A
decisão da FIFA de permitir às jogadoras dos países muçulmanos jogarem
com véu e corpo coberto é um perigoso precedente e uma grande vitória da
religião muçulmana sobre o mundo laico.
A notícia é muito mais política que esportiva e constitui a primeira
grande brecha importante dos religiosos muçulmanos no mundo laico, num
setor bastante popular como é o futebol. A França é até agora o único
país a reagir, pois decidiu continuar proibindo o uso do véu (chador) pelas jogadoras inscritas na Federação Francesa de Futebol, com base na laicidade.
Sem começar qualquer jogo, são perdedoras todas as mulheres do mundo,
porque o Ocidente laico está aceitando se submeter aos preceitos
religiosos corânicos. As jogadoras dos países muçulmanos poderão
competir com o véu, que cobre a cabeça e uma parte do rosto, mas não é
só – mesmo com temperatura elevada terão de vestir uma traje de jogging
cobrindo todo o corpo, um tanto folgado para não mostrar as formas das
jogadoras.
O pretexto de se tratar de uma questão cultural árabe ou tradição não
é procedente, pois muitas mulheres muçulmanas denunciam o véu como uma
imposição masculina e uma restrição à sua liberdade. A decisão da FIFA,
ao se dobrar ante uma exigência religiosa, anula os esforços de algumas
esportistas iranianas e árabes de obter derrogação para jogarem sem o
véu.
A francesa Anne Sugier, presidente da Liga do Direito Internacional
das Mulheres, num artigo publicado no Journal du Dimanche, em Paris,
considera a decisão da FIFA uma derrota para as mulheres e uma vitória
para os religiosos dos países do Golfo, liderados pelo Qatar, que sob
uma aparente promoção do esporte feminino reforçam a condição da mulher
como cidadã de segunda classe.
Anne Sugier lembra algumas mulheres campeãs olímpicas que desafiaram
os religiosos muçulmanos competindo de cabeça nua e no traje normal dos
atletas, como, em Los Angeles, em 1984, a marroquina Nawal
El-Moutawakel, primeira campeã olímpica africana e muçulmana, e Hassiba
Boulmerka, primeira medalha de ouro da Argélia, em 1991, em Barcelona,
que chegou a ser ameaçada de morte pelos islamitas argelinos do FIS e
que dedicou sua vitória às mulheres argelinas.
Com a desculpa de se tratar de uma simples questão cultural o uso de
um tecido cobrindo os cabelos (mas sem citar que as jogadoras são
obrigadas a jogar de corpo totalmente coberto) o International Football
Association Board ignorou o Artigo 4 do Regulamento da FIFA que proibe
qualquer concessão política ou religiosa aos jogadores.
A pressão crescente veio da CAF, Confederação Asiática de Futebol,
que representa mais de 220 milhões de muçulmanos, apoiada por um dos
vice-presidentes da FIFA, príncipe Ali ben Al-Hussein da Jordânia, e
pelo Irã. Essa brecha na laicidade do esporte pode chamar outras – a das
jogadoras das seleções femininas dos países não muçulmanos serem
convidadas a usarem o véu, quando os jogos forem em país muçulmano, a
pretexto de respeito de sua cultura (e não de sua religião!).
Com a esperada popularização do futebol feminino, a singularidade das
equipes de países muçulmanos nos encontros internacionais poderá
provocar protestos das mulheres ocidentais mas será, ao mesmo tempo, uma
publicidade religiosa até hoje ausente nos estádios. E logo mais haverá
certamente novas medidas religiosas aceitas tanto pela FIFA como pelo
COI.
Mas não é só no futebol a infiltração da lei corânica – os pais pedem
dispensa das meninas nos cursos mistos de natação nas escolas, as
mulheres não aceitam ser examinadas por médicos homens e maternidades
são obrigadas a prever médicas no trabalho de parto de mulheres
muçulmanas.
Traço marcante que envolveu essa decisão da FIFA – a insensibilidade
geral da imprensa que parece ter achado normal como se fosse uma
abertura da FIFA aos países muçulmanos e não uma restrição religiosa
local às mulheres agora imposta de maneira global.
E nossa visão da mulher ? Um objeto de cobiça e desejos pecaminosos
que deve ser obrigada a ficar coberta da cabeça aos pés para não
despertar lascívia ? Que as mulheres reajam, mesmo no Ocidente, antes
que seja tarde demais – na Tunísia, Líbia e Egito, onde podiam passear e
ir à escola, universidade ou trabalho com roupas normais, as mulheres
voltaram a ser obrigadas a colocar o véu e a usar roupas e mangas longas
para cobrir seu corpo. Foi o inesperado retrocesso resultante da
revolução árabe, numa mistura de religiosidade com machismo. (Publicado originalmente no site Direto da Redação)
Rui Martins, correspondente em Genebra