No apoio ao Haiti, que o mundo comovido
e solidário se apressou a dar, a União Europeia mais uma vez é
quase totalmente invisível. É claro que os Estados Unidos, o Brasil
e outros países da região estão muito mais envolvidos do que os
europeus, o que é natural dada a proximidade, mas é também um
facto que vários países europeus estão a prestar uma ajuda
significativa nesta operação de socorro. No entanto, ao vermos os
relatos televisivos vindos do Haiti, todos reparamos nas marcas bem
visíveis da "US AID" e outras, mas o mesmo não acontece com a
"EU AID". Porquê? Porque ela verdadeiramente não existe
enquanto tal.
Agora, com o caso do Haiti, é possível
que a questão da organização da protecção civil da UE volte a
ganhar maior relevo e acuidade no debate político europeu, como
aconteceu anteriormente após outros terramotos ou outras grandes
catástrofes naturais, nomeadamente na sequência do tsunami na Ásia,
do furacão Katrina na América, de inundações em vários pontos do
globo ou dos últimos grandes fogos florestais na Grécia.
Qual é a situação actual da União
Europeia nesta matéria? Apesar de todos concordarem ser fundamental
o apoio às populações neste campo, a UE sempre esteve em atraso em
relação à realidade e não assumiu verdadeiramente as suas
responsabilidades. A coordenação europeia da assistência às
populações em caso de desastres de grandes proporções foi
estabelecida há apenas uma década, o que revela a baixa prioridade
atribuída a esta acção, se comparada com outras políticas e
actividades da União.
Temos hoje um Mecanismo Comunitário
de Protecção Civil, onde participam 30 países, que foi criado
em 2001 e reformulado por uma decisão do Conselho em 2007, sob
presidência portuguesa. Os seus principais instrumentos são um
Centro de Informação e Vigilância (CIV) onde são recebidos os
pedidos de ajuda e que centraliza e distribui a informação, um
Sistema Comum de Comunicação e Informação de Emergência (CECIS)
que facilita as comunicações dos países e das forças envolvidas
numa operação de emergência, um Programa de Formação que inclui
a realização de exercícios conjuntos e a fomenta a troca de
experiências e de conhecimentos, e finalmente os Módulos de
Protecção Civil, módulos especializados em diferentes tipos de
tarefas (no final de 2010 poderão existir mais de uma centena destes
módulos), constituídos por recursos de um ou vários países, numa
base voluntária, que são organizados a nível dos Estados-Membros e
ficam sob sua direcção e comando.
Este Mecanismo facilita e coordena a
ajuda dos Estados-Membros, mas a União, enquanto tal, não presta
essa ajuda. Ora, a União Europeia, pela sua dimensão, pela sua
reconhecida competência técnica e pela sua capacidade humana e
financeira, poderia e deveria hoje ter uma presença mais marcante e
muito mais útil na ajuda às populações mas, para que isso se
torne possível, terá de ser adoptada uma perspectiva mais ambiciosa
do que a que hoje existe, ultrapassando a fase de mera coordenação
dos diferentes meios e das forças de protecção civil dos
Estados-Membros.
Já é tempo de procedermos à criação
de uma Força de Protecção Civil da UE, uma força própria,
com recursos humanos e logísticos próprios e sempre disponíveis
para intervir em qualquer ponto da União e em qualquer local do
mundo onde a sua acção possa ser útil. Na sequência dos grandes
incêndios do Verão de 2007 na Grécia, o Parlamento Europeu
mostrou-se sensível ao apelo de criação desta força. Mas nunca
foram dados os passos necessários. Talvez a catástrofe do Haiti e a
quase ausência da UE, enquanto tal, no esforço internacional de
ajuda possa dar o impulso decisivo para finalmente avançarmos.
