecht, em que o criminoso ou proscrito por vezes assume a posição de herói, recorda também a lenda criada em torno de Villon, que teria sido, conforme alguns relatos, bêbado, ladrão e assassino – portanto um pária, à margem das normas da sociedade medieval.
No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:
Os heróis de Brecht, em seu teatro e em sua poesia, são sempre os excluídos, os malditos, sejam eles operários, camponeses, prostitutas, bêbados, vagabundos, todos aqueles que, nos quatro cantos do globo, eram colocados sob suspeita pela sociedade capitalista, e que – acreditava o poeta – um dia iriam se levantar contra a opressão, hipótese que se tornou crível a partir da derrota e fuga dos exércitos nazistas da Europa Oriental e do surgimento das repúblicas de democracia popular, lideradas pelos comunistas. Brecht acreditou com sinceridade no modelo do chamado socialismo real, e foi um cidadão orgulhoso da República Democrática Alemã até a sua morte, em 1956.
A proximidade entre a poesia de Brecht e as baladas tradicionais já foi observada por Otto Maria Carpeaux, para quem o verso do autor alemão tem o feitio “de canção popular e da balada popular, é deliberadamente primitivo”, sendo moderno “apenas pelo uso da linguagem dos jornais e da vida cotidiana”. O prosaísmo de Brecht, segundo Carpeaux, “é herança da ‘objetividade nova’. Mas o milagre é esse: que esses versos primitivos e essa linguagem prosaica fazem profunda impressão poética, às vezes até sentimental; e gravam-se na memória como se os tivéssemos conhecido desde sempre” (Carpeaux: 1994, 286).
A Nova Objetividade foi um movimento artístico alemão surgido na década de 1920 como reação ao Expressionismo -- recusava a expressão mais subjetiva e colocava em primeiro plano a denúncia social, a crítica mordaz à burguesia e à guerra. Trata-se portanto de uma arte de forte acento realista que recusava as inclinações abstratas defendidas pelo grupo Die Brücke [A Ponte]. O termo foi criado em 1923 por Gustav Hartlaub, que publicou um artigo nos jornais manifestando a intenção de realizar uma exposição com o título Nova Objetividade, que ocorreu dois anos depois no Kunsthalle de Munique e deu nome à nova tendência figurativa da arte alemã das primeiras décadas do século XX. O movimento sofreu forte perseguição dos nazistas e deixou de existir em meados de 1930. Um poema de Brecht que representa bem a dicção realista é a conhecida peça Perguntas de um trabalhador que lê, publicado no livro Svendborger Gedichte (Poesias de Svenborg), escrito quando Brecht estava exilado da Alemanha nazista:
Notável, nesta reunião de poemas de Brecht, a fusão entre o eu lírico,
o eu social e o rigoroso artesanato de linguagem, que se manifesta em
versos de alta precisão e objetividade, como na conhecida peça
O poema, construído na forma de dísticos rimados, recorda o estilo coloquial-satírico do poeta francês Jules Laforgue (que aliás viveu na Alemanha, onde foi leitor da imperatriz), em especial o da série de litanias da lua, como na peça que apresentamos a seguir:
A intertextualidade é um recurso frequente em Brecht – como vimos em seus diálogos com Villon e Laforgue – e assinalam, mais do que a exibição narcísica da referência erudita, uma tomada de posição, uma filiação poética, junto à estirpe dos poetas malditos, sarcásticos, questionadores das normas vigentes na poesia e na sociedade. O diálogo com Laforgue nos parece bastante natural, sobretudo se recordarmos o comentário feito por Mário Faustino sobre o poeta francês: "Jules Laforgue (1860-87): mais um jovem de gênio (Rimbaud, Corbière...) a explodir na língua francesa para desmoralização de uma rotina ética e estética e para preparar o terreno de um novo mundo (ainda hoje por vir). O processo que deu origem a Laforgue: decadência do mundo capitalista, miséria existencial do homem do fin-de-siècle, falácias e panaceias burguesas (Amor etc.) e a linhagem Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière" (Faustino, 2004: 184). Curioso observar que nesta breve nota crítica -- mas concentrada e densa, como toda a obra crítica de Faustino -- o autor faz um paralelo entre o francês Laforgue e o alemão Heinrich Heine, seu possível precursor na objetividade, precisão e ironia. Os dois poetas -- assim como Brecht -- limparam a linguagem poética de adornos e ornamentos decadentistas, colocando em primeiro plano os substantivos, as coisas. Heine é, sem dúvida, um dos precursores de Brecht na língua alemã, inclusive no campo político, se pensarmos em poemas como Os tecelões da Silésia, de 1844, e de seu posicionamento político, de claro perfil socialista, embora sem estar filiado a nenhum dos partidos operários de sua época.
