terça-feira, 22 de setembro de 2009

E vai rolar a festa







Escrito por Gabriel Brito
- Correio da Cidadania

Nesta semana, o BNDES anunciou ao público uma linha de crédito no valor de 4,8 bilhões de reais para a construção dos estádios que abrigarão os jogos da Copa do Mundo de 2014. De acordo com o plano, o banco concederá 400 milhões para cada uma das novas arenas, ficando de fora apenas os estádios do Morumbi (São Paulo FC), Beira Rio (Internacional) e Arena da Baixada (Atlético-PR), impedidos de aderirem ao financiamento por serem particulares.

Com a decisão, vai ficando cada vez mais pavimentado o caminho para o uso indiscriminado do dinheiro público na farra que se avizinha, pois já é líquido e certo que serão os governos estaduais de cada sede a botarem a mão na massa e erguerem os estádios. Apesar de ainda se buscarem parceiros privados, a falta de sinais vindos desse setor já deixa claro que os estados e municípios terão de criar os filhotes (de elefante).

E como demonstração cabal de um país desprovido de qualquer sentido cidadão, o presidente da CBF Ricardo Teixeira, após decantar o contrário desde a escolha do Brasil como sede, foi obrigado a reconhecer (com muito pesar, é certo) de que realmente será necessário dinheiro público na construção dos novos campos, uma vez que a crise internacional (sempre ela) teria afastado os investidores (nunca apresentados) dos projetos.

Como prova do país leniente que também somos, expirou no último dia 31 o prazo estabelecido pela FIFA e Comitê Organizador da Copa para abertura de licitações para as obras, o que já preocupa os dirigentes máximos do órgão. Jerome Valcke, secretário geral da entidade, já disse que passou da hora de o país começar de fato a tocar o projeto do mundial.

Como dar jeitinho é algo rotineiro por aqui, Ricardo Teixeira já se antecipou aos imprevistos e estendeu, só de boca, o prazo para início das obras de fevereiro para março de 2010. Enquanto isso, podemos observar contradições e intrigas em torno de cada um dos projetos, sem exceção, aventura que ainda não sabemos que preço cobrará do futebol nacional em seu cotidiano até e depois da Copa.

Financiar maquete ou o que já existe?

Estranhamente, excluíram-se da linha de crédito os três citados estádios, com a alegação de que já têm seus respectivos donos. No entanto, quantas dezenas de projetos o BNDES já financiou para a iniciativa privada, sem qualquer contrapartida social? Até fazenda identificada por impor trabalho escravo foi detectada como receptora de financiamento do banco recentemente.

Portanto, se o Morumbi será o estádio paulista da Copa, por que não financiá-lo também? Afinal, trata-se de empréstimo apenas. Não é mais seguro oferecer crédito a um estádio já erguido, com conhecidas fontes de receita e no principal centro econômico do país do que jogar um rio Amazonas de dinheiro público em localidades que só têm as maquetes de feira de ciências até agora? Para muita gente, trata-se de um inconfessado desejo de construir um novo estádio na metrópole, fazendo a alegria de muitos envolvidos.

Pois será assim. Na hora dos anúncios, festa, tapinha nas costas e garantia de retorno ao investimento. Porém, é difícil imaginar que tamanha fortuna não vá para o ralo em determinados, ou vários, casos. O argumento básico é de que os estádios serão ‘multiuso’, ou seja, poderão receber shows, eventos, vender espaços, camarotes, ter restaurantes, salas de cinema e por aí afora, de modo a potencializar os ganhos com o local, algo muito comum na Europa, mas nunca feito por aqui (exceto no estádio do Atlético-PR!).

Tudo legítimo, correto, pois o estádio precisará ser mantido além de construído. Porém, deixa-se de lado que tais premissas não cabem em todos os lugares. Primeiro, porque a razão primordial de sua existência ainda serão as partidas de futebol. Outra coisa: os Rolling Stones já tocaram em Manaus? Não que não possam, mas é evidente que tal empreitada só pode ter (alguma) garantia de retorno em centros mais ricos, que fazem parte do circuito internacional das finanças, entretenimento etc. Logo, recuperar tal monta de investimentos em determinadas praças será missão praticamente impossível.

Vá tomando nota

Dentre as cidades contempladas como sede, algumas seguem cobertas de incerteza, e, se já está difícil angariar apoio privado em grandes centros, em outros já é óbvio que tudo recairá sobre os cofres públicos. Além do mais, como já alertado neste espaço, nossa iniciativa privada sempre foi muito, digamos, ‘mimada’ pelos governos de plantão.

Ou seja, qualquer grupo empresarial que possa ter interesse nos eventuais lucros dos estádios e que possua o mínimo conhecimento de como funcionam as coisas por aqui saberá que a hora de injetar dinheiro não é essa. Sabedores de que a aventura já foi assumida oficialmente pelo país, têm a certeza de que as arenas serão levantadas, de um jeito ou de outro.

