Pedagogia do estrangeiro
Por Maurício Ayer -Revista Forum
Foto: Divulgação
Em junho deste ano, a despeito das campanhas contrárias, o Parlamento Europeu aprovou a “diretiva da vergonha”, lei continental que estabelece novas e duras medidas contra estrangeiros clandestinos nos países membros da Comunidade. Entre outras coisas, estrangeiros sem visto poderão ser presos por até 18 meses pelo simples fato de cruzar as fronteiras européias, sendo que aqueles considerados “pessoas vulneráveis” (como grávidas, idosos, vítimas de tortura) e menores de idade podem ser deportados; no caso dos menores, eles podem ser expulsos para um terceiro país, ou seja, não o seu de origem, onde eles não têm nem família nem tutor legal.
Para entender como se constrói ideologicamente este processo numa região onde circulou tão fortemente o discurso da multiculturalidade nas últimas décadas, Fórum procurou o filósofo da educação espanhol Jorge Larrosa, professor na Universidade de Barcelona. Já há alguns anos, Larrosa denuncia uma visão “financeira” do estrangeiro na educação escolar, quando este é coisificado e transformado no portador de uma suposta “riqueza cultural”. No entanto, diz ele, “se a questão do estrangeiro é colocada em termos de riqueza possível, as políticas de estrangeirismo sempre terão uma forma econômico-administrativa”, regulando-se a entrada e saída das pessoas como a das mercadorias, com políticas de restrição ou abertura formuladas a partir de um cálculo de custo e benefício. Confira os principais trechos da entrevista.
Fórum – O senhor parece dar um sentido muito forte ao “estrangeiro” na constituição da identidade. Pode explicar isso?
Jorge Larrosa – Acredito que você está pensando em “¿Para que nos sirven los extranjeros?” (Para que nos servem os estrangeiros?), um artigo publicado pela primeira vez em 1998, no livro coletivo Contra el Fundamentalismo Escolar, cuja intenção era denunciar o que poderíamos chamar de “escolarização do multiculturalismo”, isto é, a integração escolar e escolarizada dos estrangeiros. Na origem do livro estava a idéia de que o problema – se de fato existe algum – não é o da convivência, no ambiente escolar, de pessoas com pluralidade de tradições, códigos, línguas e, inclusive, biografias pessoais diversas, mas precisamente o modo pelo qual a escola trata estes assuntos.
Quando escrevi esse artigo estava trabalhando intensamente sobre o romance de formação (Bildungsroman). Como sabemos, a idéia de formação e a idéia de experiência (de experiência de formação ou de transformação) andam praticamente juntas, se incorporam uma na outra. Isto é, a formação ou a transformação de si tem a ver com uma experiência na qual o sujeito encontra a alteridade. Esta é a origem do “ex” da palavra experiência. O mesmo “ex” de exterior, de extraño (estranho), de extranjero (estrangeiro), de exílio, de êxtase. Não há formação que não se realize de um encontro com a diferença e a alteridade, com o que não sou eu, com o que não é apenas uma repetição ou uma projeção de mim mesmo.
Fórum – Essa ideia contrasta com o sentido que parece ter a retórica do multiculturalismo, tão presente hoje na Europa, que segundo suas palavras poderia estar ali “para dar um sentido confortável à nossa relação com os estrangeiros”. Como é isso?
Larrosa – A idéia é que a presença de outras culturas entre nós serviria para enriquecer a nossa própria. Chamo isso de concepção econômica da multiculturalidade: o “outro cultural” é útil porque me enriquece. Não é visto como ameaça – o que já é um avanço contra todo tipo de purismos culturais, que estão na base do racismo e da exclusão –, mas como oportunidade, como algo do qual possa me apropriar. Digamos que esse “sentido confortável” se produz na retórica escolar quando o estrangeiro é visto primeiro como um problema – e é curioso que a educação tenha visto sempre a diferença como um problema, como uma dificuldade – e depois como uma oportunidade, como uma riqueza cultural.
Entende-se que a diversidade é “positiva”, separada de qualquer dimensão social, política ou econômica (da exploração, a injustiça, a exclusão, a marginalidade, a precarização, a erosão de direitos, o assédio policial) e é apresentada como espetáculo inofensivo e folclórico. Ou, o que é ainda pior, é convertida em tema moral e é construída como uma permanente oportunidade ética para que sejamos capazes de mostrar nossos bons sentimentos.