Na poesia política de Brecht, herdeira da lírica inconformista de Heine, predominam quatro temas: o da natureza predatória do capitalismo -- especialmente da especulação financeira --, o elogio da revolução socialista, a denúncia do nazismo e o testemunho dos horrores da II Guerra Mundial. Brecht abandonou a Alemanha logo após ascensão de Hitler, em 1933, e viveu no exílio em diversos países europeus até 1941, partindo depois para os Estados Unidos, onde vive até 1947. Sua produção ao longo dos anos 1930-1940 é fortemente marcada pelos acontecimentos internacionais, assim como ocorreu na obra de Carlos Drummond de Andrade, sobretudo no livro Rosa do Povo, com.o qual também poderíamos traçar um curioso paralelo:
e:
A poesia de Brecht, como a de Drummond, nesse período, é uma poesia de
resistência e combate, em que o eu lírico não se oculta, mas está
presente em sua angústia, em suas dúvidas, em sua fragmentação (que é
também a fragmentação do mundo), e ainda no júbilo epifânico que traduz
a esperança utópica, em flashes como este:
Testemunha dos trágicos acontecimentos da era nacional-socialista, Brecht relata em seus poemas, como se fossem pequenas crônicas ou notas de um historiador, eventos como a queima pública de livros de autores incômodos ao regime, os métodos de intimidação das tropas de assalto, a resistência dos operários alemães nas fábricas, a experiência do exílio de poetas e intelectuais e ainda os conflitos psicológicos de uma nação dominada pelo medo. A crônica política de Brecht, porém, não se resume à narrativa de fatos históricos, aos moldes de um jornalismo poético, orientado pelo espírito militante e pela leitura do materialismo histórico e dialético do pensamento marxista. O poeta, consciente do valor estético do artesanato linguístico e do caráter atemporal da tragédia humana, incorpora em poemas políticos elementos da fábula, da parábola, da alegoria, mistura diferentes referências históricas e repertórios culturais, numa miscigenação universalista, quase barroca. No poema Canção de Salomão, de linguagem coloquial e humor provocativo, os protagonistas são o personagem bíblico que dá título ao poema, a rainha egípcia Cleópatra, Júlio César e o próprio poeta alemão, condenados pelo desejo excessivo de poder, de prazer e de saber:
O tema do exílio é recorrente no autor, que viveu longe da Alemanha entre 1933 e 1949, quando fixa-se na República Democrática Alemã. No poema A emigração dos poetas, Brecht faz um interessante paralelo entre a sua experiência de fugitivo e a de outros poetas que admirava, usando novamente o procedimento de recorte e montagem de elementos de diferentes épocas, culturas e países:
Neste poema, encontramos autores já citados no presente ensaio como precursores da poética brechtiana, entre eles Villon, Heine e os chineses Li-Po e Tu-Fu. A presença chinesa é evidente não apenas nas peças mais breves e concisas traduzidas e comentadas por Haroldo de Campos, em que se destacam a justaposição de imagens e estrofes à maneira do ideograma, mas ainda nas traduções criativas que o autor de A boa alma de Se-Tzuan realizou de versos clássicos de Po Chu-yi, Ts’ao Sung e de autores anônimos do cânone tradicional do Império do Meio, não raro escolhendo os poemas por seu viés crítico e temática atemporal. Neste sentido, as traduções de Brecht podem ser comparadas às personae de Ezra Pound, que também vestia a máscara dramática de autores da Antiguidade, da Idade Média ou do Renascimento para manifestar o seu desconforto com o desconcerto do mundo. Assim, por exemplo, nesta breve peça recriada pelo autor alemão:
Reler Brecht é uma experiência rica e de extrema atualidade, que nos faz pensar sobre os aspectos éticos e estéticos da criação literária e, não menos importante, sobre a escolha que o artista tem a liberdade de fazer entre a cooptação pela cultura de mercado e o compromisso com a construção de uma nova realidade.
Bibliografia:
Brecht, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.
Brecht, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: editora 34, 2001.
Campos, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
Carpeaux, Otto Maria. A literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
Faustino, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Jameson, Frederic. Método Brecht. São Paulo: Vozes, 1999.
Peixoto, Fernando. Brecht vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 2ª. edição.
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. SP: Editora Perspectiva, 1985.
(*) Claudio Daniel é poeta, curador de Literatura do Centro Cultural São Paulo, colunista da CULT e editor de Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.revistazunai.com).
