segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Dachau, a memória como antídoto contra a barbárie




Najla Passos no CARTA MAIOR
Najla Passos

Dachau - No momento em que o Brasil começa a discutir a pertinência de se criar ou não centros de memória para garantir às novas gerações o conhecimento histórico sobre as barbáries cometidas pela ditadura, um olhar sobre o tratamento destinado pelos alemães aos horrores nazistas pode ser revelador. Lá, como cá, o acerto de contas com o passado está longe do fim, embora infinitamente mais avançado, com julgamentos e prisões em larga escala já efetuados. Mas lá, ao contrário de cá, o resgate da memória é cobrança social, é política de estado, é fato consumado.




 
Lá, como cá, ninguém tem dúvidas que seja difícil ensinar aos jovens que o mundo não é um conto de fadas como pode fazer crer as histórias de reis e rainhas. Mas o fato é que lá, ao contrário de cá, os mesmos adolescentes que visitam o castelo do louco rei Ludovico – aquela obra prima da arquitetura que inspirou Walt Disney a criar o da sua Cinderela - também são estimulados, inclusive por excursões escolares do sistema público de educação, a conhecerem memoriais como o do Campo de Concentração de Dachau, pequeno município de cerca de 40 mil habitantes, a 15 Km de Munique, capital da Baviera, no Sul da Alemanha.

A visita não é fácil. Por isso, os sobreviventes e familiares das vítimas que compõem o comitê gestor do memorial não a indicam para menores de 12 anos e estimulam que as excursões escolares ocorram apenas para maiores de 14. Além dos estudantes, turistas de todas as partes do mundo visitam o local. Segundo os administradores, Dachau recebe, em média, 900 pessoas por dia. Há mapas, placas explicativas e áudio-guias em nove diferentes línguas. No cineteatro construído na antiga sede administrativa, um documentário sobre o campo é exibido em quatro línguas alternadas, com legendas em outras três. Na livraria do memorial, há livros, panfletos, estudos acadêmicos e vídeos em diversos idiomas.
 
Uma biblioteca com 14 mil títulos e um arquivo público com documentos, fotos e relíquias também estão abertos à consulta pública. Só sai de lá sem informação quem quiser. 


Campo modelo

O campo de concentração da cidade de Dachau foi o primeiro inagurado pelos nazistas, em março de 1933, apenas seis semanas após Hitler chegar ao poder e, com o discurso de combater o avanço do comunismo, suspender as liberdades individuais e dar início ao seu estado policialesco. Posteriormente, serviu de modelo para os outros 44 construídos na Alemanha e nos países ocupados. Por ele passaram quase 200 mil prisioneiros. Nos primeiros anos, eles eram os presos políticos que se levantaram contra o nazistas: comunistas, socialdemocratas e sindicalistas, judeus ou não, além de sacerdotes cristãos e testemunhas de Jeová.

 
Em seguida, vieram os classificados como “antissociais”: homossexuais, ciganos, criminosos comuns. Só depois de 1938, com o início do programa genocida batizado de “Solução final”, os judeus começaram a chegar em grande número: foram 11 mil só no primeiro ano. Com a sobrecarga, as péssimas condições de sobrevida no campo tornaram-se ainda mais duras: originalmente construído para seis mil prisioneiros, chegou a abrigar 30 mil ao mesmo tempo.

Não havia espaço para quem não estava apto ao trabalho escravo necessário para o sustento da máquina de guerra de Hitler: prisioneiros em condições precárias de saúde, enfermos graves e pacientes psiquiátricos, eram imediatamente enviados a outros campos onde o extermínio em massa era prática institucionalizada. Mas em Dachau também se morria fartamente. Há registros de 41,5 mil mortes por execução, castigo extremo, desnutrição, fadiga, tifo. E são números parciais: não há informação suficiente, por exemplo, de quantos oficiais soviéticos foram executados ali.

O pequeno crematório instalado em 1938, com um forno, funcionava quase que ininterruptamente e, ainda assim, não dava vazão aos corpos abatidos no campo.
 
Em 1940, foi instalado um maior, equipado com quatro fornos e com uma câmara de gás, disfarçada de chuveiro. Ainda assim, quando os aliados libertaram os 30 mil prisioneiros que sobreviveram ao regime nazista, três mil corpos em estado avançado de decomposição se acumulavam em caminhões. A cena registrada em fotos e filme é uma das mais fortes do documentário.