Em regra, os grandes desastres são
esporádicos e localizados, embora as mudanças climáticas possam
vir a alterar este padrão no que se refere às catástrofes
naturais. Por exemplo, um grande derrame de crude no mar, como
aconteceu com o acidente do Prestige na Galiza, tem uma probabilidade
ínfima de coincidir com outro evento do mesmo tipo noutro ponto da
Europa e mesmo do mundo. A protecção civil deve estar equipada com
todos os meios necessários para um combate rápido e eficaz à
poluição catastrófica causada por estes acidentes, mas não seria
uma opção racional que todos os países da UE com costa marítima
tivessem de fazer o seu próprio investimento para estarem plenamente
preparados para esta eventualidade. Esses países podem sentir-se
suficientemente assegurados se esta Força de Protecção Civil da UE
estiver bem preparada, bem equipada e bem financiada, de forma a
poder, em articulação com os meios da Agência Europeia de
Segurança Marítima, intervir de forma eficaz a qualquer momento em
qualquer lugar. O investimento global seria muito menos pesado do que
a soma dos investimentos individuais dos diferentes países e os
resultados seguramente muito mais satisfatórios.
O mesmo se pode dizer em relação aos
outros tipos de desastres de grandes dimensões. É óbvio que esta
Força europeia de Protecção Civil não dispensa a existência de
forças de protecção civil dos vários países, das regiões e das
cidades, o que pode é dispensar estas forças de investirem na
resposta de larga escala a certo tipo de acontecimentos raros e
extremos.
Dificuldades nos transportes (como
agora se viu) podem ser uma das principais limitações à prontidão
e capacidade operacional da protecção civil. À escala da UE
(diferentemente da escala nacional), a aquisição de todos os meios
de transporte necessários para as acções de ajuda rápida faz todo
o sentido. Por aquisição deve entender-se não apenas a compra, mas
também a alocação a esta Força, a título permanente, de meios já
existentes nas forças armadas dos Estados-Membros e que se considere
viável transferir para a EU AID.
Não seria necessário construir esta
Força a partir do zero se os Estados-Membros se decidissem a
contribuir para a sua constituição com uma parte das suas forças
armadas, reconvertidas para as tarefas de protecção civil. Portugal
pode fazê-lo sem grande esforço. A perspectiva de o nosso país ser
invadido ou atacado militarmente é tão baixa como a probabilidade
de virmos a decidir invadir ou atacar outro país. Assim sendo, uma
parte dos nossos efectivos e equipamentos militares poderia muito bem
ter a sua missão reorientada para a protecção civil europeia.
Passariam a ter uma vida mais dinâmica e muito mais útil à
comunidade, sem pesarem mais no orçamento. É claro que ter-se-ia de
investir mais em navios de despoluição e menos em submarinos, mais
em tanques de água e menos em tanques de guerra, mais em hospitais
de campanha e menos em metralhadoras.
Apesar destas transferências, seria
ainda necessário um adequado financiamento europeu. No entanto, as
verbas atribuídas à nova Força de Protecção Civil da UE seriam
certamente um dos capítulos mais consensuais do orçamento europeu,
um dos investimentos que poderiam ter maior impacto na qualidade de
vida das populações e também na percepção que estas têm
utilidade concreta da UE.
Se todos os Estados-Membros
contribuíssem com uma parte das suas forças armadas reconvertidas e
se se dispusesse ainda de um orçamento comunitário adequado, a UE
passaria a dispor a curtíssimo prazo da maior força de protecção
civil do mundo, e a EU AID seria uma grande potência mundial de
soldados da paz. Conjugada com a ajuda humanitária, esta Força
permitiria a projecção de uma imagem positiva da UE junto de todos
os povos do mundo e faria mais pela nossa política externa do que
anos de diplomacia e de acordos de parceria económica de intenções
duvidosas. A nossa Força de Protecção Civil da UE seria ainda um
apoio importante para as Nações Unidas e todos os esforços
internacionais nesta área.
Internamente à UE, o efeito seria
também enorme na opinião pública. Quando se fala no valor
acrescentado da União relativamente aos Estados-Membros, talvez seja
difícil encontrar outra área de actividade em que esse valor
acrescentado possa ser tão evidente, seja quando a Força de
Protecção Civil da UE actue como força principal, seja quando
funcione como reforço ou fornecedor de recursos complementares às
forças nacionais de protecção civil.
Renato Soeiro
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