domingo, 11 de setembro de 2011

Sistema tributário progressivo

Marcio Pochmann no PORTAL CTB
A trajetória do desenvolvimento contempla a existência de um sistema tributário progressivo. Ou seja, a presença de impostos, taxas e contribuições que atuam em proporção maior com a elevação da renda e riqueza. Assim, a justiça tributária se manifesta logo na arrecadação do fundo público e se mantém na medida em que o gasto governamental seja proporcionalmente maior com a redução da renda e riqueza. Para se conhecer a eficiência do Estado, basta saber a forma com que tributa a sociedade e redistribui o que arrecadou para a população.

Pela tradição do subdesenvolvimento, a capacidade do Estado tributar os pobres tem sido proporcionalmente maior que a renda e a propriedade dos ricos. O inverso se estabelece na redistribuição do fundo público constituído por impostos, taxas e contribuições, uma vez que os pobres ficam geralmente com a parte menor do que contribuíram e os ricos com a parcela maior. Isso tudo porque os segmentos privilegiados demonstram inegáveis condições de pressionar o Estado a seu favor, bem mais que os demais estratos sociais, sobretudo os mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Sobre isso, aliás, valeria aprofundar o debate acerca da eficiência do Estado.

Na virada do século XXI, o governo brasileiro demonstrou considerável interesse em elevar a qualidade do gasto social, o que permitiu melhorar o tratamento dos segmentos sociais mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Por diversas modalidades de atuação das políticas públicas os segmentos de menor renda terminaram ampliando a absorção do fundo público. O impacto distributivo do Estado brasileiro se mostrou inegável, com queda no grau de desigualdade pessoal da renda de 9,5%, passando de 0,55, em 2003, para 0,50, em 2009 (índice de Gini, quanto mais próximo de 1 mais desigual a distribuição). Se desconsiderada a atuação do Estado sobre os rendimentos do conjunto da população, ou seja, a renda original sem incluir as políticas de transferências de renda, a redução no grau de desigualdade seria de apenas 1,7% (de 0,64, em 2003, para 0,63, em 2009).

Em síntese, constata-se uma positiva contribuição recente do Estado no tratamento da desigualdade da renda, especialmente pelo lado da redistribuição do fundo público arrecadado. Mas falta ainda, por outro lado, avançar na qualidade da arrecadação tributária, que permanece fortemente concentrada na parcela da população de baixa renda. Os ricos seguem demonstrando importante capacidade de driblar o conjunto dos tributos. Um bom exemplo disso pode ser observado na marcha da sonegação fiscal existente no Brasil. Inicialmente pela ausência de tributação nas aplicações financeiras de residentes nas operações realizadas no exterior, sobretudo nos chamados paraísos fiscais. Em 2009, por exemplo, somente os recursos aplicados em quatro dos 60 paraísos fiscais (Ilhas Cayman, Virgens Britânicas e Bahamas, mais Luxemburgo) existentes no mundo representaram mais de ¼ do total de recursos considerados investimentos diretos externos (IDE) pelo Banco Central. A intransparência e, por que não dizer, escassa regulação permite que esses recursos aplicados externamente possam retornar legalizados e com contida tributação. A ausência de uma taxação internacional faz prevalecer a sistemática de poderosos e ricos evadirem-se de suas contribuição ao fundo público.

Na sequência, podem ser identificadas diversas modalidades existentes no Brasil que facilitam a evasão fiscal. O contrabando nas fronteiras e o exercício da informalidade consagram funcionalidade à concorrência não-isonômica, ao mesmo tempo em que permitem que riqueza existente deixe de ser tributada. O resultado disso tem sido a concentração da renda e, sobretudo, da riqueza. Também nesse sentido segue inalterado o curso da tributação sobre as grandes fortunas no país, sem qualquer contribuição ao fundo público, devido à ausência de taxação específica conforme verificado nas economias desenvolvidas.

No caso ainda do favorecimento aos privilegiados e poderosos, cabe mencionar a baixa eficácia da tributação direta nas três esferas do federalismo brasileiro. Em relação ao imposto de renda da pessoa física, por exemplo, o Ipea estima que R$ 1 a cada R$ 3 deixa de ser arrecadado, ao passo que segmentos de maior renda podem financiar os seus gastos privados com educação, saúde, previdência e assistência social por meio de abatimentos na declaração anual. Só no financiamento da educação privada, o Estado brasileiro deixou de arrecadar R$ 5 bilhões daqueles que fizeram a declaração anual do Imposto de Renda em 2010.