Visita ácida

O nó no estômago já se instala no antigo portão que dá acesso campo, onde a inscrição “O trabalho liberta” parece afrontar à vida e à história. Dentro da grande área cercada por arame farpado, valas e sete torres de guarda, o clima parece mais frio do que os termômetros são capazes de registrar. Já no início do inverno, o dia amanhece tarde com uma fina camada de gelo cobrindo todo o espaço externo. Impossível acreditar que seres humanos descalços, inadequadamente vestidos e mal alimentados pudessem sobreviver ali por muito tempo. Mais: que ainda conseguissem vencer os trabalhos forçados ou as experiências “científicas” a que eram submetidos.


Na grande área principal do campo, funcionava a administração, em prédio hoje transformado em museu. Mais adiante, 36 galpões abrigavam os prisioneiros, divididos por categorias. Os 2,7 mil sacerdotes de 20 países ali detidos ficavam em galpões específicos. Só os alemães tinham autorização para celebrar a eucaristia.
 
Os de outras nacionalidades, se pegos exercendo sua fé, eram imediatamente executados. Presos políticos e comuns, ciganos, homossexuais, judeus dividiam os outros prédios e trabalhavam na construção de estradas e na indústria bélica. Para isso, outros 36 subcampos de trabalho foram construídos nas imediações de Dachau. O envolvimento da cidade com o extermínio está fartamente documentado no museu do campo.

As condições dos alojamentos eram as piores possíveis. Destruídos pelas tropas aliadas, eles foram reproduzidos em duas unidades idênticas às originais: banheiros coletivos que desrespeitavam qualquer vestígio de crença no caráter humano dos prisioneiros, além de quartos gelados e tão desconfortáveis que mais pareciam poleiros para criação de aves. A alimentação fornecida consistia em sopa rala uma vez ao dia. O índice de morte por desnutrição era altíssimo. Nos últimos anos, o tifo também dizimou muitas vidas.

Do lado esquerdo da cerca de arame farpado, separada do campo principal por um rio gelado, ficava a área do crematório, o chamado Galpão X, operado pelos próprios prisioneiros. Era nesta área que ocorriam também as execuções dos aliados capturados, incluindo os oficiais soviéticos e as mulheres do batalhão britânico que saltaram de paraquedas para ajudar a resistência francesa a lutar contra o nazismo.

Não há registro de que a câmara de gás tenha sido usada em Dachau para assassinatos em grande escala, embora os historiadores não descartem a possibilidade de que tenha sido utilizada para testes do sistema amplamente adotado em outros campos. A propaganda nazista, fartamente documentada no memorial, chega ao extremo de alegar que o crematório foi construído posteriormente pelas tropas aliadas para acusar os oficiais da SS de crimes contra a humanidade. Depoimentos dos sobreviventes e documentos históricos resgatados desmentem a tese.

Vítimas, imprensa e classe médica

O prédio da administração, hoje transformado em museu, se propõe a reconstruir não só a memória das vítimas, com documentos, fotografias e objetos pessoais, mas também a recriar as condições históricas em que o nazismo se implantou na Alemanha. Merece destaque o acerto de contas com a imprensa que, por motivação ideológica, poder, dinheiro ou tudo isso junto, apoiou o regime de Adolf Hitler. São inúmeros os jornais propagadores dos ideais e das mentiras nazistas recuperados e registrados ali, para que ninguém jamais se esqueça.

 Também há farto material sobre as experiências científicas que usaram seres humanos como cobaias, resultando em muitas mortes e nenhuma descoberta digna de nota. Assim como os jornalistas, a classe médica que compactuou com tamanha barbárie também não passa impune à memória histórica ali bem resgatada. Prisioneiros eram submetidos à descompressão, hipotermia, perda de sangue e quaisquer outras técnicas que ajudassem a ciência nazista a detectar os níveis de resistência humana em condições extremas. O objetivo era aplicá-las na guerra, em favor do exército alemão. Também eram cobaias em testes de medicamentos contra a tifo e a malária, por exemplo, que dizimavam as tropas. Muitos morreram assim. Outros ficaram incapacitados para sempre.

