domingo, 30 de janeiro de 2011

O fantasma fardado e outras histórias

 Foto: Miguel Mendez/AFP

A presidenta Dilma Rousseff parte dia 31 para uma visita a Buenos Aires e está previsto seu encontro com as “mães da Plaza de Mayo”, as valentes cidadãs argentinas cujos filhos foram assassinados ou desapareceram durante a ditadura. Hoje elas frequentam a Casa Rosada, recebidas pela presidenta Cristina Kirchner, em um país que puniu os algozes, a começar pelos generais ditadores.
Há quem diga e até escreva que Dilma se expõe ao risco de uma “saia-justa” (não aprecio a enésima frase feita frequentada pelos nossos perdigueiros da informação, mas a leio e reproduzo) ao encontrar as mães da praça. Quem fala, ou escreve, talvez funcione como porta-voz de ambientes fardados. Ocorre, porém, que a reunião foi solicitada pela própria presidenta do Brasil, e ela sabe o que faz.
No discurso de posse, Dilma mostrou-se orgulhosa do seu passado de guerrilheira e homenageou os companheiros mortos na luta. Conta com o aplauso de CartaCapital. Foi o primeiro sinal de um propósito claro do novo governo: aprofundar o debate em torno das gravíssimas ofensas aos Direitos Humanos cometidas ao longo dos nossos anos de chumbo. O encontro de Buenos Aires confirma e sublinha a linha definida pela presidenta, a bem da memória do País.
Cada terra tem suas características, peculiaridades, tradições. O Brasil não é a Argentina. Ambos foram colônias. Nós padecemos, contudo, três séculos de escravidão. A independência não veio com a rebelião contra a metrópole e sim graças aos humores contingentes de um jovem príncipe brigado com a família. A república foi proclamada pelos generais. A resistência e a luta armada na Argentina tiveram uma participação bem maior do que se deu no Brasil, e nem por isso o terror de Estado deixou de ser menos feroz aqui do que no Prata.
Já li mais de uma vez comparações entre o número de mortos e de desaparecidos brasileiros e argentinos, de sorte a justificar que a nossa foi ditabranda. Bastaria um único assassinado. A violência, de todo modo, foi a mesma, sem contar que os nossos torturadores deram aulas aos colegas de todo o Cone Sul, habilitados por sua extraordinária competência. Se a repressão verde-oliva numericamente matou, seviciou e perseguiu menos que a argentina foi porque entendeu poder parar por aí.
Fernando Henrique Cardoso disse na terça-feira 25 ao Estadão ser favorável à abertura dos arquivos da ditadura. Surpresa. Foi ele, antes de deixar a Presidência, quem referendou a proposta do general Alberto Cardoso, que comandava seu gabinete da Segurança Institucional, de manter indevassável a rica documentação por 50 anos. No elegante português que o distingue, FHC agora declara: “Aquilo ocorreu no meu último dia de governo e alguém colocou um papel para eu assinar lá”. Deu para entender que alguém pretendia enganá-lo e que o presidente assinava sem ler. Resta o fato de que, ao chegar ao poder, o príncipe dos sociólogos recomendou: “Esqueçam o que eu disse”. Dilma teve um comportamento de outra dignidade. E não há como duvidar que saberá dar os passos certos na realização da Comissão da Verdade.
Certos significa também cautelosos, sempre que necessário. E sem o receio da “saia-justa”. Adequados a tradições que, infelizmente, ainda nos perseguem. Colonização predatória, escravidão etc. etc. As desgraças do Brasil. E mais, daninha além da conta, o golpe de 64 a provar no País a presença insuportável de um exército de ocupação, pronto a executar os planos dos Estados Unidos com a inestimável colaboração da CIA e a servir às conveniências dos titulares do privilégio e seus aspirantes. Os marchadores com Deus e pela liberdade. Que Deus e que liberdade é simples esclarecer.
O fantasma brasileiro é fardado e não há cidadão graúdo que não o tema, e também muitos miúdos. Todas as desculpas valem, na hora em que se presume seu iminente comparecimento, para, de antemão, cancelar o debate ou descartar as soluções destinadas a provocá-lo. Nada disso é digno de um país em ascensão e de democracia conquistada. Carta-Capital acredita que a presidenta saberá exorcizar o fantasma sem precipitar conflitos. Saias-justas, se quiserem.