Por fim, os tributos diretos sobre a propriedade rural (ITR) e urbana (IPTU) seguem inacreditavelmente regressivos, uma vez que sinais exteriores de riqueza concentrada manifestada por latifúndios e mansões em progressão sigam quase imunes à contribuição justa ao fundo público. Além disso, constata-se também que o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) permanece sem incidir sobre aviões, helicópteros e lanchas.

O adequado enfrentamento da injustiça tributária atual impõe a elevação da eficiência do Estado, seja no formato da arrecadação do fundo público como na sua redistribuição. Isso implicaria abandonar o vergonhoso peso do Estado proporcionalmente maior sobre os segmentos de menor rendimento, que transferem todo o mês praticamente a metade do que recebem por força do esforço do seu trabalho. Já os ricos, que por força de suas propriedades obtêm rendas elevadas, quase nada contribuem com o fundo público no Brasil.

Marcio Pochamann é economista e presidente do Ipea. Texto publicado no Valor Econômico.

Produção do agronegócio fica longe da mesa do brasileiro


Virginia Toledo, Rede Brasil Atual
Desgastado por estar no centro dos argumentos contra as mudanças no Código Florestal, o agronegócio brasileiro tenta se associar a uma "agenda positiva". De um lado, há a aposta no discurso de uma produção sustentável; de outro, a ideia de que a produção em larga escala no país vai garantir alimentos para o mundo.
Um exemplo foi um evento realizado na semana passada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a organização presidida pela senadora Kátia Abreu (ex-DEM, a caminho do PSD-TO). O lema do Fórum Internacional de Estudos Estratégicos para o Desenvolvimento Agropecuário e Respeito ao Clima (Feed 2011) foi direto: "o desafio de alimentar 9 bilhões de pessoas".
A referência é à população estimada do planeta no ano de 2050, feita pelo órgão responsável por estudos sobre demografia da Organização das Nações Unidas (ONU). As empresas agrícolas brasileiras colocam-se como a "galinha dos ovos de ouro" da produção de alimentos, colocando em xeque a segurança alimentar num mundo sem a indústria agropecuária.
Na programação do fórum da CNA, discussões voltadas a questões ambientais, formas de tornar a produção mais eficiente – inclusive do ponto de vista ambiental, já que a segunda maior fonte de emissões de gáses de efeito estufa é a pecuária.
Na abertura do evento, Kátia Abreu afirmou que o Brasil é o único país do mundo que optou por abrir mão de terras agricultáveis e férteis em nome da preservação ambiental. Ela qualificou a medida como um "legado" do país para o mundo, mas afirmou que isso demandaria contrapartidas dos outros países para retribuir com esse bônus oferecido durante tanto tempo.
Nem parece o mesmo grupo que defende alterações no Código Florestal brasileiro, em tramitação no Senado, com redução nas áreas de preservação permanente (APPs) e a possibilidade de os estados legislarem sobre o tema, diminuindo ainda mais o espaço em que atualmente a manutenção de áreas florestais é obrigatórias.
Qual o intuito de colocar a si próprio a obrigação de suprir a fome da população mundial? A necessidade de justificar a expansão da fronteira agrícola – que será legitimada em caso de aprovação das mudanças no Código Florestal.