Resgate da memória

O memorial do campo foi inaugurado em 1965, por iniciativa dos seus sobreviventes e familiares, reunidos em um movimento que, em uma tradução livre, foi batizado de “Para que não se esqueça”. O governo da Baviera, que havia recuperado a área do campo após o fim da guerra, investiu os recursos necessários. Na memorial, foram construídos diversos monumentos às vítimas, criados por artistas europeus, como o iugoslavo Nandor Glid, que assina uma escultura onde cospos esquálidos se amontoam, erguida em frente ao antigo prédio administrativo. Há também quatro templos religiosos: um católico, um judaico, um ortodoxo russo, um luterano e outro ecumênico.

Ao longo dos anos, as instalações foram sendo aprimoradas e o acervo histórico, ampliado. Ciganos e homossexuais, preteridos em um primeiro momento, também conquistaram seus espaços. Após o término dos 486 julgamentos em tribunais militares e com o avanço das pesquisas acadêmicas sobre o período, a história pode ser melhor contada. Até hoje, nem todos os detalhes tenham sido reconstituídos, mas as pesquisas continuam.

As visitas são gratuitas. A administração cobra apenas pequenas taxas para os interessados em áudio-guias (de 2,5 a 3 euros) ou visitas guiadas (3 euros). Grandes grupos, escolares ou turísticos, pagam 70 euros por visitas guiadas personalizadas. Os sobreviventes que administram o memorial o definem como “espaço de educação cívica”. Mas quem visita Dachau sabe que ele é muito mais do que isso: no mínimo, um local para reflexão do quanto é necessário preservar a memória da barbárie como forma de vacinar as novas gerações contra sua possível reincidência.


Créditos da foto: Najla Passos

A rede Globo e o sionismo mundial...


Globo, os palestinos não se veem por aí


Em 19 de dezembro, foi ao ar na chamada “novela das oito” da TV Globo, intitulada “Amor à vida”, uma cena que não deixa dúvidas a quem serve a emissora: aos interesses hegemônicos e ao império.

Por Soraya Misleh*, no Instituto da Cultura Árabe


  Resistência Palestina
  Resistência Palestina

A  telenovela líder da audiência em âmbito nacional, seguida pelo Jornal Nacional, apresentou na trama um romance entre um palestino, Pérsio (Mouhamed Harfouch), e uma judia, Rebeca (Paula Braun). No capítulo em questão, o primeiro deles declara que pertenceu a uma “célula terrorista” e se diz arrependido: “Eu queria ser um homem bomba. Achava que era um sacrifício justo pela causa do meu povo. Só não fui porque eu sou filho único, a minha mãe me procurou, insistiu demais pra eu desistir. Mas eu ajudei a organizar um atentado. Um amigo meu, um amigo próximo, foi o homem bomba. Ele entrou num ônibus em Jerusalém e explodiu, matando muita gente. Mulheres, crianças... crianças como o seu irmãozinho, Rebeca. Eu me senti culpado, quando vi o seu irmão, quando falei com a sua família. Eu percebi que a guerra, o terrorismo, atinge pessoas indefesas, crianças. Vendo aquele menino sorrindo, eu percebi que um dia eu quis atacar crianças como ele. Como eu posso dizer que aquele menino é meu inimigo?.” Alguns capítulos depois, no dia 30, em uma nova conversa, Rebeca se recusa a falar com Pérsio, a não ser profissionalmente, pelo que ele quis fazer com “seu povo”. E em cena no dia 7 de janeiro último, a personagem busca conselhos junto a um rabino, já que teria se apaixonado por “um árabe, um palestino”, pertencente a um “grupo terrorista”.

O diálogo que inaugura essa farsa é permeado por desinformação, distorção e manipulação da verdade. Rebeca chega a afirmar que há muitos casais judeus e palestinos em Israel, como conviria a qualquer estado democrático. A verdade é que a própria convivência está comprometida. O apartheid imposto aos palestinos impede até que vivam no mesmo bairro.

Alguém poderia afirmar que conhece um caso assim na atualidade. Mas não é essa a regra. Os palestinos que vivem onde hoje é Israel (território palestino até 1948, ano da criação desse estado como exclusivamente judeu) são considerados cidadãos de segunda ou terceira categoria, discriminados cotidianamente – há 30 leis racistas contra essas pessoas, que lhes impedem ter os mesmos direitos. Há dezenas de aldeias em que vivem que sequer são reconhecidas por Israel, o que significa que não lhes são assegurados serviços essenciais, como fornecimento de eletricidade, água, educação e saúde de qualidade.