Brecht, que vivencia esses trágicos acontecimentos, logo se entusiasma pela Revolução Russa e torna-se marxista, ao mesmo tempo que se interessa pelo teatro, participando do cabaré político do comediante Karl Valentin, em Munique. Durante o curto período democrático da República de Weimar, na década de 1920, que antecedeu a ascensão do nazismo, Brecht realiza os seus primeiros trabalhos dramáticos, como as peças Baal (1918) e Tambores da noite (1922).
Nesse período surge uma nova geração de poetas, cineastas, músicos, arquitetos, fotógrafos e artistas visuais, interessados na renovação estética e na denúncia da realidade social, como Fritz Lang, diretor do filme Metrópolis, o poeta August Stramm, os pintores do grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul) e músicos como Paul Hindemith e Kurt Weill (este último, futuro parceiro de Brecht em canções de conteúdo político e social). Os artistas da vanguarda alemã afastavam-se dos modelos clássicos, românticos e realistas e criavam novas formas estéticas que retratassem a miséria social, a crise de valores espirituais, a incerteza quanto ao futuro e a fragmentação da sociedade, cada vez mais sacudida por conflitos entre a classe operária e a burguesia alemã -- cujo ponto máximo foi a tentativa de revolução socialista liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, em 1918.
Epitáfio, 1919
A Rosa Vermelha desapareceu
Para onde ela foi, é um mistério
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram de seu império
(Tradução: Paulo César de Souza)
Comentando a peça Santa Joana dos Matadouros, Roberto Schwartz observa que “o ritmo da dicção é submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidade específica, a qual vai primar também sobre a musicalidade da palavra” (in Brecht: 2009,12). Anatol Rosenfeld, no posfácio que escreveu para a edição brasileira de Cruzada das crianças, observa: “O que Brecht exige é a transformação produtiva das formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais” (in Campos, 1997: 139). Conforme o estudioso brasileiro, “isto explica a pesquisa incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte”.
A estratégia criativa de Brecht aproxima-se da concepção do poeta russo Vladimir Maiakovski, para quem “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária”. Para os dois autores, comprometidos com a transformação estética e com a transformação do mundo, “a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram inseparáveis” (idem).
Eu, que nada mais amo
Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado.
(Tradução: Paulo César de Souza)
Brecht não quer causar impacto emocional na platéia, mas levá-la a uma reflexão política, incentivando o seu espectador a tomar o partido dos oprimidos contra os opressores. É um teatro épico, revolucionário. Anatol Rosenfeld afirma: “Foi desde 1926 que Brecht começou a falar de ‘teatro épico’, depois de pôr de lado o termo ‘drama épico’, visto que o cunho narrativo da sua obra somente se completa no palco" (Rosenfeld, 1985, p. 146). O primeiro texto teórico de Brecht sobre o teatro épico aparece no prefácio à montagem de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, sátira política com texto de Brecht e música de Kurt Weill, encenada pela primeira vez em Leipzig, em 1930, e depois em Berlim, em 1931. Ao contrário do teatro dramático, fundamentado na Poética de Aristóteles, o teatro épico rompe com as noções lineares de tempo e espaço e deixa de lado a catarse, o envolvimento emocional do público, e a mimese, ou imitação fiel da realidade, que na opinião de Brecht deixariam o homem passivo em relação ao mundo. O drama épico, que deixa explícita a diferença entre a peça representada e o mundo, quer provocar uma reação intelectual no espectador, motivá-lo a questionar os valores e estruturas vigentes no mundo, que podem e devem ser transformadas.
Uma peça que se destaca na dramaturgia brechtiana é Santa Joana dos Matadouros (1929-31), cujo tema, segundo Roberto Schwartz, é “a crise do capitalismo, cujo ciclo de prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração do capital determina as estações do entrecho” (in Brecht: 2009, 9). Os personagens dessa obra insólita, continua o autor, são “a massa trabalhadora, empregada ou desempregada, os magnatas da indústria da carne, os especuladores e – disputando as consciências – os comunistas e uma variante do Exército da Salvação (os Boinas Pretas)”.
Brecht retrata a luta de classes e a situação miserável das camadas mais pobres da população sem cair numa estética de tipo naturalista, mais frequente nas peças de agitação política. Podemos observar, em sua técnica narrativa, uma semelhança com o cinema de Eisenstein, como o filme Encouraçado Potemkin, em que a montagem das cenas obedece a uma ordem associativa, metafórica, analógica, como acontece na estrutura do ideograma japonês. A este respeito, observa Haroldo de Campos: "A influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica" (Campos, 1997: 140).
