quinta-feira, 13 de junho de 2013

Síria: guerra civil ou como destruir a primeira democracia do Oriente Médio


 POR RAMEZ PHILIPPE MAALOUF   no CORREIO DA CIDADANIA



Nasce, sob um regime democrático, o Reino Árabe-Sírio

A República Árabe da Síria é apenas uma lasca do território da Síria histórica, cujo território corresponde, nos dias de hoje, ao Líbano, Jordânia, Palestina/Israel e porções do Iraque e da Turquia (o sanjack de Alexandreta, convertida pelos turcos em província de Hatay, cedido pelos franceses aos turcos, em 1939). O líder político sírio-libanês Antoun Saadeh, em seu projeto geopolítico da Grande Síria, chegou a reivindicar os antigos limites do Império Assírio, englobando ainda o Chipre, o Kwait e a Península do Sinai.

A Síria Histórica, denominada pelos árabes de Bilad al-Sham (Terra do Sol), foi habitada na Antiguidade pelos amoritas, fenícios-cananeus, arameus, hititas, entre outros, e foi dominada pelos assírios, babilônicos, egípcios, hititas, grego-macedônios e romanos. Em seu território, a religião Cristã foi fundada e disseminada para o mundo, a partir de Antioquia (hoje ocupada pela Turquia). Foi uma província do Império Romano e caiu sem resistência significativa ante a expansão árabe-muçulmana iniciada, a partir da Península Arábica, no século VII. Mesmo sendo habitada majoritariamente por cristãos, converteu-se na sede do primeiro Império Árabe-Muçulmano, o Omíada, que se estendia do Oceano Atlântico à Ásia Central (da Península Ibérica à Índia). No século XVI, passou a ser parte do Império Otomano (baseado na Anatólia).

Durante o expansionismo britânico, sob a égide do Capitalismo, no século XIX, os territórios do Império Otomano serviram como passagem obrigatória entre a Europa e a Índia, que se converteram numa zona tampão nas disputas imperialistas entre britânicos, russos, franceses e, marginalmente, italianos, alemães e norte-americanas.

Logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a derrota final dos otomanos (naquele momento turquicizados), em 1920, foi estabelecido pelo Tratado de São Remo o sistema de mandatos, no qual se firmou o domínio francês sobre a Síria (que incluía o Líbano e a província de Alexandreta, cedida aos turcos em 1939); e o domínio britânico sobre a Mesopotâmia (atual Iraque), Transjordânia e Palestina (hoje ocupada por Israel). O Tratado não respeitava a proclamação do Reino Árabe da Síria pelo Congresso Nacional Árabe-Sírio de 1920, sob a monarquia constitucional e parlamentar do rei Faysal al-Hachemi. Neste Congresso, também foi estabelecida a fundação de uma universidade e eleições livres e regulares. Isto é, o Reino Árabe-Sírio nasceu sob um regime democrático e laico. Não se estranha, portanto, que, nos dias atuais, mesmo sob um governo autoritário – o de Bassar al-Assad e do Partido Ba’ath –, a Síria segue tendo um parlamento funcionando com oito partidos legalizados (incluindo nacionalistas, socialistas e comunistas).

A divisão do território sírio, no combate à democracia e ao nacionalismo

Para combater a democracia síria e o nacionalismo árabe, a França dividiu o território sírio entre as comunidades confessionais para implodir qualquer identidade nacional e até mesmo de classe, acirrando o sectarismo religioso. Assim, surgiu o Líbano, extirpado para ser o “paraíso dos maronitas”, em 1920, o Estado Alauíta, o Estado do Monte Druzo, o Estado de Alepo (“sunita”) e o Estado de Damasco (“sunita”). Esta partilha resultou em sangrentas revoltas ferozmente reprimidas pelos franceses. Em 1924, a Síria voltaria a ser unificada, mas sem o Líbano, que permaneceria independente, fruto de um acordo entre a burguesia sunita local e as classes médias cristãs maronitas.

