segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uruguai: a aldeia gaulesa da América do Sul....


O Uruguai, a aldeia que salva o mundo


uruguai Renato Dalto (*)
Caía a tarde naquela praia pequena e os músicos davam o tom num palco improvisado. Até que um deles, o jovem bandoneonista de jeans e sem camisa, resolveu solar no tecladoAdios Noniño. Fez-se então aquele esparramar de notas melancólicas, aquela agudeza de dilacerar das notas de Piazzolla e a vida seguiu assim, na calma daquele crepúsculo. Em vez de buzinas, som bate-estacas, burburinho, viam-se na volta pais e filhos passeando na areia, cachorros brincando, as primeiras luzes ensaiando a noite e mais um fim de dia em Punta del Diablo. Naquela pequena aldeia, gente de todos os lados, como se buscasse apenas isso: um entardecer com notas suaves, uma noite descendo aos poucos, um elo perdido que deixou pra trás os silêncios, as caminhadas serenas, os passeios pela beira do mar. O mar de Galeano, que descreve o menino vendo-o pela primeira vez, agarrado à mão do pai, e faz um pedido diante da imensidão: “Me ajuda a olhar”.
Dizem que agora os olhos do mundo se voltam para esse país-aldeia de meninos e idosos que se dão ao luxo de andar sozinhos à noite na capital do país. Montevidéu é a vida em festa nas noites, tardes ou manhãs. Espoucam no sul brasileiro cartazes expondo um “Uruguay natural”, como se convidassem a uma visita ao que naturalmente se perdeu neste mundo de encontros virtuais, cartões de crédito, automóveis em excesso e níveis insuportáveis de monóxido de carbono. Poderia até haver outras chamadas dizendo, por exemplo: Venha ao Uruguai encontrar o que você achou que não existia mais.
O Uruguai expõe ao mundo um presidente, Pepe Mujica, que em seu discurso de posse anunciou: “Meu governo terá quatro prioridades: educação, educação, educação e educação”. Educação civilizatória, é bom que se diga. A Frente Ampla, um governo de esquerda, está em seu segundo mandato histórico no país. E desde então, os donos de sempre- banqueiros, latifundiários e privilegiados em geral – foram taxados em suas fortunas e vem se exercendo justiça tributária. E também as crianças da escola ganharam computadores, e nos rincões mais distantes há professores pagos pelo governo para ensinar filhos de camponeses. O poder dos salários dos trabalhadores aumentou e o salário do presidente, voluntariamente, diminuiu.
Mujica doa mais de 80% do que ganha às instituições de caridade, mora na sua pequena chácara, dispensa a liturgia e o formalismo e segue o que sempre foi: um homem fiel às ideias de justiça, igualdade e liberdade. Não exerce o poder em nome próprio, mas sim como o seguidor de uma cartilha que acredita. Uma das afirmações de Mujica: As ideias são mais importantes que os nomes.
Uma bela idéia de país, quase de um conto de fadas, é de que há direitos fundamentais não escritos mas que deveriam sempre ser respeitados. Como, por exemplo, ter consideração e cuidado com os mais velhos, ter liberdade de ir e vir sem temer assaltos, caminhar seguro pelas praças, respeitar e ser respeitado em lugares públicos. Na noite uruguaia, é comum se ver famílias inteiras se divertindo juntas, num saudável encontro de gerações. País pequeno e verde, campesino, produtor de carne, vinhos e lacticínios mas, sobretudo, produtor de bons hábitos e de direitos que envolvem reciprocidade e educação – o respeito começa em casa e se propaga pelas escolas, ruas e praças. Parece que nada é mais encantador do que essa batida da simplicidade regulando a vida.
A mídia que voltou os olhos para isso tem como o acender da fogueira a eleição doThe Economist, o jornal inglês dos ricos que elegeu o Uruguai o país do ano. Houve estranhamento nisso, observações pejorativamente preconceituosas, como se essa simplicidade toda incomodasse nessa guerra de informações e lorotas que virou o mundo e sua aldeia hi tech. O Uruguai é uma aldeia onde vale muito um aperto de mão, um olho no olho, um buenos dias sincero.
Volta a imagem de Adios Noniño, uma obra-prima de Astor Piazzolla cuja história remete a algo assim: um menino de 12 anos chamado Astor tocava na noite porteña, num bar. Todas as noites o avô, el noniño, o levava pela mão e ficava numa mesa, num canto, esperando o neto terminar de tocar. Depois o levava pra casa, pela mão, carregando também na outra mão o bandoneon. Quando Astor cresceu, e se tornou célebre, um dia recebeu a notícia da morte do avô. Estava longe demais, mas na noite melancólica daquela perda, se debruçou sobre o bandoneon e compôs Adios Noniño.
Essas notas do adeus, dilacerantemente belas e arrebatadoras, ganharam o mundo, os corações, comovendo gente em todos os lugares. Naquela praia pequena, de uma aldeia que agora ganha o mundo, aquele bandoneonista jovem e descontraído relembrava a céu aberto, respeitosamente, tudo o que essas notas significam. A tarde caiu mais bela nesse dia num pedaço de mar uruguaio. Um mar de respeito e silêncios. Um mar que a gente tem que aprender a olhar.
*jornalista