A estrutura das peças de Brecht, ao romper com a linearidade de tempo e de espaço e adotar uma ordem analógica, produz um efeito anti-ilusionista. Conforme Walter Jens, no posfácio aos Poemas Escolhidos do autor alemão, citado por Campos, "este efeito se encontra especialmente em poemas escritos no exílio (...), no fim da década de 1930. Nessas composições lacônicas (Hollywood é um exemplo paradigmal), o poeta, trabalha preferencialmente com reduções, com rarefações e abreviaturas estilísticas, de uma tal audácia que o contexto omitido compensa a dimensão escrita do texto".
Hollywood
Toda manhã, para ganhar meu pão
Vou ao mercado, onde se compram mentiras.
Cheio de esperança
alinho-me entre os vendedores.
(Tradução: Haroldo de Campos)
O primeiro olhar pela janela de manhã
O primeiro olhar pela janela de manhã.
O velho livro redescoberto.
Rostos entusiasmados.
Neve, o câmbio das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Duchas, nadar.
Música antiga.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser cordial.
Haroldo de Campos, no livro O Arco-Íris Branco, apresenta um interessante ensaio – O duplo compromisso de Bertolt Brecht – acompanhado de várias traduções da poesia do autor alemão, com ênfase nas peças mais elípticas, enigmáticas e lacunares, como estas, de nítidas ressonâncias da poética chinesa e japonesa:
Epitáfio
Escapei aos tigres
Nutri os percevejos
Fui devorado
Pela mediocridade
A máscara do mal
Na minha parede, a máscara de madeira
de um demônio maligno, japonesa –
ouro e laca.
Compassivo, observo
as túmidas veias frontais, denunciando
o esforço de ser maligno.
Sobre um leão chinês de rais de chá
Os maus temem tuas garras.
Os bons alegram-se com teu garbo.
O mesmo
quero ouvir
de meus versos.
Claro – esta é uma das facetas da obra poética de Brecht, que é bastante variada na temática e na arquitetura estilística, embora seja menos conhecida e estudada do que o conjunto de suas peças para o teatro. Otto Maria Carpeaux, no livro A literatura alemã, declara: “Muitos o consideram como o maior dramaturgo do século XX. Enquanto isso, fala-se muito menos de sua poesia lírica que, sendo dificilmente traduzível, pouco se conhece no estrangeiro. É, porém, necessário salientar que Brecht foi antes de tudo um grande poeta (...). É um dos poetas mais tipicamente alemães da literatura alemã”. (Carpeaux: 1994: 285)
Willi Bolle considera que “Bertolt Brecht trouxe para a poesia urbana a proposta de uma nova sensibilidade, caracterizada por um olhar sóbrio sobre o cotidiano. Seus poemas falam do ritual de se lavar, da leitura do jornal ao fazer o chá, do pequeno aparelho de rádio, do dinheiro, do desemprego, do registro das ‘palavras que gritam aos outros’. A poesia de Brecht é política no sentido próprio da palavra: propõe elucidar as leis da convivência entre os homens na ‘polis’, a metrópole contemporânea, que já não é cidade-mãe, mas praça mercantil ‘onde se negocia o ser humano’.” (in Brecht, 2001). A lírica brechtiana também aborda temas como a natureza, a fuga, o exílio, a morte, o amor, o Oriente, mas, como adverte Willi Bolle, “há uma decidida ruptura com os moldes românticos. (...) O que o poeta diz do amor? ‘Do amor cuidei displicente’ – ao contrário do que pode sugerir este verso, que representa um papel, não uma confissão, Brecht dedicou muita atenção ao amor. Certamente mais do que os editores alemães, que retardaram a publicação dos poemas eróticos e os separaram do resto da obra”.
Canto de uma amada
1. Eu sei amada: agora me caem os cabelos, nessa vida dissoluta, e eu
tenho que deitar nas pedras. Vocês me vêem bebendo as cachaças mais
baratas, e eu ando nu no vento.
2. Mas houve um tempo, amada, em que era puro.
3. Eu tinha um mulher mais forte que eu, como o capim é mais forte que o touro: ele se levanta de novo.
4. Ela via que eu era mau, e me amou.
5. Ela não perguntava para onde ia o caminho que era seu. e talvez ele
fosse para baixo. Ao me dar o seu corpo, ela disse: Isso é tudo. E seu
corpo se tornou meu corpo.
6. Agora ela não está mais em lugar nenhum, desapareceu como nuvem após a chuva, ela caiu, pois este era seu caminho.
7. Mas a noite, às vezes, quando me vêem bebendo, vejo o rosto dela,
pálido no vento, forte, voltado para mim, e me inclino no vento.