Portanto, a atual Síria é uma mutilação do histórico território da Síria, provocada por uma conjunção (cruel) de intervenções estrangeiras, sobretudo europeias, com interesses político-econômicos locais, não levando em conta a convivência milenar entrelaçada entre si de inúmeras etnias e comunidades religiosas. Esta conjunção levaria ao Acordo de Sykes-Picot-Sazonov, firmado entre Reino Unido, França e a Rússia czarista em 1916, dividindo a região em “zonas de influência” para cada potência. Os ingleses sabiam que não poderiam arcar sozinhos com o domínio sobre os territórios do Império Otomano desintegrado, por isso, resolveu partilhar a região com seus sócios/rivais para entretê-los enquanto seus interesses na Índia e no Extremo-Oriente eram preservados.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a república democrática e constitucional da França se tornou aliada do regime nazista alemão e, portanto, inimiga da Inglaterra e dos EUA. Os ingleses atacaram o Líbano sob mandato, em 1941, levando à independência de facto do país, em 1943. Mas a independência da Síria de facto só ocorreria em 1946, após um bombardeio aéreo francês sobre Damasco, assassinando centenas de civis. A Síria nasceria como uma República constitucional, parlamentar, democrática e laica, recusando e refutando o sectarismo étnico e confessional instilado pelas potências europeias imperialistas, Inglaterra e França.

A Síria atual

A atual Síria está estrategicamente localizada no entroncamento entre a Ásia, África e Europa, fazendo fronteira a leste, com o Iraque, ao sul, com a Jordânia, a oeste, com o Líbano, ao norte, com a Turquia e, à sudoeste, com a Palestina ocupada por Israel. O país não tem limites com o Irã. Tem uma população atual de 22 milhões de pessoas, uma superfície de 186 mil km2. Embora seja banhado pelos rios Tigre e Eufrates, grande parte do território é ocupado pelo deserto da Síria. Sua economia, sob intervenção estatal, é ainda predominantemente agrícola, ainda que o turismo seja uma importante fonte de divisas.

Assim como o Brasil, a França, o Reino Unido, a Itália, os EUA, a Espanha, a Rússia e a China, a Síria também é uma sociedade multiétnica (com a presença de curdos, armênios, arameus, turcos e árabes, entre outros) e multiconfessional (ateus, judeus, católicos romanos, protestantes, assírios, caldeus, siríacos, jacobitas, greco-melquitas, greco-ortodoxos, armênios gregorianos, armênios ortodoxos, maronitas, xiitas, sunitas, druzos, ismaelitas, alauítas, entre outros). Esta pluralidade étnico-confessional está igualmente presente no Líbano, no Iraque, na Jordânia, no Egito e na Palestina (sob a ocupação de Israel). Uma pluralidade que polariza com o exclusivismo comunitário do “Estado judeu”. Não podemos nos surpreender, portanto, com a ferocidade com que os sírios combateram a fundação de Israel, não sendo derrotados no campo de batalha, entre 1948 e 1949.

Como vimos, antes, a Síria foi a primeira democracia do Oriente Médio, nascida da vontade dos árabes de se libertarem dos jugos otomano e europeu imperialista. Mesmo sob o domínio francês, sob a capa do mandato, “colonialismo que não ousa dizer seu nome”, segundo o historiador palestino Elias Sanbar, o Estado sírio manteve um parlamento funcionando com pluralismo partidário e eleições regulares. Esta breve experiência democrática foi bruscamente interrompida quando a guerra entre árabes e o recém fundado Estado de Israel eclodiram, em 1948, e mais de 780 mil palestinos foram expulsos pelas tropas israelenses, após sofrerem massacres. O parlamento sírio, enfurecido pelo apoio norte-americano aos israelenses, vetou a construção do oleoduto (Tapline) pela ARAMCO (Arabian-American Oil Company) ligando o Bahrein à cidade de Sidon, sul do Líbano, passando pelas Colinas de Golã, na Síria. O parlamento do Líbano já havia aprovado projeto do oleoduto e estava em compasso de espera, quando os EUA intervieram sob uma “ação encoberta” da CIA, chefiada pelo espião, músico e adido da embaixada norte-americana Miles Copeland (pai do baterista da banda de rock The Police), para derrubar o governo. Iniciou-se, desta forma, a tradição intervencionista ianque, que se tornaria tristemente célebre em golpes de Estado no Irã, em 1953, e na Guatemala, em 1954, para não falarmos do Brasil, em 1964.