Longe da mesa

O conceito de segurança alimentar envolve bem mais do que a produção de alimentos em quantidade necessária para a população. Para se considerar que a condição de um país, de uma cidade ou de uma comunidade oferece segurança alimentar é preciso, por exemplo, que a comida consumida venha de áreas próximas. A ideia é que, deslocamentos muito grandes aumentam os riscos de problemas de abastecimento, por exemplo.
A ideia de colocar o Brasil como "celeiro do mundo", responsável por "alimentar" a população do planeta até a metade do século, tenta responder a um desafio colocado mundialmente, mas com uma resposta convencional.
Mas as contradições vão bem além. Dos alimentos consumidos pela população brasileira, 70% dos que têm origem agropastoril vêm de propriedades da agricultura e da pecuária familiar. Quer dizer, arroz, feijão, leite, mandioca e outros itens básicos da dieta do brasileiro são produzidos por pequenos ou médios agricultores, em propriedades que não demandam a devastação total do bioma em que se encontram.
Outro dado: apesar da pretensão de alimentar a população do mundo, a agroindústria nacional ainda está longe de dar conta da demanda em seu próprio quintal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009 mostra que 30,2% da população brasileira ainda vive em situação de insegurança alimentar.
Contudo, nosso agronegócio segue quebrando recorde atrás de recorde da produção de grãos – com destaque para a soja, pouco consumida in natura no país -, e para a cana-de-açúcar, cada vez mais voltada para a produção do etanol para fazer rodar nossos veículos. Os números da produção para exportação aumentam, as reivindicações do empresariado por mais terra agricultável se intensificam, mas o sustento da população do país ainda está longe de garantida. 
O geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor da Universidade de São Paulo, é um dos críticos à insistência de que o agronegócio precisa de mais áreas para suprir as necessidade de alimentar o mundo. "Se o agronegócio ainda não consegue alimentar o Brasil, como será capaz de ser o protagonista da solução do problema da segurança alimentar mundial?", questiona.
"A produção do agronegócio não é uma produção de alimentos", resume Raul Krauser, coordenador da Via Campesina e membro do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). "É uma produção de commodities destinada à exportação para o mercado internacional, em que grande parte da soja é usada na fabricação deração de animais, ou combustível, sobretudo na Europa", pontua.
Para Krause, a atual legislação ambiental foi construída numa perspectiva de uso sustentável da natureza e dos recursos naturais. Entretanto, o setor do agronegócio quer expandir desenfreadamente suas fronteiras agrícolas, sem sequer rever as áreas de pastagens extensiva, que apresentam baixíssima produção por hectare.
É hora de rever conceitos. É preciso deixar de ver a floresta como uma barreira ser derrubada e é preciso também que se entenda definitivamente que a produção de alimentos - de qualidade e acessível a todo cidadão, sem exceção - não é tarefa para quem visa apenas e tão somente o lucro, nada mais.

Quem financia o ódio aos muçulmanos nos EUA?


Uma nova reportagem detalha como um pequeno grupo de doadores e "intelectuais" disseminaram a islamofobia.

Por MJ Rosenberg na REVISTA FORUM

Faz cerca de uma década que a islamofobia explodiu neste país. O momento em que o World Trade Center e o Pentágono foram atingidos por terroristas da al Qaeda. A islamofobia existia antes do 11 de setembro, mas as perdas daquele dia e o terror geral que aquilo causou sobre este país fez com que muitos, muitos americanos se tornassem mais cautelosos ainda com árabes e, bastante rapidamente, mais amedrontados da religião que professavam os terroristas.
O primeiro sinal de que o 11 de setembro seria explorado para fazer avançar diversos programas veio de Benjamin Netanyahu, que foi citado no New York Times dizendo que os ataques seriam bom para Israel:
“Quando questionado hoje [11 de setembro de 2001] sobre o que significaram os ataques para as relações entre os Estados Unidos e Israel, Benjamin Netanyahu, ex-primeiro ministro, respondeu, “São ótimos.” E então se explicou: “Bem, não ótimos, mas gerarão simpatia imediata”. Ele previu que os ataques iriam “fortalecer a união entre os dois povos, por terem experienciado o terror durante muitas décadas, mas os Estados Unidos agora haviam experimentado uma hemorragia massiva de terror.”
Netanyahu subsequentemente reiterou seu ponto de vista sobre o 11 de setembro.
E, é claro, desde os ataques o lobby “pró-Israel” obteve sucesso em se utilizar deles para construir um apoio para as políticas da direita israelense nos Estados Unidos.

Mas o lobby não veio sozinho.