(Tradução: Paulo César de Souza).
Um poema que se destaca no livro de estreia de Brecht é A infanticida Marie Farrar, que vamos ler agora, na tradução de Paulo César de Souza:
1
Marie Farrar, nascida em abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
2
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
3
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
4
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
5
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como diz, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém
E não podemos desprezá-la por isso.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
6
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como é você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
E os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos precisamos de ajuda, coitados.
7
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
8
Então, entre o quarto e o sanitário — diz que
Até então não havia acontecido — a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
9
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de “abençoada” sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
Por isso lhes peço que não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
O refrão, que no caso do poeta francês remete à compaixão universal ensinada pelo cristianismo, no caso de Brecht indica a solidariedade com os miseráveis, vítimas de um sistema econômico e social injusto, que condena, hipocritamente, o crime de Marie Farrar, ao mesmo tempo que fecha os olhos à situação que a levou a cometer o infanticídio. A inversão de papeis nas peças e poemas de Brecht, em que o criminoso ou proscrito por vezes assume a posição de herói, recorda também a lenda criada em torno de Villon, que teria sido, conforme alguns relatos, bêbado, ladrão e assassino – portanto um pária, à margem das normas da sociedade medieval.
No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:
Quando enfim chegou ao Paraíso
São Pedro o portão trancou
Deus disse: “Não vou acolher no céu
A puta Evelyn Roe”.
Também quando ao Inferno ela chegou
A porta na cara levou
E o diabo gritou: “Não quero aqui
A beata Evelyn Roe”.
(Tradução: Tatiana Berlinky / Maria Alice Vergueiro / Catherine Hirsch)
Os heróis de Brecht, em seu teatro e em sua poesia, são sempre os excluídos, os malditos, sejam eles operários, camponeses, prostitutas, bêbados, vagabundos, todos aqueles que, nos quatro cantos do globo, eram colocados sob suspeita pela sociedade capitalista, e que – acreditava o poeta – um dia iriam se levantar contra a opressão, hipótese que se tornou crível a partir da derrota e fuga dos exércitos nazistas da Europa Oriental e do surgimento das repúblicas de democracia popular, lideradas pelos comunistas. Brecht acreditou com sinceridade no modelo do chamado socialismo real, e foi um cidadão orgulhoso da República Democrática Alemã até a sua morte, em 1956.
A proximidade entre a poesia de Brecht e as baladas tradicionais já foi observada por Otto Maria Carpeaux, para quem o verso do autor alemão tem o feitio “de canção popular e da balada popular, é deliberadamente primitivo”, sendo moderno “apenas pelo uso da linguagem dos jornais e da vida cotidiana”. O prosaísmo de Brecht, segundo Carpeaux, “é herança da ‘objetividade nova’. Mas o milagre é esse: que esses versos primitivos e essa linguagem prosaica fazem profunda impressão poética, às vezes até sentimental; e gravam-se na memória como se os tivéssemos conhecido desde sempre” (Carpeaux: 1994, 286).
A Nova Objetividade foi um movimento artístico alemão surgido na década de 1920 como reação ao Expressionismo -- recusava a expressão mais subjetiva e colocava em primeiro plano a denúncia social, a crítica mordaz à burguesia e à guerra. Trata-se portanto de uma arte de forte acento realista que recusava as inclinações abstratas defendidas pelo grupo Die Brücke [A Ponte]. O termo foi criado em 1923 por Gustav Hartlaub, que publicou um artigo nos jornais manifestando a intenção de realizar uma exposição com o título Nova Objetividade, que ocorreu dois anos depois no Kunsthalle de Munique e deu nome à nova tendência figurativa da arte alemã das primeiras décadas do século XX. O movimento sofreu forte perseguição dos nazistas e deixou de existir em meados de 1930. Um poema de Brecht que representa bem a dicção realista é a conhecida peça Perguntas de um trabalhador que lê, publicado no livro Svendborger Gedichte (Poesias de Svenborg), escrito quando Brecht estava exilado da Alemanha nazista:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia, várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu alem dele?
Cada pagina uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
(Tradução: Paulo César de Souza).
Lista de Preferências de Orge
Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.
Casos, os inconcebíveis;
Conselhos, os inexequíveis.
Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.
Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.
Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.
Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.
Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.
Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.
Cores, o rubro.
Meses, outubro
Elementos, os Fogos
Divindades, o Logos.
Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.