Estado de Israel, o ciclo de ditaduras militares na Síria e sua relação com o Iraque

O presidente sírio Chuckri al-Kwatli foi deposto por um golpe militar liderado pelo Coronel Hosni Zaim, cujo objetivo era tornar a Síria “o primeiro país árabe a reconhecer oficialmente o Estado de Israel”. Não poupou esforços para tal. O coronel-ditador expulsou para o Líbano o líder libanês nacionalista Antoun Saadeh, chefe do Partido Sírio Nacional-Socialista, uma das primeiras milícias a combater Israel. Visando ter apoio árabe em seu intento de alcançar a paz com os israelenses, aproximou-se dos reis hachemitas (aliados dos sionistas desde 1919) que governavam o Iraque e a Jordânia. Esta aproximação se revelaria fatal, pois a Arábia Saudita era inimiga das duas monarquias árabes. Em menos de seis meses no poder, o coronel Hosni Zaim foi deposto por outro golpe militar, dando continuidade ao ciclo sírio de golpes e de ditaduras militares. Por isso, Síria seria apelidada de “A Bolívia do Oriente Médio”.

A rivalidade entre as monarquias pró-Ocidentais (hachemitas no Iraque e na Jordânia e o reino saudita) revelava tanto a disputa entre as companhias de petróleo inglesas e norte-americanas, quanto também a geopolítica regional. Dois eixos geopolíticos se tornariam uma constante prevalecendo sobre o Crescente Fértil (arco que compreende Síria, Iraque, Líbano, Palestina/Israel, Kwait e Jordânia) até a invasão anglo-americano-australiana do Iraque, em 2003: o pró-hachemita (ou pró-Inglaterra), formado pelo Iraque e Jordânia; e o pró-saudita (ou pró-EUA), formado pela Síria, Arábia Saudita e Egito. Sempre quando a Síria tentou se aproximar do Iraque (integrando o “Crescente Fértil”) e enfrentou a Arábia Saudita, sofreu desestabilização - isto ocorreu duas vezes em 1949, em 1963, em 2003 e agora em 2011.

A integração (para não falarmos de uma união) entre Síria e Iraque é uma ameaça geopolítica à Arábia Saudita, à Jordânia, ao Egito, ao Líbano, a Israel, à Turquia e ao Irã. A partir de 1963, ambos países árabes passaram a ser governados pelo partido Ba’ath (“Ressurreição), formando o núcleo duro do nacionalismo árabe, reformando as sociedades ainda de base rural, adotando um modelo nacional-desenvolvimentista para a economia, com forte intervenção estatal. Desta forma, foi possível criar uma burguesia sob tutela do Estado. Assim, o “socialismo” como bandeira do Ba’ath era uma forma de capitalismo estatal, sob forte influência do modelo turco-kemalista. As sociedades síria e iraquiana se modernizaram, permitindo a formação de uma classe média urbana. Este processo de modernização, que se intensificou ao longo dos anos 1960, anulou o que restava de divisões sectárias. A forte presença de líderes de confissão sunita no Iraque (cuja presença demográfica dos muçulmanos xiita fosse expressiva) e de alauítas na Síria (de maioria sunita) significava apenas que iraquianos e sírios não viam as chamadas “minorias” no poder como ameaças, mas, sim, como o bem-sucedido processo de integração social-cultural-econômica de todas etnias e comunidades religiosas que a modernização havia promovido nestas duas nações chaves do nacionalismo árabe. Neste período áureo do nacionalismo árabe, o confessionalismo não encontrava eco nestes dois países, especialmente no Iraque, onde a modernização foi mais profunda, ocasionando a formação de um dos mais influentes partidos comunistas do Oriente Médio.

Esta integração interna resistiu às pressões externas, mas não permitiu que uma aproximação entre Síria e Iraque se concretizasse. Síria se unificaria com o Egito por um breve período, sob o regime militar e nacionalista árabe do coronel Nasser, entre 1958 e 1961, e o Iraque sofreria uma revolução que substituiu uma monarquia cliente da Inglaterra por um regime militar nacionalista e modernizador, em 1958, causando uma nova aliança tática entre EUA e líder egípcio contra os iraquianos.

Em 1967, Israel atacaria Síria, Egito e Jordânia, a Guerra dos Seis Dias, vencendo-os de forma arrasadora, desmoralizando a liderança de Nasser e o nacionalismo árabe. Os israelenses anexaram territórios sírios (Colinas de Golã) e sob os controles egípcio (Faixa de Gaza) e jordaniano (Cisjordânia). A Arábia Saudita sairia do conflito, do qual não participou, como o verdadeiro vencedor, ao ter seus inimigos ideológicos derrotados. A derrota mudaria os rumos do Ba’ath em Damasco.

Nos anos 1970, após a morte de Nasser, a rivalidade entre Síria e Iraque se acentuou, apesar de serem governados pelo mesmo partido, o Ba’ath, com a chegada ao poder respectivamente dos presidentes-ditadores Hafez al-Assad e Saddam Hussein (este ainda “eminência parda” do poder em Bagdá).