A coisa já é preocupante quando o “conflito cultural” é pensado em termos éticos. Aqui a pedagogia mais rançosa fica à vontade porque tudo é “questão de valores”. É necessário fomentar valores positivos, por exemplo, a “tolerância”, o “respeito” ou a “aceitação” ou o “reconhecimento” ou o “diálogo”. É necessário fomentar as virtudes da compreensão e da abertura a outros previamente coisificados, identificados e “alterizados”. E é necessário combater a xenofobia, o racismo, a intolerância, os preconceitos etc. Como se existisse algo como “identidades culturais diversas” que concorrem na escola, na vida escolar, “identidades culturais” que por sua própria natureza geram problemas e conflitos. E como se esses conflitos fossem solucionáveis ou tratáveis por meio de uma regulação moral da intersubjetividade. Assim, a pedagogia se fecha no território mais cômodo para os bem pensantes e os hipócritas de todas as épocas e cores: o das lições de moral. Enfim, que tudo se ajusta demasiado bem aos discursos, às práticas e às formas de percepção do real nas quais se sentem demasiado cômodas as instituições, os meios de comunicação e os professores universitários. Uma retórica bem pensante, aderente e incontestável que circula sem problemas entre políticos, jornalistas e “experts” e que configura a gramática discursiva de certas camadas sociais devidamente treinadas no politicamente correto.
Fórum – De suas palavras deriva uma ideia quase “financeira” da relação com os estrangeiros. Como entender isso num momento em que a Europa toma medidas para dificultar a entrada de estrangeiros nos seus países, especialmente para os que desejam trabalhar?
Larrosa – Se a questão do estrangeiro é colocada em termos de riqueza possível, as políticas de estrangeirismo sempre terão uma forma econômico-administrativa. O que se deve fazer, dizem-nos, é administrar racionalmente essa riqueza: regular os fluxos (em função, naturalmente, de nossas necessidades), utilizar dos estrangeiros aquilo que nos interessa (em função, claro, de nossos interesses) e reduzir ou ignorar aquilo que nos ameaça (em função de nossos medos). Quando falo de necessidades, interesses e medos, refiro-me tanto àqueles aos quais se atribui natureza econômica quanto aos que se constroem como de natureza cultural. Favorecer tanto quanto dificultar a entrada de estrangeiros será sempre algo feito segundo um cálculo de custo e benefício. Portanto, não há contraste entre a retórica e as políticas efetivas.
Fórum – Como a educação pode atuar para a formação de pessoas “abertas para o estranho”?
Larrosa – Cada vez estou mais convencido de que é necessário abandonar todo discurso (e toda prática) que tenha a ver com o cultural, com o multicultural e, em geral, com a identidade. O meu artigo é precedido por uma citação de Edmond Jabès¹ que diz o seguinte: “o estrangeiro lhe permite ser você mesmo, fazendo de você um estrangeiro”. Com esta citação, queria sugerir que o que deveríamos aprender não é definir e identificar “quem somos” pela definição e identificação do outro – perguntando “quem é você?”, ou, o que é ainda pior, dizendo quem ele é, assim: “aqui, na escola, vou te ensinar quem é você”, a escola como configuradora de identidades. Ao invés disso, aceitar nossa comum falta de definição e de identificação, nosso estrangeirismo compartilhado. Imaginar formas de hospitalidade e de acolhida que não incluam “quem é você?”, mas “quando você saiu do seu país?, o que você deixou lá?, do que você sente falta?, o que você encontrou?, o que você necessita?, como você está?, o que faz você sofrer?, você se sente só?, em que posso ajudar?”.
Fórum – Uma educação pautada nessas questões seria fundada na experiência?
Larrosa – É verdade que a experiência é um dos temas que mais tenho trabalhado. O que fiz foi fazer soar a palavra experiência no campo educativo e explorar suas possibilidades, sobretudo para ver se nos permite sair das formas dominantes de pensar, dizer e fazer educação – especialmente nas últimas décadas, encarnadas pelos “experts”, os “técnicos” e os que poderíamos chamar de “críticos”. Ambos os tipos de discurso (o do saber técnico-científico e o dos argumentos político-críticos) também têm monopolizado, creio, a questão multicultural.