(Tradução: Paulo César de Souza)
O poema, construído na forma de dísticos rimados, recorda o estilo coloquial-satírico do poeta francês Jules Laforgue (que aliás viveu na Alemanha, onde foi leitor da imperatriz), em especial o da série de litanias da lua, como na peça que apresentamos a seguir:
Litanias dos Quartos
Crescentes da Lua
Lua sublime,
Nos ilumine!
É o medalhão
De Endimião,
Astro de argila
Que tudo exila,
Caixão milenar
De Salambô lunar,
Cais etéreo
Do alto mistério,
Madona e miss,
Diana-Artemis,
Santa vigia
De nossa orgia,
Jetaturá
Do bacará,
Dama tão pálida
Em nossa praça,
Vago perfume
De vaga-lume,
Rosácea calma
Do último salmo,
Olho-de-gata
Que nos resgata,
Seja o auxílio
A nosso delírio!
Seja o edredão
Do Grande Perdão!
(Tradução: Claudio Daniel).
A intertextualidade é um recurso frequente em Brecht – como vimos em seus diálogos com Villon e Laforgue – e assinalam, mais do que a exibição narcísica da referência erudita, uma tomada de posição, uma filiação poética, junto à estirpe dos poetas malditos, sarcásticos, questionadores das normas vigentes na poesia e na sociedade. O diálogo com Laforgue nos parece bastante natural, sobretudo se recordarmos o comentário feito por Mário Faustino sobre o poeta francês: "Jules Laforgue (1860-87): mais um jovem de gênio (Rimbaud, Corbière...) a explodir na língua francesa para desmoralização de uma rotina ética e estética e para preparar o terreno de um novo mundo (ainda hoje por vir). O processo que deu origem a Laforgue: decadência do mundo capitalista, miséria existencial do homem do fin-de-siècle, falácias e panaceias burguesas (Amor etc.) e a linhagem Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière" (Faustino, 2004: 184). Curioso observar que nesta breve nota crítica -- mas concentrada e densa, como toda a obra crítica de Faustino -- o autor faz um paralelo entre o francês Laforgue e o alemão Heinrich Heine, seu possível precursor na objetividade, precisão e ironia. Os dois poetas -- assim como Brecht -- limparam a linguagem poética de adornos e ornamentos decadentistas, colocando em primeiro plano os substantivos, as coisas. Heine é, sem dúvida, um dos precursores de Brecht na língua alemã, inclusive no campo político, se pensarmos em poemas como Os tecelões da Silésia, de 1844, e de seu posicionamento político, de claro perfil socialista, embora sem estar filiado a nenhum dos partidos operários de sua época.
Na poesia política de Brecht, herdeira da lírica inconformista de Heine, predominam quatro temas: o da natureza predatória do capitalismo -- especialmente da especulação financeira --, o elogio da revolução socialista, a denúncia do nazismo e o testemunho dos horrores da II Guerra Mundial. Brecht abandonou a Alemanha logo após ascensão de Hitler, em 1933, e viveu no exílio em diversos países europeus até 1941, partindo depois para os Estados Unidos, onde vive até 1947. Sua produção ao longo dos anos 1930-1940 é fortemente marcada pelos acontecimentos internacionais, assim como ocorreu na obra de Carlos Drummond de Andrade, sobretudo no livro Rosa do Povo, com.o qual também poderíamos traçar um curioso paralelo:
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
(Versos iniciais de O medo, de Carlos Drummond de Andrade)
e:
Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado quem realmente governava lá, respondeu:
O medo.
(Versos iniciais do poema Os medos do regime)
(Tradução: Paulo César de Souza).
Orgulho
Quando o soldado americano me contou
Que as alemãs filhas de burgueses
Vendiam-se por tabaco, e as filhas de pequeno-burgueses por chocolate
As esfomeadas trabalhadoras escravas russas, porém, não se vendiam
Senti orgulho.
Testemunha dos trágicos acontecimentos da era nacional-socialista, Brecht relata em seus poemas, como se fossem pequenas crônicas ou notas de um historiador, eventos como a queima pública de livros de autores incômodos ao regime, os métodos de intimidação das tropas de assalto, a resistência dos operários alemães nas fábricas, a experiência do exílio de poetas e intelectuais e ainda os conflitos psicológicos de uma nação dominada pelo medo. A crônica política de Brecht, porém, não se resume à narrativa de fatos históricos, aos moldes de um jornalismo poético, orientado pelo espírito militante e pela leitura do materialismo histórico e dialético do pensamento marxista. O poeta, consciente do valor estético do artesanato linguístico e do caráter atemporal da tragédia humana, incorpora em poemas políticos elementos da fábula, da parábola, da alegoria, mistura diferentes referências históricas e repertórios culturais, numa miscigenação universalista, quase barroca. No poema Canção de Salomão, de linguagem coloquial e humor provocativo, os protagonistas são o personagem bíblico que dá título ao poema, a rainha egípcia Cleópatra, Júlio César e o próprio poeta alemão, condenados pelo desejo excessivo de poder, de prazer e de saber:
O indiscreto Brecht quis saber
Escutem suas canções
Como os ricos têm poder
De acumular tantos milhões
Pobre no exílio foi parar
Brecht xereta
Bisbilhoteiro
E com o tempo a correr
Enfim o mundo percebeu
Fuçar demais foi a sua perdição
Melhor viver na discrição...