Quem é o terrorista?
Em 1948, ano que na memória coletiva árabe é conhecido como “nakba”, a catástrofe, foram expulsos de suas terras e propriedades cerca de 800 mil palestinos e aproximadamente 500 aldeias foram destruídas para dar lugar a Israel. Massacres exemplares são hoje comprovados. Os palestinos, desumanizados desde o início desse projeto de limpeza étnica e colonização de suas terras, não foram apagados da história graças a sua resistência – apresentada na telenovela da Globo como terrorismo. Resistência reconhecida pelo direito internacional como legítima diante da ocupação.

Ademais, os chamados atentados com homens bomba, atos desesperados perante o silêncio do mundo e a falta de alternativas, há muito foram abandonados. A contextualização histórica sobre o terror de Estado que fabricou esses “homens bomba”, durante um tempo determinado, ficou fora da telinha. Assim como os contínuos ataques israelenses, que atingem sobretudo crianças e mulheres, com tecnologias de última geração vendidas depois ao mundo. Os laboratórios humanos em que se transformaram os palestinos no shopping center que se converteu Israel à venda de suas parafernálias militares também não encontraram lugar no diálogo que foi ao ar na “novela das oito”.

O autor de “Amor à vida”, Walcyr Carrasco, reforçou, assim, mitos que são denunciados pelo historiador israelense Ilan Pappe em seu artigo “Os dez mitos de Israel”. Entre eles, de que a luta palestina não tem outro objetivo que não o terror e que Israel é “forçado” a responder à violência. Segundo ele, a história distorcida serve à opressão, à colonização e à ocupação. “A ampla aceitação mundial da narrativa sionista é baseada em um conjunto de mitos que, ao final, lançam dúvidas sobre o direito moral palestino, o comportamento ético e as chances de qualquer paz justa no futuro. A razão é que esses mitos são aceitos pela grande mídia no Ocidente e pelas elites políticas como verdade.”

O Brasil não é exceção. Na contramão da campanha global por boicotes ao apartheid israelense, o governo federal se tornou nos últimos anos o segundo maior importador de tecnologias militares da potência que ocupa a Palestina e porta de entrada dessa indústria à América Latina. E sua cumplicidade com a opressão, ocupação e apartheid a que estão submetidos os palestinos é justificada a milhares de espectadores desavisados da novela da Globo, através de um discurso que reproduz a versão falsificada da história e se fortalece perante a representação orientalista – em que os árabes seriam “orientais” bárbaros e atrasados, ante cidadãos pacíficos e civilizados, segundo explicita o intelectual palestino Edward Said em seu livro “Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente”.

Democratização já!

Num cenário de concentração midiática, preconceitos como esse – não são os únicos – são especialmente graves. Assim como é bastante preocupante que o tradicional show natalino do cantor Roberto Carlos, exibido na mesma emissora ao final de 2013, tenha sido patrocinado pela marca Café Três Corações, que tem como acionista majoritária uma empresa israelense cuja colaboração com a opressão em terras palestinas já foi amplamente denunciada.

Apesar do crescimento acentuado de usuários da internet – que chegaram à marca de 94,2 milhões ao final de 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) –, a maioria da população brasileira ainda se informa sobretudo pela TV, presente em 96,9% dos domicílios, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). Enquanto a propaganda nesse meio é o principal impulsionador ao consumo, programas de entretenimento como as telenovelas igualmente moldam comportamentos, conceitos e ideias. E a produção desses encontra-se nas mãos de apenas seis famílias, detentoras das concessões públicas que lhes garantem espaço para difundir livremente preconceitos e falsificações históricas. Outorgas concedidas muitas vezes ao arrepio das leis vigentes, renovadas pelo governo brasileiro sem qualquer critério para garantir a pluralidade e diversidade na produção cultural.

Para transformar a realidade, é fundamental reforçar a luta pela democratização das comunicações e denunciar essas distorções que grassam na TV brasileira. É importante se somar às vozes que, nas manifestações de junho de 2013, protestaram contra o monopólio da mídia e elegeram para tanto o lema: “Globo, a gente não se vê por aqui”.

*Soraya Misleh é jornalista, membro da diretoria do ICArabe, da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Mopat (Movimento Palestina para Todos)