Um leitor escreve diretamente para Wálter Fanganiello Maierovitch. Lamenta a posição dele e de CartaCapital a favor da extradição de Cesare Battisti. Com urbanidade, felizmente. Enaltece a figura de Tarso Genro, louva a decisão que precipitou o caso e cita, para demonstrar seu teo-rema, um livro intitulado Terrorismo e Criminalidade Política, em que o falecido Heleno Fragoso, professor universitário e célebre criminalista carioca, se refere às inúmeras leis de exceção promulgadas na Itália durante os anos de chumbo. Nada disso também é digno do Brasil.
Fragoso não é o único entre os professores brasileiros que ignoram a história recente com toda a solenidade condizente com suas becas. A Itália dos anos 70, entregue ao comando da operação ao general Alberto Dalla Chiesa, venceu o terrorismo sem recurso a leis de exceção. Houve sim leis de emergência, que um Fragoso não poderia confundir com aquelas. Na semana passada publicamos uma entrevista do filho de Dalla Chiesa, que fez menção a outras leis aprovadas illo tempore, entre elas a redução a 36 horas da jornada de trabalho por obra da poderosa atuação do Partido Comunista e dos sindicatos, e a descriminalização do aborto, que aqui é quimera.
Nas eleições políticas de 1976, o PDC teve 36% dos votos e o PCI 34%, enquanto os pleitos administrativos davam aos comunistas a maioria das prefeituras. A  Itália dos anos 70, contudo, não era somente de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, mas também de primorosa cultura, representada por figuras como Norberto Bobbio, Italo Calvino, Pasolini, Sciascia, Fellini, De Sica, Montale, Visconti e assim por diante. Não bastaria esta página para nomear a todos, e ninguém era de direita. Um importante colaborador de Berlinguer, Giorgio Napolitano, atual presidente da República italiana, enviou uma carta tocante à presidenta Dilma. Ele renova os cumprimentos pela eleição, mas mira no caso Battisti.
“Não são aceitáveis distorções, negações ou leituras românticas de crimes de sangue”, escreve Napolitano. A negativa à extradição, acentua “significa motivo de desilusão e amargura para a Itália”. “Não foi plenamente compreendida – prossegue – a necessidade de justiça experimentada por meu país e pelos familiares das vítimas de brutais e injustificados ataques armados, bem como dos feridos por aqueles ataques, sobrevividos às duras penas.” E ao cabo lembra que o terrorismo foi derrotado “dentro das regras do Estado de Direito”.
O Brasil no caso não deve satisfações ao governo italiano, o atual, aliás, o pior desde o imediato pós- guerra, e sim ao Estado, que o presidente da República representa. Talvez seja igual a pregar no deserto recomendar uma boa pesquisa sobre os anos de chumbo italianos a políticos, magistrados, jornalistas, irados cidadãos atolados em uma patética patriotada, indigna do país que o Brasil merece ser. Isento o trabalho, aconselhamos, da singular influência da hipocrisia francesa.
Falo deste nosso atual país onde ainda se verificam cenas do faroeste. Na sexta-feira 21, o caminhão que carregava para o Rio o reparte de CartaCapital foi assaltado ao longo da Dutra. Os assaltantes não eram ávidos de boa leitura: a carga não tinha para eles a menor serventia, queriam era o próprio caminhão. Renderam e aprisionaram o motorista, ficaram com o veículo, imediatamente remetido para outro canto do País.
A última edição da revista não circulou no Rio. Na noite da mesma sexta tentamos reunir um número suficiente de exemplares para reabastecer as bancas cariocas. Infelizmente não havia sobras, na manhã de sábado todos os repartes tinham sido distribuídos. Pelo gravíssimo percalço pedimos desculpas muito sentidas aos leitores do Rio. Com uma derradeira observação. Ao recordar os assaltos às diligências dos filmes western, murmurei para meus espantados botões: a presença de bandos armados no trajeto da mais importante rodovia do País não é digna do Brasil que queremos. Os botões me acharam comedido.