Hafez al-Assad, no poder, mesmo sendo oficialmente aliado da URSS, se aproximaria dos EUA (e, por tabela, da Arábia Saudita), seguindo os passos do presidente-ditador egípcio Anwar Sadat, sucessor de Nasser, enquanto Saddam Hussein, ditador de facto do Iraque, mantinha-se afastado de Washington. Síria e Egito contra-atacariam Israel em 1973, para recuperar os territórios ocupados. A intransigência israelense e norte-americana foi bem sucedida ao final das contas. Egito assinaria acordos de armistício com Israel que desembocariam nos Acordos de Paz de Camp David, entre 1978 e 1979. Ao mesmo tempo, apoiada pelos EUA, Síria enviaria tropas ao Líbano, em guerra civil, para impedir a vitória da coalizão “progressista muçulmano-palestina”, que ameaçava exterminar os libaneses cristãos. Ao contrário do que era dito na época, Hafez al-Assad não visava anexar o Líbano, mas impedir que a vitória  palestina abrisse o caminho para uma invasão israelense do território libanês, levando os sírios a terem mais uma frente de guerra com Israel, além das Colinas de Golã.

Primeiros confrontos internos, expansão do setor privado e desigualdade social

O envolvimento sírio no Líbano contra os “muçulmanos” acarretou o primeiro confronto interno sírio entre o regime de Assad e a pequena burguesia desfavorecida pelo surgimento de uma nova burguesia, baseada em Alepo e em Damasco, fortalecida com a política de relativa liberalização econômica adotada ao assumir o poder. Esta pequena burguesia era formada por pequenos comerciantes e artesãos, que eram mais inclinados aos apelos religiosos, especialmente do ramo sírio da Irmandade Muçulmana (uma ONG multinacional confessional sunita, fundada no Egito, anti-comunista, anti-xiita e anti-nacionalista). Ela se sentiu marginalizada pelo novo arranjo econômico que Assad desenhou para o país, que era baseado nas estatais subsidiadas pelos capitais das petromonarquias do Golfo Árabe-Pérsico. Estas empresas estatais espalhadas pelo país arrasaram os negócios dos pequenos comerciantes, em sua maioria sunitas. A intervenção “anti-muçulmana” no Líbano e a dizimação dos pequenos negócios tornaram os conservadores mercadores mais suscetíveis aos apelos sectários dosIrmãos Muçulmanos, levando a um confronto armado que desembocou no arrasamento da cidade de Hama, base do grupo islâmico, pelas tropas do governo em fevereiro de 1982. Os mais de 10 mil mortos no ataque revelam a coesão do regime, formado pelo Partido Ba’ath e os novos burgueses, que eram em geral: ex-funcionários públicos (ou parentes ou amigos destes) das empresas estatais criadas nos primeiros anos governo Assad, além de membros do regime.

Com um novo modelo econômico, em detrimento do antigo “socialismo prussiano” do Ba’ath, o setor privado não tardaria a superar o setor estatal, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social no país, ao longo dos anos 1990. Com a morte de Hafez al-Assad, em 2000, seu filho Bassar al-Assad o sucedeu, dando início de imediato à chamada “Primavera de Damasco”, uma relativa liberalização política (arrefeceu a censura, libertou presos políticos, legalizou partidos políticos, diminuiu a presença militar no Líbano), com um aprofundamento da liberalização econômica. Assim, bancos privados foram autorizados e uma bolsa de valores foi criada em 2005.

A configuração econômica adotada pelo pai de Bassar, Hafez, ajuda a entender, parcialmente, o alinhamento quase incondicional com a Arábia Saudita, a ponto de não confrontar diretamente a invasão israelense do Líbano de 1982 (que favorecia os xecados do Golfo, ao arrasar irreversivelmente a praça financeira libanesa), de combater os interesses do Irã no Líbano (apoiando o Amal contra o Hizbollah) e de apoiar o ataque da coalizão liderada pelos EUA ao Iraque, em 1991. Certamente, a invasão israelense tornaria o Líbano um satélite do Ocidente e do invasor; por este motivo, a Síria se voltaria para a URSS para se armar e montar uma sangrenta e brutal contraofensiva, que resultou na expulsão dos EUA do Líbano e o recuo de Israel para o sul do pequeno país árabe, impedindo, por tabela, a rendição dos palestinos frente aos israelenses.