Depois, com tudo prontinho, já poderemos esperar os governos dizerem que os custos de manutenção são demasiado elevados e que é necessário passar sua administração a algum grupo capaz de gerenciar. E aí eles entram em cena, e, sob os auspícios dos próprios governantes, ganham de presente um enorme patrimônio feito com verba pública. Foi assim com o Engenhão, construído para o Pan 2007 por 380 milhões, e que passou para as mãos do Botafogo sob o módico aluguel de 36 mil reais por mês. Com um exemplo desses, quem vai ser trouxa de abrir a carteira?

Pra tentar finalizar esse tema cheio de desdobramentos, e com diversos casos que merecem uma abordagem mais específica, chegamos ao ponto em que já não temos tanto tempo para tocar todas as obras, inclusive as estruturais, a tempo do Mundial, ainda que o tempo pareça longo.

Sendo assim, e já foi avisado, muitos estádios terão de ser fechados por um período doloroso. Mineirão e Maracanã deverão ser fechados por dois e três anos respectivamente, pois a FIFA ordena que assim se faça nos estádios que abrigarão jogos. Pois é, enquanto se prepara a farra da qual o torcedor nem sabe se poderá participar (teme-se por preços exorbitantes nos jogos), este poderá ficar privado de seu futebolzinho cotidiano também.

Os clubes mineiros ainda não têm idéia do que fazer. Já os cariocas terão de se contentar com palcos menores e infinitamente menos queridos; lembrando que o estádio já fechara por dois anos entre 2004 e 2006.

Desse modo, o cenário parece montado. A torneira governamental será aberta, os estádios estarão em pé, licitações serão atropeladas em nome da urgência e, depois de voltarem à realidade das partidas para 3 mil pessoas em Brasília, Manaus ou o que seja, nossos ‘capitães da copa’ entregarão suas brincadeiras faraônicas para os privilegiados de sempre, locupletando-se todos, como sempre também. Tudo isso descontando as hipóteses de irregularidades em todo o processo, assunto, esse sim, que ficará como principal ‘legado’ da Copa do Mundo no Brasil.

Gabriel Brito é jornalista.

Rosa Luxemburgo e a pena de morte...

Um dever de honra

por Enlace

Isabel Loureiro, filósofa e professora da Universidade de São Paulo, apresenta uma tradução inédita de um pequeno artigo no qual a aguerrida intelectual polonesa Rosa Luxemburgo se posiciona veementemente contra a pena de morte.

Por Rosa Luxemburg

Não queríamos “anistia” nem perdão para as vítimas políticas do velho poder reacionário. Exigíamos nosso direito à liberdade, à luta e à revolução para aquela centena de militantes corajosos e leais que definhavam nas penitenciárias e nas prisões por terem lutado, sob a ditadura militar do bando criminoso imperialista, pela liberdade do povo, a paz e o socialismo. Agora estão todos em liberdade. Estamos novamente enfileirados, prontos para o combate. Não foram os Scheidemann e seus cúmplices burgueses, com o príncipe Max (1) à frente, que nos libertaram. Foi a revolução proletária que fez explodir as portas de nossas casamatas.

Contudo, outra categoria de habitantes infelizes desses edifícios lúgubres foi completamente esquecida. Ninguém pensou até agora nos milhares de figuras pálidas e macilentas que definham anos a fio atrás dos muros de prisões e penitenciárias expiando crimes comuns.

E no entanto são vítimas infelizes da infame ordem social contra a qual a revolução se dirigiu; são vítimas da guerra imperialista, que levou a miséria e a desgraça aos extremos da mais insuportável tortura; que, ao custo de uma carnificina brutal, desencadeou em naturezas fracas, dotadas de taras hereditárias, os instintos mais vis.

A justiça de classe burguesa funcionou mais uma vez como uma rede que deixa tranquilamente escapar de suas malhas os tubarões rapaces enquanto as pequenas sardinhas nelas se debatem desamparadas. Os especuladores, que ganharam milhões com a guerra, ficaram na sua maioria impunes ou receberam penas pecuniárias ridículas; os pequenos ladrões e as pequenas ladras são punidos com penas de prisão draconianas.

Passando fome e frio nas celas quase sem aquecimento, psiquicamente abatidos pelo horror dos quatro anos de guerra, esses enjeitados sociais esperavam misericórdia e alívio.

Mas esperam em vão. O último dos Hohenzollern, soberano bondoso preocupado em fazer os povos degolarem-se uns aos outros e em distribuir coroas, esqueceu-se dos infelizes. Desde a conquista de Liège não houve durante quatro anos qualquer anistia digna de menção, nem sequer no feriado oficial dos escravos alemães, o “aniversário do Kaiser”.