É somente um dos componentes de um orquestrado e bem-financiado esforço para fazer com que os norte-americanos temam e odeiem muçulmanos e árabes.
Tenho que admitir, no entanto, que até ter lido uma reportagem publicada hoje pelo Centro de Progresso Americano (CAP, por seu nome em inglês), eu não tinha ideia de precisamente quão orquestrado e bem-financiado era este movimento.
A reportagem “Medo Ltda.: As raízes da Rede de Islamofobia nos EUA” demonstra que um pequeno grupo de autoproclamados especialistas (Frank Gaffney, David Yerushalmi, Daniel Pipes, Robert Spencer, e Steve Emerson) apoiados por um grupo de fundações e doadores (muitos dos quais financiam o lobby) colocaram a islamofobia no mapa.
Para colocar de maneira simples, sem estes “especialistas”, seus doadores e a Fox News (o porta-voz midiático) você jamais teria ouvido falar que um centro comunitário muçulmano (a “Mesquita Marco-Zero”) estava sendo construído em Nova Yorque. E o centro certamente não teria se tornado manchete. Nem mesmo os candidatos republicanos (e até mesmo alguns democratas) à presidência, ao Congresso, e até mesmo à prefeitura, seriam chamados para condenar o Islã e a “Lei da Sharia” ou ter que enfrentar o fato de ser rotulado de apoiador do terrorismo. Nem Newt Gingrich, Herman Cain e Rick Santorum teriam feito com que o ódio por muçulmanos americanos fosse uma parte integral de suas campanhas.

Tudo começa com o dinheiro. De acordo com o CAP:

Um pequeno grupo de fundações e doadores ricos são o sangue da rede de islamofobia nos Estados Unidos, fornecendo financiamento fundamental a uma ninhada de direitistas formadores de opinião que espalham ódio e medo de muçulmanos e do islã – em forma de livros, reportagens, sites, blogues, e apontamentos cuidadosamente concebidos que organizações de base anti-Islã e alguns grupos religiosos de direita usam como propaganda para seus eleitorados.
Algumas dessas fundações e doadores ricos também fornecem financiamento direto a grupos de base anti-Islã. De acordo com nossa extensa análise, aqui estão os sete principais contribuintes responsáveis por promover a islamofobia neste país:

Fundo Donors Capital
Fundações Richard Mellon Scaife
Fundação Lynde e Harry Bradley
Fundações e Fundos de Caridade Newton D. & Rochelle F. Becker
Fundação Russell Berrie
Fundo Beneficente Anchorage e Fundo William Rosenwald Family
Fundação Fairbrook

Muitos destes são novos para mim, ainda que quando trabalhei na AIPAC foi difícil não ver o fato de que alguns deles apoiam tanto a AIPAC como seu formador de opinião, o Instituto Washington de Políticas no Oriente Próximo.
A coisa mais incrível na reportagem do CAP é que ela expõe pessoas que tentam de tudo para cobrir seus rastros. Uma coisa é ser conhecido por apoiar a AIPAC, mas é outra bem diferente ser alinhado a Steve Emerson, Daniel Pipes e Pam Geller, que aparecem na reportagem do CAP somente como um segundo nível de ódio cuja veemência anti-muçulmana não passa de nojenta.
Os financiadores do ódio estão particularmente determinados a se esconder desde o massacre de 76 pessoas na Noruega em julho por um autodeterminado Cristão conservador chamado Anders Breivik, que disse ser influenciado por Robert Spencer, Pam Geller e David Horowitz (outro proeminente propagandista contra muçulmanos e beneficiário de várias fundações anti-Islã).
Mas o CAP seguiu o dinheiro, foi atrás dos nomes de fundações que aparentavam ser inocentes, e cruzou estes nomes. E agora nós temos: a rede do ódio exposta.
E o retrato é bem feio. Judeus cuja principal preocupação é Israel se alinham com os direitistas cristãos que não gostam de judeus. Há até mesmo alguns muçulmanos enviados pela rede para dizer para plateias em igrejas e sinagogas quão más pessoas eles são. É estranho.
Mas também é muito perigoso, como o massacre da Noruega contesta.
A coisa mais estranha sobre a matança é que ela ocorreu na Noruega. Lendo este artigo, você deve se perguntar por que não ocorreu aqui. Ainda.

A Al-Qaeda existe?


A resposta óbvia é sim, ela existe, mas é preciso qualificá-la: ao contrário do que diz o senso comum, a Al-Qaeda não é uma organização, mas uma rede de grupos locais fragilmente unidos, e Osama Bin Laden não tinha tanto poder como os EUA e ele próprio queriam fazer o mundo crer. Sem essa compreensão, a natureza do ativismo islâmico, inclusive de sua vertente radical, não pode ser devidamente esclarecida.


Há um senso comum sobre o que é a Al-Qaeda. Pergunte a alguém ao seu lado. A maioria provavelmente responderá que se trata de uma organização terrorista fundada décadas atrás por um fanático religioso saudita e bastante rico, que, enquanto viveu, recrutou e treinou homens para criar células de ataque em vários países, inclusive no Ocidente, a fim de atingir cinematograficamente alvos escolhidos por ele próprio.