(Fragmento traduzido por Luiz Roberto Galizia).
O tema do exílio é recorrente no autor, que viveu longe da Alemanha entre 1933 e 1949, quando fixa-se na República Democrática Alemã. No poema A emigração dos poetas, Brecht faz um interessante paralelo entre a sua experiência de fugitivo e a de outros poetas que admirava, usando novamente o procedimento de recorte e montagem de elementos de diferentes épocas, culturas e países:
Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Tu-Fu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípedes foi ameaçado com processos
E Shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o teto de palha dinamarquês.
(Tradução: Paulo César de Souza).
Neste poema, encontramos autores já citados no presente ensaio como precursores da poética brechtiana, entre eles Villon, Heine e os chineses Li-Po e Tu-Fu. A presença chinesa é evidente não apenas nas peças mais breves e concisas traduzidas e comentadas por Haroldo de Campos, em que se destacam a justaposição de imagens e estrofes à maneira do ideograma, mas ainda nas traduções criativas que o autor de A boa alma de Se-Tzuan realizou de versos clássicos de Po Chu-yi, Ts’ao Sung e de autores anônimos do cânone tradicional do Império do Meio, não raro escolhendo os poemas por seu viés crítico e temática atemporal. Neste sentido, as traduções de Brecht podem ser comparadas às personae de Ezra Pound, que também vestia a máscara dramática de autores da Antiguidade, da Idade Média ou do Renascimento para manifestar o seu desconforto com o desconcerto do mundo. Assim, por exemplo, nesta breve peça recriada pelo autor alemão:
Um protesto no sexto ano de Chien Fu
Os rios e morros da planície
Transformais em vosso campo de batalha.
Como, pensais, o povo que aqui vive
Poderá se abastecer de “madeira e feno”?
Poupai-me por favor vosso palavreado
De nomeações e títulos.
A reputação de um único general
Significa: dez mil cadáveres
Ts’ao Sung (870-920)
(Tradução: Paulo César de Souza)
Reler Brecht é uma experiência rica e de extrema atualidade, que nos faz pensar sobre os aspectos éticos e estéticos da criação literária e, não menos importante, sobre a escolha que o artista tem a liberdade de fazer entre a cooptação pela cultura de mercado e o compromisso com a construção de uma nova realidade.
Bibliografia:
Brecht, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.
Brecht, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: editora 34, 2001.
Campos, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
Carpeaux, Otto Maria. A literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
Faustino, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Jameson, Frederic. Método Brecht. São Paulo: Vozes, 1999.
Peixoto, Fernando. Brecht vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 2ª. edição.
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. SP: Editora Perspectiva, 1985.
(*) Claudio Daniel é poeta, curador de Literatura do Centro Cultural São Paulo, colunista da CULT e editor de Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.revistazunai.com).
quarta-feira, 20 de março de 2013
Pablo Neruda: “Eu não me calo”
averdade.org
Sha
A Poesia é a arte que coordena as ideias e as palavras de modo a expressar o pensar e o sentir de forma bela. Fala ao coração. É o belo em forma de Linguagem. Mas a divisão da sociedade em classes, a violência gerada pela exploração da minoria opressora, violam também a arte em todas as suas formas. Em vez de terna, a poesia se torna dura, embora não deixe de ser bela. É que o poeta tem “apenas duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).
É isso que explica a evolução poética de Pablo Neruda, o maior poeta chileno e um dos maiores da Literatura universal. Do lirismo de “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” aos versos combatentes de “Espanha no Coração” e “Canto Geral”.
Ele não nasceu com o nome com o qual se consagrou, e sim como Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Não era um nome poético, não gostava. Ainda na adolescência, adotou o pseudônimo de Pablo Neruda (referência ao escritor checo Jan Neruda, que apreciava), oficializando-o depois mediante ação judicial.