A cidade que acolhe o FSM


Rita Freire
Dacar começa a compartilhar os primeiros espaços, atividades e expressões da sua cultura com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM.
Fotos: Antonio Pacor

Quem vier ao Fórum Social Mundial, com vontade de compartilhar idéias, experiências e propostas para um outro mundo possível, e tiver acolhida em alguma casa senegalesa, aprenderá também a compartilhar um cebu djen.
Ao meio dia de cada dia, famílias se reúnem em torno desse prato coletivo e popular, que consiste no preparo de um peixe com ervas, em cuja água de cozimento são imersos diferentes legumes, gerando o caldo a ser utilizado para o preparo do arroz. Tudo servido assim, com muitas colheres que avançam sobre os bocados do cebu dijen
Dacar começa a compartilhar as primeiras casas com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM. A casa de Lia, italiana que vive no Senegal a maior parte do ano, ensinando costura e estilismo em uma escola local, é uma delas. Procurada por outro italiano, o videomaker Paco, que facilita coberturas de video do Forum, assegurou estadia para vários colaboradores da comunicação.
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E foi assim que cheguei a Dacar, conhecendo Lia e seus alunos, que pensam em ir ao Fórum em busca de contatos de economia solidária, e com quem conheci Abi, a senegalesa da foto que motivou a reunião de todas essas pessoas em torno do prato mais apreciado do Senegal, preparado por ela para nos dar as boas vindas.
Enquanto almoçamos, são naturais algumas notícias sobre o FSM, como o informe de que Via Campesina trabalhará o tema da violência contra as mulheres no campo, ou a confirmação da Assembleia que debaterá perspectivas da comunicação. Reunirá gente da Africa, América Latina, Europa, e quiça da Asia e Oriente Médio. O programa com todas as atividades será impresso no domingo.
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É o segundo dia que eu e Paco passamos na cidade que acolherá o Fórum e já é possível sentir a ansiedade das pessoas encarregadas de organizar as bases do evento, com aquele sentimento de toda véspera de uma edição mundial, de que "tudo ainda está por fazer".
Nosso olhar esteve especialmente voltado para a comunicação, procurando as conexões potenciais entre as redes que compartilham informação sobre os temas do FSM e o trabalho local de cobertura e propagação do evento. Na Enda, organização de referência do FSM em Dacar, a equipe do escritório do FSM no Brasil já está ha mais dias e trabalha na organização de informações, na distribuição de atividades por eixos do FSM. No Centre Bopp, onde a comunicação se organiza, se formam e desfazem pequenas rodas multilingues de pessoas que chegam para ajudar.
Predominam no espaço os colaboradores locais do FSM e há uma certa ansiedade em relação à infraestrutura. Voluntários falam dos intervalos que algumas áreas da cidade enfrentam sem energia elétrica. Com os preços elevados do petróleo e gás, que estão na base do abastecimento local, o Senegal sofre. O problema afetará o FSM? Pessoas da organização acreditam que não, porque as instalações da universidade dispôem de geradores em caso de emergência.
A banda para internet é outra preocupação, que aliás se repete em todos os eventos centralizados do FSM. Para assegurar um bom fluxo de informações e pacotes audiovisuais do FSM para fora, é preciso garantir um mínimo de conexão e isso deve ser assegurado pela organização local junto à Universidade.
As coisas caminham, sob pressão e urgência, impulsionadas por lutas inadiáveis por outro mundo possível. As conversas sobre credenciamento e programa no Centre Bopp se misturam com outras, sobre gente que se levanta no mundo, e particularmente na Africa, como os jovens da Tunisia, com sua revolução Jasmin, a resistencia sarawi, ou a revolta da Costa do Marfim. Também se fala de uma Diáspora africana que terá no FSM uma oportunidade de voltar para casa. Um dia inteiro do FSM será dedicado à Diápora.
Os jovens de Dakar sentem o peso da responsabilidade e se expressam especialmente pela participação em atividades culturais - grande parte delas terá lugar naquele mesmo Centre Bopp, segundo participantes da Comissão de Cultura.
Neste sábado, haverá um concerto na capital senegalesa. Estarão no palco músicos de várias áreas da cidade para lançar um cd que gravaram em conjunto. A obra foi feita especialmente para acolher o FSM. Mil cópias serão vendidas durante o fórum.