É com uma provocação desse tipo que Jason Burke, correspondente dos jornais Observer e The Guardian no sul da Ásia, inicia um dos capítulos de seu livro “Al-Qaeda - a verdadeira história do Islã radical” (Editora I. B. Tauris, 2003, 357 páginas) – uma referência para os que querem explorar as entranhas do grupo ligado ao terrorista Osama Bin Laden. Repórter de campo com experiência em frentes de batalha e amplos contatos com militantes mulçumanos, Burke desmonta aquela visão simplificada compartilhada por muitos de nós, mas ainda amplamente legitimada nos meios de comunicação.

Para o jornalista, o que chamamos de Al-Qaeda trata-se na verdade de uma rede global pouco conectada de grupos terroristas com histórias e objetivos distintos entre si, muitas vezes mais interessados nas disputas por projetos nacionais do que por metas determinadas por uma ideologia islâmica global. Nessa rede, Bin Laden e seus aliados mais próximos tiveram um poder frágil, regularmente contestado pelos grupos e lideranças nacionais.

Burke relata diversas histórias para provar que a decisão de tratar Bin Laden como o inimigo público número um do planeta não encontra muitas justificativas na realidade. Uma delas diz respeito aos chamados “campos da Al-Qaeda” para treinar militantes no Afeganistão e no Paquistão, entre 1990 e 1996. Bin Laden tem sido até hoje insistentemente considerado o coordenador desses centros de treinamento. No entanto, segundo o jornalista, não há qualquer evidência de que o saudita tivera controle sobre os campos.

Ele menciona dois documentos do Departamento de Estado dos EUA para comprovar sua tese. O primeiro, de 1995, seis anos antes dos ataques de 11 de setembro, faz um relato oficial sobre os centros de treinamento afegãos, revela que militantes de várias nacionalidades estavam sendo habilitados para executar atos terroristas e aponta como chefe do esquema, além de setores do próprio governo do Afeganistão, um personagem chamado Abd al-Rab al-Rasul Sayyaf, com diversas conexões com a elite saudita. Mas alguém já ouviu falar em Sayyaf, que mais tarde foi eleito para o parlamento afegão?

O outro documento citado pro Burke, um memorando interno do mesmo Departamento de Estado, de 1996, quando o Afeganistão já estava sob pleno domínio do Taleban, afirma que vários grupos árabes dividiam o controle dos campos. “A verdade é que Bin Laden era uma figura marginal naquela época. Homens como Sayyaf, um dos mais importantes líderes político e religioso do Afeganistão naquele contexto, com excelentes contatos com ricos e devotados sauditas que contribuíam com seu projeto, tinham muito mais importância”, escreveu o jornalista.

Em 2001, após os ataques ao World Trade Center, a tevê norte-americana ABC entrevistou um militante árabe que havia treinado durante oito meses dos campos afegãos. Ele disse que jamais ouvira alguém chamar seu grupo de Al-Qaeda. “Isso revela como os investigadores norte-americanos forçaram a barra para encontrar um grupo, liderado por um personagem identificável, e que tivesse um nome”, aponta Burke.

O próprio correspondente destaca, porém, que não se trata de menosprezar o papel de Bin Laden no terrorismo global e nem mesmo de negar a existência da Al-Qaeda – tese defendida por alguns especialistas em Islã. Para ele, a Al-Qaeda existe, sim, e poderia ser didaticamente descrita como composta por três elementos: um núcleo duro, uma rede de grupos locais e uma ideologia comum. Além do governo norte-americano, no plano do discurso, o próprio Bin Laden se esforçou, entre 1996 e 2001, para fortalecer a unidade da rede e seu próprio poder sobre ela.

Com recursos financeiros nas mãos, o terrorista atraiu para sua órbita proeminentes militantes islâmicos que já estavam ativos ao redor do globo. Isso não significa, porém, que eles operariam sob as ordens de Bin Laden. “Taxar esses grupos locais como Al-Qaeda simplesmente encobre os fatores específicos que fizeram esses grupos surgir”, diz Burke. Segundo ele, Bin Laden passou a usar táticas empregadas por EUA e URSS durante a Guerra Fria – entre elas, fazer acordos de curto prazo com grupos locais, ainda que as diferenças entre eles fossem grandes, e financiá-los, com vistas a um objetivo comum.