Penso que uma educação que atenda à experiência e que seja sensível à diferença requer, simplesmente, desenvolver certas formas de atenção ao que se apresenta e ao que nos acontece. Não atentar àquilo que determina as identidades, mas ao que modela, de modo sempre dinâmico e provisório, os acontecimentos, as ações, as relações e os comportamentos. Em outras palavras, não atentar ao que os seres humanos são, mas ao que acontece, aos modos pelos quais se relacionam entre si, à experiência da relação. A convivência não está determinada por um jogo de identidades mais ou menos estáveis, mas está indeterminada por um conglomerado de acontecimentos sempre efêmeros, instáveis e, em grande parte, imprevisíveis.
E quando as pessoas às quais acontecem as coisas, ou entre as quais acontecem as coisas, não são homogêneas, não são iguais, o que com certeza acontece é que a pluralidade mesma do humano ininterruptamente produz interferências e mal-entendidos que obrigam constantemente a ajustes e reajustes, a negociações, a conflitos e a fracassos. O que quero dizer é que cada episódio de relação concreta implica uma certa socialização entre os participantes, um certo pacto no qual se aprende o que se pode esperar dos outros, qual é a conduta adequada a essa situação, como podem ser coordenadas nesse momento e nesse lugar as ações e as reações. Isto é, são as identidades que são constantemente modeladas e remodeladas pelas relações e não o contrário.
Fórum – O que o senhor postula não seria algo muito diferente da “tolerância”? “Tolerar” não seria uma forma de reconhecer o direito do outro existir, mas numa situação em que não se é afetado por ele, quase um sinônimo de “indiferença”?
Larrosa – Creio que há uma dupla maneira de entender a relação entre tolerância e indiferença. Em primeiro lugar, como você diz muito bem, a tolerância seria algo como reconhecer o direito do outro existir, desde que não incomode demais. [O sociólogo polonês Zygmunt] Bauman diz que tolerar significa: você é detestável, mas eu, sendo generoso, permitirei que continue vivendo. Tolera-se aquilo que se despreza, a tolerância seria uma forma de reafirmar a inferioridade ou a inevitável anomalia do outro. Mas há outro sentido, quer me parecer, que tem a ver com algo como “deixar em paz”. Aí a indiferença seria positiva.
O que acontece é que as pessoas que têm alguma marca étnica, aqueles que são percebidos como diferentes, são sistematicamente obrigados a dar explicações, a justificar o que fazem, o que pensam, como são, qual a sua sexualidade, como é a sua religião, o que comem, como se vestem. São obrigados a exibir aquilo que nós podemos manter oculto, sua vida é vigiada constantemente, lhes é negado o direito ao anonimato, a guardar silêncio, a permanecer ocultos. Os estrangeiros despertam a curiosidade de jornalistas, pesquisadores, trabalhadores sociais, juristas, polícias, instituições educacionais e todo tipo de especialistas e profissionais. Todos parecem profundamente interessados em saber coisas sobre eles e fazer coisas com eles. É negada a eles a possibilidade de permanecerem desconhecidos, invisíveis, a possibilidade de se ausentar, de se esconder, de não participar. É negado a eles o que poderíamos chamar, talvez, de direito à indiferença.
Fórum – O senhor poderia explicar a última frase do seu artigo: “Não será o estrangeiro quem nos faz estrangeiros e, justamente por isso, quem nos permite ser nós mesmos”?
Larrosa – Essa frase é um eco da citação de Jabès à qual fiz referência no início desta entrevista. A idéia é que talvez os espaços públicos de convivência – e não tenho certeza de que a escola seja um espaço público, e ainda menos um espaço de convivência – possam se constituir em lugares de estranhamento recíproco. Lugares onde o importante não seja quem é cada um, sequer onde cada um está, mas sim o que acontece, o que é que nos acontece. Lugares onde o importante seja a comum exposição aos outros, diante dos outros e entre os outros. O estrangeiro, desse ponto de vista, não é quem confirma ou enriquece a minha identidade, mas quem a questiona.
¹ Nascido no Cairo, em 1912, de família judia italiana, o poeta e escritor Edmond Jabès publicou desde cedo em língua francesa, tornando-se uma das principais figuras da literatura francófona do pós-guerra. O tema do estrangeiro está presente em várias de suas obras.
Tradução por Jorge Lescano