Neruda veio ao mundo na localidade de Parral, em 12 de julho de 1904. Seu pai era o operário ferroviário José Del Carmen Reyes Morales. Sua mãe, Rosa Basoalto Opazo, professora primária, morreu quando ele tinha apenas um ano de vida. A mãe que conheceu foi Trinidade Candia Marverde, a segunda esposa de José Reyes, a quem chamava de “Mamadre”,
Recebeu o primeiro prêmio aos quinze anos. Em 1921, a família se mudou para Santiago, onde estudou Pedagogia na Universidade do Chile e seguiu ganhando prêmios com suas poesias. “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” é publicado em 1923, um sucesso de público e crítica.
Diplomacia e Militância Política
Ingressou na carreira diplomática em 1927, atuando em vários países. Despertou para a militância política no ano de 1936, lutando contra o franquismo na Espanha ao lado do amigo e magnífico poeta Federico García Lorca, assassinado pelos fascistas em agosto daquele ano. Então a ternura deu lugar ao combate, pois a poesia, como disse Jorge Amado, “pode ferir como bala de fuzil”. Neruda escreveu Espanha no Coração. Perdeu o cargo e abandonou a carreira diplomática.
Em 1945, ingressou no Partido Comunista do Chile; foi eleito senador em 1948; teve o mandato cassado e ingressou na clandestinidade. Exilou-se, andou por diversos países, escrevendo no México Canto Geral, que retrata a luta, a vida, o sentimento dos povos da América Latina.
De volta ao Chile, o PC o indicou como candidato à Presidência da República, mas ele não aceitou, defendendo o apoio a Salvador Allende, eleito em 1970 por uma ampla Frente Popular. (Sobre Salvador Allende, leia A Verdade, nº96). Apoiou Allende até o fim, que se deu com o golpe de Estado que implantou uma longa noite de terror e agonia sobre o Chile (1973-1990). Em 1971, Neruda recebera o Prêmio Nobel de Literatura.
Suspeita de assassinato
Doze dias após o golpe, morria Pablo Neruda, pois sua voz não se calou. Continua emocionando e incentivando os lutadores do povo. Os legistas diagnosticaram o câncer como causa mortis. Sua esposa, Matilde Urrutia, disse que o poeta “morreu de tristeza”. A tristeza de presenciar o enterro da democracia, a morte de seus amigos Salvador Allende e Victor Jara, célebre cantor e compositor, que transformava em música a vida e a luta dos trabalhadores, do povo do Chile.
É fato que o poeta sofria de câncer na próstata, mas seu médico havia garantido que ele ainda viveria ainda de cinco a seis anos. Pessoas que assistiram à sua internação na Clínica Santa Maria, em Santiago, testemunharam que ele não parecia um doente terminal; apenas estava muito nervoso. Aplicaram-lhe um calmante e nunca mais o poeta acordou.
O motorista do casal Neruda, Manuel Arraya, assegura que era bom o estado de saúde do poeta. Ele até se preparava para uma viagem ao México, onde falaria sobre a situação política do Chile. Conta Arraya que Neruda vinha recebendo telefonemas ameaçadores e, logo após sua morte, a residência, em Isla Negra, foi totalmente saqueada.
Diante das evidências, o juiz Mário Carroza reabriu a investigação e determinou a exumação dos restos mortais do poeta, que se encontram em sua casa na Isla Negra, onde funciona um museu em homenagem a sua vida e obra. Os resultados deverão ser divulgados por ocasião dos 40 anos do golpe, que se completam a 11 de setembro próximo.
Poesia Perigosa
É muito provável que a mão que torturou e mutilou Victor Jara para calar sua voz e os acordes do seu violão também tenham silenciado o poeta, pois, como ele mesmo dissera, “o poeta que sabe chamar o pão de pão e o vinho de vinho é perigoso para o agonizante capitalismo” (Confesso que Vivi).
Eu não me calo.Eu preconizo um amor inexorável.E não me importa pessoa nem cão:Só o povo me é considerável,Só a pátria é minha condição.Povo e pátria manejam meu cuidado,Pátria e povo destinam meus deveresE se logram matar o revoltadoPelo povo, é minha Pátria quem morre.É esse meu temor e minha agonia.Por isso no combate ninguém espereQue se quede sem voz minha poesia.(Neruda, 1980)Pablo Neruda: A meu PartidoMe deste a fraternidade para o que não conheço. Me acrescentaste a força de todos os que vivem. Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento. Me deste a liberdade que não tem o solitário. Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo. Me deste a retidão que necessita a árvore. Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens. Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos. Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos. Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha. Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético. Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria. Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.
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