A verdade é que a visão de uma Al-Qaeda institucionalizada tem bagunçado as peças de análises sobre a militância islâmica no mundo. Perdem-se as peculiaridades locais dos grupos e todos acabam se surpreendendo, ao menos no Ocidente, quando esses militantes se envolvem em atividades contra governos não-democráticos e corruptos, como foi o caso da atuação da Irmandade Mulçumana na derrubada do governo de Hosni Mubarak, no Egito.

Radicalismo, religião e pobreza
 
A idéia de uma organização composta por fanáticos mulçumanos prontos para se explodirem também é desmontada não apenas por Burke, mas por outro pesquisador da cultura islâmica, o francês Gilles Kepel, em seu livro “Jihad – a trilha do Islã político” (Belknap Press, 2002, 464 páginas).

Segundo Kepel, a violência traduzida pelo terrorismo tem sido causada por uma falha do ativismo político islâmico, incapaz de oferecer uma alternativa viável às populações islâmicas mais empobrecidas na Ásia e da África. Os movimentos anticolonialistas da primeira metade do século 20, os projetos socialistas e nacionalistas que se seguiram, assim como o desenvolvimento do projeto político islâmico, a partir da década de 80, não conseguiram responder aos anseios daquelas populações.

Segundo o pesquisador francês, os ativistas islâmicos radicais são em sua maioria recrutados entre famílias pobres ou da baixa classe média trabalhadora. Muitos constituem a primeira geração de suas famílias a obterem educação formal e viverem em cidades. Kepel identifica neles uma série de aspirações econômicas, traduzidas na idéia de que é justo "melhorar de vida" e lutar por isso. São pessoas que em outros países são naturalmente captadas para o ativismo social, em ONGs, ou político, nos partidos. Entretanto, a fragilidade dessas instituições na sociedade civil de muitas nações islâmicas torna fácil o recrutamento pelos flancos terroristas.

Isso não seria possível, claro, sem uma leitura do Islã que não só permita, mas incentive as atividades violentas. Essa referência tem origem na idéia de missão islâmica, chamada de da'wa, a qual glorifica a Jihad e o martírio como caminhos para a transformação mundana e a redenção divina. Um dos berços das práticas e valores islâmicos mais conservadores é a Arábia Saudita, terra natal de Osama Bin Laden. Hoje, porém, essa vertente da religião já se espalhou pela Ásia e África e não é à toa que entre os principais líderes identificados como da Al-Qaeda estão egípcios e líbios.

Votando a Jason Burke, os anos mais intensos do terrorismo islâmico – e das "Guerras do 11 de Setembro", como ele denomina esse período – ocorreram em 2005 e 2006, ano do ataque ao metrô de Londres. O jornalista lembra que nessa fase a estratégia da Al-Qaeda de confronto com o Ocidente parecia funcionar, tamanho o grau de mobilização que exigiu dos governos europeus e norte-americano. Mas, desde então, a capacidade de mobilização da entidade arrefeceu. A morte de Osama Bin Laden acentuou o fenômeno.

Um outro fator que enfraquece as conexões da Al Qaeda, diz Burke, tem relação com a própria maneira de os mulçumanos enxergarem a organização. Segundo o jornalista, quando a Al-Qaeda foi criada, uma de suas mais explícitas estratégias era executar grandes atentados terroristas com o objetivo de demonstrar às populações islâmicas no mundo que derrubar governos patrocinados pelo Ocidente era possível.

A idéia funcionou bem quando ocorreu em lugares distantes, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no meio do mar. Quando, porém, a maioria dos atentados passou a ocorrer em ruas movimentadas de cidades como Bagdá, a população passou a ver com mais restrições os grupos terroristas.

O que concluir de tudo isso? A fase pós-Bin Laden da militância islâmica no mundo exige dos observadores um olhar para a realidade e para além dos discursos dos governos e das próprias redes terroristas. Histórias nacionais e objetivos específicos explicam muito mais sobre a existência desses grupos, seu modo de atuação e mesmo suas ações mais violentas do que uma análise homogênea e global do Islamismo radical. Kabul e Bagdá estão muito mais distantes do que o mapa da Ásia pode revelar.