Agora a revolução proletária precisa iluminar com um pequeno raio misericordioso a existência sombria nas prisões e nas penitenciárias, diminuir as sentenças draconianas, abolir o bárbaro sistema disciplinar – correntes, açoites! –, melhorar no que for possível o tratamento e os suprimentos médicos, a alimentação e as condições de trabalho. É uma questão de honra!

O sistema penal existente, profundamente impregnado de um brutal espírito de classe e da barbárie do capitalismo, precisa ser extirpado de vez. É preciso começar imediatamente uma reforma de base do sistema penal. É evidente que uma reforma totalmente nova, no espírito do socialismo, só pode ser estabelecida sobre o fundamento de uma nova ordem econômica e social, pois tanto crimes quanto castigos estão em última instância enraizados nas condições econômicas da sociedade. No entanto, uma medida radical pode ser adotada sem mais: a pena de morte, a maior vergonha do ultra-reacionário código penal alemão, precisa desaparecer imediatamente! Por que hesita o governo dos trabalhadores e soldados? Será que o nobre Beccaria, que há duzentos anos denunciou em todas as línguas civilizadas a infâmia da pena de morte, não existiu para vocês, Ledebour, Barth, Däumig? Vocês não têm tempo, têm pela frente mil preocupações, mil dificuldades, mil tarefas. É verdade. Mas peguem o relógio e olhem quanto tempo leva para abrir a boca e dizer: está abolida a pena de morte! Ou será que entre vocês deveria haver a esse respeito um longo debate com votação? Será que nesse caso vocês também se deixariam enredar num emaranhado de formalidades, considerações de competência, questões de rubricas, carimbos e futricas semelhantes?

Ah, como é alemã esta revolução alemã! Como é prosaica, pedante, sem entusiasmo, sem brilho, sem grandeza. A pena de morte esquecida é somente um pequeno detalhe isolado. Mas é precisamente nesses pequenos detalhes que se trai de costume o espírito intrínseco do todo!

Peguemos qualquer livro de história da grande Revolução Francesa, por exemplo, o árido Mignet. É possível ler esse livro sem o coração palpitante e a fronte em brasa? Quem abriu qualquer página ao acaso pode largá-lo antes de ter ouvido, empolgado, sem fôlego, o último acorde desse grandioso acontecimento? É como uma sinfonia de Beethoven, intensamente poderosa, uma tempestade trovejando no órgão dos tempos, grande e soberba, tanto nos erros quanto nos acertos, tanto na vitória quanto na derrota, tanto em seu primeiro grito ingênuo de júbilo quanto em seu último suspiro. E o que acontece agora na Alemanha? A cada passo, pequeno ou grande, sente-se que são sempre os velhos e bem comportados companheiros da defunta social-democracia alemã, para quem os carnês de filiação eram tudo, os homens e o espírito, nada. Não devemos nos esquecer contudo que não se faz história sem grandeza de espírito, sem pathos moral, sem gestos nobres.

Liebknecht e eu, ao deixarmos os hospitaleiros espaços onde vivemos ultimamente – ele, seus irmãos de penitenciária, de cabeça tosada, eu, minhas pobres queridas ladras e mulheres da rua com quem vivi três anos e meio debaixo do mesmo teto – nós lhes prometemos solenemente, enquanto nos acompanhavam com o olhar triste: não os esqueceremos!

Exigimos do Comitê Executivo dos conselhos de operários e soldados um abrandamento imediato do destino dos prisioneiros em todos os cárceres da Alemanha!

Exigimos a supressão da pena de morte do código penal alemão!

Durante os quatro anos de genocídio imperialista o sangue correu em torrentes, em riachos. Agora é preciso guardar respeitosamente cada gota dessa seiva preciosa em recipientes de cristal. A mais violenta atividade revolucionária e a mais generosa humanidade – este é o único e verdadeiro alento do socialismo. Um mundo precisa ser revirado, mas cada lágrima que cai, embora possa ser enxugada, é uma acusação; e aquele que, para realizar algo importante, apressadamente e com brutal descuido esmaga um pobre verme, comete um crime.


Die Rote Fahne (Berlim), nº3, 18 de novembro de 1918.


Tradução: Isabel Loureiro

NOTAS

(1) Em 3 de outubro de 1918 o príncipe Max de Bade foi nomeado chanceler, tendo formado um governo parlamentar com o objetivo de paralisar o movimento revolucionário na Alemanha, salvar as classes dominantes e negociar com a Entente. Faziam parte do governo, entre outros, o líder da bancada do partido do Centro, Adolf Gröber, Friedrich von Payer como representante do Partido do Progresso, Philipp Scheidemann e Gustav Bauer como representantes da social-democracia.