sexta-feira, 27 de julho de 2012

Denúncias de trabalho escravo envolvem grifes de Buenos Aires 0




Para quem reclama que a mídia só veicula denúncias de trabalho escravo na produção de roupas de grife quando elas ocorrem no Brasil (como se isso apagasse a nossa responsabilidade nesses casos): flagrantes recentes revelam que, assim como em São Paulo, Buenos Aires também vende roupas caras produzidas com a exploração de escravos. A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil, que foi à capital da Argentina para mostrar que o modelo adotado nas oficinas clandestinas de lá é bastante parecido com o que ocorreu aqui na produção de marcas como Gregory e Zara. Segue o texto.
Polícia protege loja em meio a protestos após denúncia de escravidão

“Trata-se de algo sistemático e não pontual. O mesmo modelo que existe no Brasil, existe aqui”, explica Gustavo Vera, da Fundação Alameda, organização que denunciou mais de 100 marcas nos últimos anos, incluindo casos que ganharam destaque, como o das grifes Soho e Cheeky, esta última ligada à Juliana Awada, esposa do prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri.
Assim como nas oficinas clandestinas de São Paulo, os costureiros escravizados na Argentina, bolivianos em sua maioria, cumprem jornadas de mais de dez horas por dia, sem descansos semanais e em condições degradantes. Os locais de trabalho funcionam como habitação também, em um ambiente em que famílias são obrigadas a compartilhar quartos apertados, em uma confusão de máquinas, agulhas, linhas e crianças. São ambientes escuros, sem iluminação adequada para costurar, sem ventilação, sem nada. Em um contexto em que direitos trabalhistas como horas extras, férias ou descanso remunerado são ignorados, os trabalhadores são pagos por produção – e normalmente produzem sem parar.
As peças, vendidas a intermediários a preços baixos, acabam com etiquetas caras nas prateleiras das lojas mais luxuosas da cidade. “O pior é que, nas denúncias que fizemos, muitos ficaram chocados não com as condições degradantes, mas com o fato de vestidos e camisas comprados a preços caríssimos terem custado tão pouco na produção. As pessoas se sentem enganadas e isso provoca até mais revolta do que a escravidão em si em alguns casos”, diz Lucas Schaerer, da equipe de jornalismo investigativo da Alameda. As denúncias feitas pelo grupo, baseadas em apurações cuidadosas e registros detalhados, inclusive com o uso de câmaras ocultas, têm servido como subsídio para o combate à prática no país e que ajudado a explicitar a exploração degradante de pessoas.
Entre os problemas recorrentes nas oficinas clandestinas, estão os fios expostos em redes elétricas irregulares instaladas ao lado de estoques de tecidos, combinação que, não raro, resulta em incêndios com mortes. Foi em um deles que, em março de 2006, seis pessoas morreram, entre elas quatro crianças e uma mulher grávida que viviam no mesmo local em que trabalhavam, a oficina Luis Viale. A tragédia expôs as condições degradantes a que trabalhadores do setor têxtil estão submetidos e deu força para o combate à prática. O episódio é considerado emblemático para os que lutam contra o trabalho escravo no país.
Os mecanismos institucionais e legais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo ainda estão sendo construídos na Argentina (leia especial com os principais documentos e leis de combate ao trabalho escravo na Argentina). Se no Brasil a fiscalização foi centralizada nos grupos móveis de combate ao trabalho tscravo, do Ministério do Trabalho e emprego, no país as ações ainda não foram unificadas e reúnem agentes do trabalho municipais e federais, representantes do poder judiciário e até a AFIP, órgão equivalente à Receita Federal brasileira, que tem tido papel importante em especial no combate ao tráfico de pessoas.
As ações de responsabilização das grandes marcas têm se baseado na combinação da Lei de Trabalho Domiciliar (Lei 12.1713 – artigos 4, 35 e 35, principalmente), que prevê a responsabilidade do contratante mesmo em casos de terceirização, e na Lei de Migração (Lei 25.871), que condena a exploração de estrangeiros. De acordo com María Ayelén Arcos, pesquisadora do curso de Antropologia da Universidade de Buenos Aires, muitos dos empresários flagrados tentam se eximir da responsabilidade argumentando que desconheciam as condições dos que vivem nas oficinas. Também ligada à Alameda, ela tem estudado como se organizam as redes envolvendo oficinas clandestinas na cidade e ressalta que assim como no Brasil, a Justiça têm considerado que existe sim responsabilidade direta, mesmo no caso de terceirização da produção.
Há casos em que, semelhante ao que acontece na Itália com bens de redes mafiosas, equipamentos caros como máquinas de costura especializadas foram confiscados e destinados a cooperativas de trabalhadores do setor. A escravidão está prevista no artigo 140 do Código Penal argentino. Fortalecem o combate e a prevenção a Lei de Trata de Personas (tráfico de pessoas, em espanhol), promulgada em 2008, e legislações locais, como a Lei de Assistências a Vítimas da Capital Federal (Buenos Aires). A Argentina também é signatária das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, que proíbem o trabalho escravo.