Ramez Philippe Maalouf, historiador, é doutorando em Geografia Humana na USP.

Protestos: Por que esses vândalos não sofrem em silêncio?



Alguém acha que a realidade vai mudar apenas com protestos on line ou cartas enviadas ao administrador público de plantão? Ou que a natureza de uma ocupação de terra, de uma retomada de um território indígena ou de uma manifestação urbana não pressupõe um incômodo a uma parcela da sociedade?
Fiquei bege ao ler propostas de que manifestações populares em São Paulo passem a ser realizadas no Parque do Ibirapuera ou no Sambódromo. Pelo amor das divindades da mitologia cristã, o pessoal só pode estar de brincadeira! Desculpe quem tem nojo de gente, mas protesto tem que mexer mesmo com a sociedade, senão não é protesto. Vira desfile de blocos de descontentes, que nunca serão atendidos em suas reivindicações porque deixam de existir simbolicamente. “Quesito: Importância social. Sindicato dos Bancários, nota 10. Movimento Passe Livre, nota 10. Movimento Cansei, nota 6,5.”
Parar a cidade, inverter o campo, subverter a realidade. Ninguém faz isso para causar sofrimento aos outros (“ah, mas tem as ambulâncias que ficam presas no trânsito” – faça-me um favor e encontre um argumento decente, plis), mas para se fazer notado, criar um incômodo que será resolvido a partir do momento em que o poder público resolver levar a sério a questão.
Ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.
Rascunhei em outro texto essas ideias, mas decidi dar prosseguimento a elas depois de ler os comentários de um post que fiz, na semana passada, sobre os protestos contra o aumento das passagens em São Paulo. É trágico como milhares de pessoas não entendem o que está acontecendo e, tomando uma pequena parte pelo todo, resumem tudo a “vandalismo”. Não defendo destruição de equipamentos públicos, por considerar contraproducente ao próprio movimento, pela escassez de recursos públicos, por outras razões que já listei aqui antes. Mas é impossível para os organizadores de uma manifestação controlarem tudo o que acontece, ainda mais quando – não raro – é a polícia que ataca primeiro.
E, acima de tudo, não compactuo com uma vida bovina, de apanhar por anos do Estado, em todos os sentidos e, ainda por cima, dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com cerveja e amendoim no sofá da sala.
Muitos detestam sem-terra, sem-teto e povos indígenas. Abominam a ideia de que o direito à propriedade privada e ao desenvolvimento econômico não são absolutos. Mas os direitos humanos são interdependentes, indivisíveis e complementares. O que é mais importante? Direito à propriedade ou à moradia? Não passar fome, locomover-se livremente ou desfrutar da liberdade de expressão? Todos são iguais, nenhum é mais importante que o outro. Intelectuais que pregam o contrário precisam voltar para o banco da escola.
E direitos servem para garantir a dignidade das pessoas, caso contrário, não são nada além de palavras bonitas em um documento quarentão.
Leio reclamações da violência das ocupações de terras – “um estupro à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flexas, enxadas e paciência.  Ou ainda manifestantes que exigem o direito de ir e vir, tolhido pelo preço alto do transporte coletivo, e que resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público recue de decisões que desconsideram a dignidade da população. Todos eles são uns vândalos.
Por que essa gente simplesmente não sofre em silêncio, né?
Caro amigo e cara amiga jornalistas, falo com todas as letras: não existe observador independente. Você vai influenciar a realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido e, se for honesto, deixará isso claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem ser necessário buscar uma pretensa imparcialidade, mas isso é só metade da história. Deve se buscar ouvir com decência todos os lados de um fato para reconstruí-lo da melhor maneira possível. Afirmar que existe isenção em uma cobertura jornalística de um conflito, contudo, só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade.
Isso sem contar que tentar manter-se alheio a reivindicações justas é, não raro, apoiar a manutenção de um status quo de desigualdade e injustiça. Coisa que, por medo, preguiça, vontade de agradar alguém ou pseudo-reconhecimento de classe, a gente faz muito bem.
Manifestações populares e ocupações de terra e de imóveis vazios significam que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os rotos e rasgados são capazes de sobrepujar ricos e poderosos. Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos.
Muitas das leis desrespeitadas em protestos e ocupações de terra não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Você pode fazer o omelete que quiser, mas se quebrar os ovos vai preso.
Enquanto isso, mais um indígena foi emboscado e morto a tiros no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem.